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Vândalos

Levanto cedo, como faço todos os dias, pego minha bicicleta e vou a padaria mais próxima. A moça que me atende já me conhece, me pergunta o que desejo e faço o pedido. Na cadeira ao lado dois rapazes tomam café e saboreiam pão de queijo. Nada fora dos padrões culturais de uma cidade de migrantes mineiros, não que mineiro só coma pão de queijo. Ouço o papo deles durante o curto período que aguardo a atendente providenciar meus pedidos. "Você viu ontem no jornal nacional o que aconteceu em Brasília? O que? Os vagabundos quebrando tudo. Ah vi sim. É um absurdo, depois quem paga a conta é o povo.



A atendente me entrega o pedido, pago, pego minha bicicleta e começo a pedalar. Lembro dos rapazes, jovens trabalhadores do comércio local. Vem a minha memória a fala de um vizinho do lado, que nas conversas cotidianas com a esposa sempre diz. Você viu o que passou no jornal? Fulano é bandido. Continuo pedalando, mas a memória não para. Outra lembrança um pouco mais incomoda. Lembro do dia que a razão sucumbiu à emoção em sala de aula.


Numa aula uma estudante questionou os supostos atos de vandalismo dos movimentos sociais a um estudante que participava dos mesmos. Disse que esses movimentos eram violentos, havia formas corretas e incorretas de protestar. Naquele momento a estreiteza do conceito de violência me fez perder a razão. Como sou ser humano, não anjo, exaltei meu tom de voz. Mas as lágrimas também começaram a correr.


Falava e lembrava dos estudantes de Aparecida de Goiânia. Um menino de sete anos que já era aviãozinho do tráfico, outro que por ser negro me dizia ser o primeiro abordado pela polícia. Com ele conheci "NEGRO DRAMA", música do MCs Racionais. Outros tantos iam a escola simplesmente para comer, porque não tinham nada em casa. Na periferia de Goiânia me recordo de um estudante de oito anos que tinha oito irmãos, viviam com a aposentadoria da avô. Resultado: comiam mal, isso quando comiam.

Claro que os estudantes se assustaram com aquela cena do professor. Uns olhavam assustados, outros faziam alguma reflexão, outros simplesmente olhavam com algum olhar de solidariedade. Um sujeito chorar em sala de aula me pareceu no primeiro momento um sintoma de fraqueza. Hoje não, apesar de outros equívocos, entendo que aquele foi um ato humano, somos razão e emoção. Depois de algum tempo retomei o controle da emoção.

Depois desta rememoração de vivências e experiências retomo a reflexão enquanto pedalo. Afinal o que é violência? Lembro de um livro que li, tem exatamente esse título: Violência. Nele o autor diz, temos uma ideia estreita de violência. Há uma violência simbólica, aquele que ataca nossa casa do ser. Quando alguém chama um negro de preto safado, ou habitante do campo de "pé vermeio", " da roça" há uma violência simbólica, que afeta sua condição como sujeito no mundo. Pode ser que ele sinta raiva profunda de ser negro, ou de ter nascido no campo.

Há também uma violência sistêmica, expressa nos sem emprego, sem comida, sem teto, sem-terra, sem direitos, sem lenço nem documento. Mas vivemos a ditadura da violência como agressão física direita, contra outros sujeitos ou contra objetos. Mas como diz a expressão do meu vizinho: "eu vi no jornal." Então se o jornal diz que isso que é violência existe aí uma verdade absoluta estabelecida. E se o que penso determina o que eu faço, o jornal forma um consenso coletivo. Mas a quem ele interessa?

Na última esquina para chegar em casa compreendo que há uma construção histórica do que é manifestar, exposto nos termos "manifestação pacifica", "ordeira", "correta", cria-se padrões pré-estabelecidos, quem os extrapola é "vândalo." Esse pode ser aqueles que negam esse padrão de manifestação, portam outros métodos, táticas de ação, concordemos ou não com eles. Ou aqueles que não suportam a provocações de infiltrados, que fazem uso de mecanismos para que a manifestação escape do dito padrão pacífico.

Questiono: Mas não é violência, vandalismo crianças analfabetas no Brasil? Brasileiros morrendo na fila dos hospitais? sujeitos assassinados simplesmente porque cobram o cumprimento do artigo 186 da constituição, que apregoa o cumprimento da função social da terra? Também não é vandalismo um sistema político de representação que utiliza o eleitor como mercadoria e no fim e ao cabo, representa interesses corporativistas? Por que o Michel Temer recebe, de modo íntimo e cordial o empresário de uma corporação multinacional e ataca outros com "bombas de efeito moral?"

Não é imoral, vandalismo na leitura do presidente corrupção passiva, trafico de influencia, etc, mas o é manifestantes que exigem o direito de participar das decisões políticas do país. Será que esse modelo de democracia, essa forma de nos organizarmos politicamente não está tão moribundo como doentes terminais na fila dos hospitais? Você daria seu cartão para alguém fazer contas, compras, enfim decidir os rumos da sua vida? Pois esse sistema de delegação do poder é exatamente isso. Portanto, antes de cair no discurso pobre, raso, simplista, alienante do debate do vandalismo apregoado pela mídia. Aonde a vítima torna-se o criminoso e o criminoso torna-se vítima, deveríamos aprofundar o debate das diferentes propostas de organizarmos politicamente que aparece nas manifestações. Não estaria nelas o devir político?

É aí que se encontra a saída, o novo, nos palácios, nos banquetes, nos encontros de alcova, nas salas fechadas para aluminados o velho apodrece, fede e contamina nossos cérebros. Mas também produz vítimas, como os jovens da padaria, que com fontes de informação e formação estreitas sofrem com a falta de acesso à educação e a democratização da mídia. Assim repetem o fabricado, editado e enlatado, favorável a quem historicamente se enriquece e perpetua no poder.


*Edson Batista

(Professor de Geografia da UEG – Câmpus Itapuranga)

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