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A Elitização do Ensino

Gostaria, de modo introdutório, destacar e elogiar a escolha do tema que norteará está mesa. A discussão sobre um ensino elitizado é mais do que assunto de especialistas, educadores, professores, gestores, governantes etc., pois deve e, sobretudo, envolver toda sociedade. Penso que para esta reflexão seria de muitíssima importância distinguir escolarização e educação, no que bem aduz Mario Sérgio Cortela. De acordo com o Filósofo, Escolarização compreende a estrutura escolar e todos os seus aparatos e mecanismos. Educação, além de envolver a escolarização, engloba toda sociedade, numa relação dialógica e histórica. Importa ressaltar que tanto a escolarização quanto a educação, são elementos indissociáveis e que se complementam. Importa acrescentar ainda que o tema é pertinente uma vez que resgata do obscurantismo que na atual conjuntura se interpõe através da produção e reprodução de valores e preceitos burgueses no espaço escolar.


Nesse sentido, procurarei levar a discussão, a despeito de inúmeras outras possibilidades de leitura (as) e interpretações sobre o tema aqui balizado, para uma análise estritamente histórica e reflexiva. Penso que a discussão que irei trazer à baila esteja vinculada a uma noção crítica da Escola nos meandros da conjuntura atual. É fato que a Escola ainda permanece, como campo e espaço de promoção da democracia e cidadania, no estanque da sua principal função, a saber, de intermediar e potencializar a crítica e o conhecimento da realidade social do/no sujeito.


Desse modo, ao refletir sobre o tema A Elitização do Ensino senti que seria pertinente discutir o ensino-aprendizagem e a escola como espaço do debate, da discussão, reflexão, pensamentos; mas também como campo da interpretação da vida, do mundo, do sujeito, das relações sociais e humanas. Não poderia me furtar a esta reflexão, uma vez que o tema geral deste evento é Sujeito Contemporâneo: sentir para transformar? Assim, lanço mão à seguinte questão: como refletir sobre o “sujeito contemporâneo” e suas possibilidades de atuação e transformação social, se não pensamos de forma crítica na sua formação cidadã e democrática (LDB – Lei nº 9.394 de 20/12/1996, nos seus títulos I e II)? Eis uma questão sintomática.


Dito isto, gostaria, inicialmente, de chamar a atenção para um aspecto de importância fundamental no processo histórico. Se o ambiente escolar e universitário recebe hoje a função de promover a cidadania e a democracia; de ser o espaço do debate de ideias, dantes não o fora. Na Antiguidade Clássica (século V a. C.) o espaço de exercício da cidadania, da democracia e da política era a Ágora, a praça pública. As questões mais importantes da Polis eram discutidas num ambiente que hoje é representado como o espaço do lazer. A vida pública era assunto de cidadãos aptos a se posicionarem, mediante o poder de convencimento, que demandava eximia retórica por parte dos interlocutores, de modo a estabelecer vínculos com os temas que mais preocupavam e acionavam os gladiadores do discurso.


A Ágora era a representação do lócus das atividades de maior importância da Polis. Entretanto, a participação na vida pública se restringia apenas aos considerados “cidadãos plenos”, aos quais, canalizavam todas suas energias para a cidade-estado. Deriva deste fato a negação do labor e de seu consequente desprezo por parte daqueles interlocutores e a legitimação do trabalho escravo. Mulheres, camponeses e escravos estavam excluídos de participar do exercício da vida pública, via de regra.


Apesar das restrições que se impunham, a vida pública era de importância tal que nada mais poderia atentar contra os discursos regados a muito reflexão e debates de ideias. A força dos debates e embates era tamanha, que acalorados pelo momento alguns interlocutores quase iam às vias de fato. Em alguns casos, aqueles interlocutores que se notabilizavam por eximia retórica, eram perseguidos e acusados. Sócrates, acusado de corromper a juventude, preferiu à cicuta do que se envolver com o despotismo ateniense.


No período medieval o ensino-aprendizagem era tutelado pela Igreja. O acesso à escolarização era restrito ao espaço da religião. Geralmente, os privilegiados eram clérigos e filhos de nobres, que na ocasião se restrigiam a duas possibilidades: a de se tornarem cavaleiros, uma honra inigualável, ou componentes do clero, o que os possibilitava, ainda sim de modo restritivo, à obtenção de alguns textos e ensinamentos, aqueles permitidos pela Igreja (Filme: O Nome da Rosa). A escolástica predominava como estrutura de ensino nas escolas monacais e catedráticas. Sua base era o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia). A partir do século XI, surgem as primeiras universidades em que se vulgariza a filosofia aristotélico-tomista (refere-se ao pensamento de Santo Tomás de Aquino).


