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Não nasci mulher, me tornei uma

Eu ainda me lembro do cheiro do cigarro que ele exalava ao chegar em casa; meu pai nunca foi um exemplo de homem de família que eu ouvia nas aulas sobre patriarcalismo na aula, ele era basicamente quem pagava as contas da casa e isso lhe fazia pensar que ele era melhor do que eu ou minha mãe. Mas “melhor” era a última coisa que meu pai era.



Desde que nasci ele se revoltou contra mim e minha mãe; ela era culpada por não ter lhe dado um menino e eu, Rafaela, fui culpada por não ser Rafael. Por muitos anos da minha infância tentei uma aproximação com ele, mas a cada abraço que virava empurrão a esperança de uma relação linda como a de novela, foi sumindo aos poucos até acabar por completo.


A primeira vez em que o vi bater nela foi no meu aniversário de 14 anos; eu sabia, é claro, que ele não se lembraria; mas mamãe me surpreendeu com um bolinho de cenoura e chocolate (meu favorito) quando cheguei da aula. Mas quanto ele chegou, já tarde da noite, estava bêbado e começou a se zangar com ela por gastar dinheiro em uma algo pra mim; aos poucos a briga foi tomando outros rumos e os gritos, se intensificando:


—Você acha que é certo, sua filha crescer sem amor ou carinho do pai?!

—Ah cala a boca mulher, você mima essa menina e depois reclama de mim?!

A última coisa que ouvi antes de um silencio cortante foi ela chamando-o de covarde, logo em seguida ele levantou o braço e jogou a mão com força contra o rosto da minha mãe o que fez ela se desequilibrar e cair. Fiquei tão assustada que nem consegui me mexer, só fiquei parada observando-a chorar, ele mais enfurecido e sabia que o que estava por vir seria muito pior. Fui para o meu quarto e, de lá, pude ouvir o noticiário da TV da sala que falava algo sobre direitos de cidadania, “caras pintadas invadiram as ruas, exigindo justiça...” achei ironicamente triste ele ligar a televisão para abafar os gritos dela, em um canal que relatava justiça.


Por diversas vezes implorei a ela que se separasse, mas ela apenas sofria ao dizer que dependíamos dele financeiramente e que quando fosse possível, viveríamos só eu e ela. Essa promessa nunca foi realizada; um dia quando cheguei da aula e vi a casa toda revirada encontrei minha mãe caída no chão da cozinha, próxima a sua mão estava uma faca com um pouco de sangue, mas não dela; seu pescoço possuía marcas horríveis de dedos e já não existia mais vida no corpo dela, ele havia sufocado-a. Naquele momento eu não sabia o que sentir ou fazer, só sabia que lutaria pela justiça que minha mãe não teve.


Depois do ocorrido eu passei muito tempo trancada na casa dos meus avós, odiando o homem que assassinou minha mãe e fugiu como o covarde que era; algum tempo depois vi uma notícia sobre um tiroteio, no qual ele havia morrido, não consegui sentir nada além de um vazio; foi aí que percebi que era hora de agir, e de ver uma mudança na sociedade.


Neste momento surgiam vários movimentos sociais, me interessei pelo feminista e me juntei a ele, também participei de campanhas contra violência, desigualdade e preconceito. Lutar pelos direitos das mulheres me garantiu tanta alegria que segui esse desafio, me formei em Estudos Sociais e realizei palestras a meninos e meninas, para que eles soubessem que têm os direitos que muitos, como minha mãe, não tiveram. Com o passar dos anos mobilizei várias pessoas e conseguimos mudar a cara dessa realidade opressora, criamos uma ONG e nos organizamos para reconstruir a vida social e a inclusão indiscriminada da mulher.


Me tornei mulher quando resolvi lutar pelas outras que, como minha mãe, sofriam abusos de homens repugnantes e que mereciam uma vida digna. A aprovação da Lei Maria da Penha foi um dos grandes passos para essa luta, e é claro que inda há um longo caminho a se percorrer, mas quando olho para tudo que as mulheres já conquistaram sei que minha mãe estaria orgulhosa de mim, e de todas as mulheres que se superaram na vida.

*Daniela Ferraz é aluna do 2º ano do Colégio Monteiro Lobado em Itapuranga.

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