Por fim, chegamos ao período moderno, que periodicamente se estende do século XV ao XIX. O modelo de escolarização que temos hoje é fruto da conjuntura histórico-social desse período. É importante frisar que o contexto histórico moderno corresponde ao avanço da ciência (Revolução Científica – séc. XVII), das mentalidades (Renascimento artístico e cultural) e do capitalismo (Revolução Industrial). A proposta mais do que evidente de um emprego radical da razão, digladiava com a concepção da tradição medieval, assentada, sobretudo, no dogmatismo cristão. O liberalismo é a ideologia da burguesia que busca seu espaço na estrutura político-econômica da sociedade moderna. O Iluminismo apregoa a razão como instrumento de emancipação do sujeito ao lado de uma retórica ufanista do progresso material e intelectual. É o modelo de “civilização” ideal.


Assim, a escolarização que surge na era moderna assenta-se sobre os valores burgueses. A Revolução Industrial promove intensa e profunda modificação nas relações sociais. Há uma violentíssima divisão social do trabalho. Na hinterlândia da indústria, os trabalhadores se especializam, se especificam; em síntese, como bem aludiu Marx, se atrofiam, se alienam. Esse modelo de produção fragmentado é levado às instituições de ensino e delas se fazem usar. Decorre disto o fracionamento de disciplinas: História, Geografia, Sociologia, Filosofia etc. Viviane Mosé (2013, p. 49) corrobora que [...] a escola atual é herdeira direta da sociedade industrial. [...] a escola de massa perdeu o caráter formativo das escolas das elites, dedicando-se a uma formação instrumental, supostamente voltada para as necessidades do mercado de trabalho. O saber é apresentado de modo compartimentado, fatiado, segmentado como se o saber geográfico, literário, matemático não fizesse parte de um mesmo saber humano. “Os conteúdos ficam tão fragmentados que levam os alunos a acreditar que estudam para os professores, para os pais, e não para si mesmos, para suas vidas”. (Trecho suprimido da resenha do livro A Escola e os Desafios Contemporâneos, da filósofa Viviane Mosé. A autoria da resenha é de Evandson Paiva Ferreira, doutor em educação pela UFG).


Vale lembrar que no Brasil Colonial as denominadas Reformas Pombalinas (1759) visavam implantar uma escolarização consubstanciada pelo ensino técnico-científico. Por intermédio do Marquês de Pombal, houve a expulsão dos jesuítas da colônia e também da responsabilidade que a eles recaíam até então dos ensinamentos aos habitantes da colônia. O objetivo era instalar um ensino secular, apartado dos ensinamentos jesuítas. Dentre algumas ações adotadas por Pombal, está a abertura de concursos públicos para professores, o ensinamento de latim, grego, retórica, gramática e das aulas régias (aulas isoladas que substituíram as aulas de humanidades). Além de mudanças na estrutura de ensino, Pombal criou a Escola Náutica e de Comércio, onde eram ensinados caligrafia, contabilidade, escritura comercial e línguas modernas. O objetivo maior das Reformas era de colocar o Estado português lado a lado das grandes potencias do período, em especial a Inglaterra. Para isto, as mudanças na conjuntura do ensino-aprendizagem eram imprescindíveis. Observa-se que elas eram intimamente influenciadas pelos ideais do Iluminismo, levando ao termo uma valorização do ensino técnico-científico.


Dando um salto na História do Brasil, notamos que a primeira e expressiva conscientização política a respeito da elitização do ensino como um problema nacional do país, ocorreu por motivos atestados pelo Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932. O referido manifesto foi articulado por um grupo de educadores que atestaram que o discurso de priorização da educação e do ensino estava mais no campo da retórica do que evidentemente, sendo executado na prática. O manifesto, de modo geral, defendia a escola pública, gratuita, laica e de qualidade. Sua mais notável frente de ação buscava digladiar com um ensino técnico que perscrutava a exclusão social. (LIBÂNEO, José Carlos; OLIVEIRA, João Ferreira de; TOSCHI, Mirza Seabra. Educação Escolar: políticas, estrutura e organização. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 2009).


Demerval Saviani (1998) chama a atenção para o fato de que com o “[...] Estado Novo imposto por Vargas em 1937, a racionalidade estava presente no controle político-ideológico, por meio da política educacional” (Op. cit. p. 154). Aponta ainda que a LDB, lei 4. 024/61 instrumentalizava a distribuição de recursos para a educação visando à sua racionalização tecnocrática. Tal ideologia se manteve e foi aprimorada a partir de 1964, ano do golpe civil militar. Já nos anos 1990, a educação/escolarização se enquadra nos valores da racionalidade financeira, tendo como princípios a eficácia na execução de atividades e funções, bem como excelência de resultados e produtos aliada a uma perspectiva empresarial (meritocracia).


Feito todo este percurso histórico, chego à conclusão que o ensino se definiu como estratégia política e ideológica da elite para continuar no poder de Estado. Muitos podem discordar, e isso é muito importante, mas é evidente, a meu entender, que o ensino esteve e está a serviço dos interesses de uma classe, e esse classe é a burguesia. Para não ficar em palavras vazias, cito um grande pensador francês, o filósofo Louis Althusser. Althusser afirma ser a Escola o aparelho ideológico de Estado mais utilizado e operacionalizado pela elite no projeto que lhe é particular, a saber, o de permanecer como classe hegemônica e dominante. Literalmente, a Escola para Althusser “se encarrega das crianças de todas as classes sociais desde o Maternal, e desde o Maternal ela lhes inculca, durante anos, precisamente durante aqueles em que a criança é mais “vulnerável”, espremida entre o aparelho de Estado familiar e o aparelho de Estado escolar, os saberes contidos na ideologia (o francês, o cálculo, a história natural, as ciências, a literatura), ou simplesmente a ideologia dominante em estado puro (moral, educação cívica, filosofia)” (ALTHUSSER, 1958, p. 79).


Nesse sentido, podemos tomar de empréstimo as questões suscitadas por Althusser, no que diz respeito à escola como aparelho ideológico de Estado e propiciar um debate sobre a função, o conteúdo e as características do ensino e da prática educacional contemporânea. Estabelecendo uma ponte concreta, a reforma do ensino médio aprovada recentemente desnuda um verdadeiro golpe contra a educação/escolarização brasileira. Ela revela o autoritarismo do governo e um projeto elitista de diminuição e desvalorização do pensamento crítico-analítico do sujeito.


O que a citada reforma representa em sua essência, é um desmonte estrutural e pedagógico. A seleção privilegiada de disciplinas, como português, matemática e língua estrangeira (inglês), em detrimento de uma diluição de outras como História, Sociologia, Geografia e química, em que serão aportadas nos chamados “itinerários informativos”, cabendo à instituição de ensino e ao aluno, a opção por estas, demonstra a parcialidade em desmerecer o processo de potencialização da criação, do pensamento crítico. Não estou dizendo que disciplinas como matemática, português, língua estrangeira etc., não possam oferecer elementos de reflexão e crítica social. O que defendo é que elas devem estar acompanhadas pelas disciplinas de ciências sociais e humanas, sendo, portanto, obrigatórias, assim como as outras.


Veja também o que se pretende com o projeto Escola Sem Partido. A meu modo de entender, o projeto visa tolher a liberdade de opinião e expressão do conhecimento e do saber. A imparcialidade não existe, fato que os construtores do Escola Sem Partido provavelmente desconhecem. Por fim, volto a Viviane Mosé, quando afirma que “o que precisamos de fato encarar é que ou a escola passa a ser um espaço vivo de produção de saberes, de valorização da curiosidade, da pesquisa, da arte e da cultura, da criatividade, da reflexão – um espaço de convivência ética e democrática no qual se exercita a cidadania, um espaço vinculado à comunidade a que pertence, bem como à cidade, ao país, ao mundo – ou se tornará obsoleta e estará fadada ao desaparecimento” (MOSÉ, 2013, p. 56).


Sou muito otimista no poder de transformação que a educação/escolarização pode proporcionar. Não vejo alternativa mais concreta para mudanças no quadro da presente conjuntura política e social se não valorizarmos, em todos os níveis, a educação, o ensino, a escolarização. Jose Carlos Libâneo afirma que “a escola contemporânea precisa voltar-se para as novas realidades, ligar-se ao mundo econômico, político, cultural, mas precisa ser um baluarte contra a exclusão social. [...] propõe-se para essa escola, um currículo centrado na formação geral e continuada de sujeitos pensantes e críticos, na preparação para uma sociedade técnica/científica/informacional, na formação da cidadania crítica-participativa e na formação ética” (LIBÂNEO, José Carlos. Organização e gestão da escola: teoria e prática. Goiânia: Alternativa, 2001).


Nesse sentido e para finalizar, acredito e defendo os seguintes princípios: a) posicionamento crítico e coerente; b) uma escola para o sujeito e pelo sujeito; c) um ensino conectado com a realidade-social dos alunos; d) uma escola atinente com as questões da vida pública; e) valorização de temas que possibilitem a reflexão crítica e não conteudista, ou seja, um ensino que escape à “educação bancária” (Paulo Feire); f) reconhecer que a escola e a universidade são espaços da cidadania e democracia, e não uma extensão da família e g) que o professor é um interlocutor-mediador de debates e pontos de vista, não um “ditador” do saber e do conhecimento.


Obrigado pela atenção.

Texto apresentado na Mesa Redonda A Elitização do Ensino, na Faculdade Itapuranga no dia 25 de maio de 2017.

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