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Q Que é um Autor?

A pouco tempo tive a oportunidade de ler um texto brilhante, na minha opinião. Dentre outros bons e excelentes textos que li, esse, em especial, me chamou a atenção por um aspecto peculiar: o título do referido texto era “O Que é um Autor?”. Acredito que o leitor também deva ter ficado com a impressão mesma de uma curiosidade profunda, uma vez que textos com títulos incomuns chamam a atenção. No meu caso, quando ouvi e vi pela primeira vez o título do texto, dentre muitos outros devaneios, acreditei que tinha a resposta para a proposição interpelativa: ora, um autor é quem escreve um texto qualquer. Pois bem! Vejamos com maior riqueza e detalhes a reflexão iniciada.


De “autoria” do filósofo Michel Foucault (1926-1984), “O que é um autor” é um texto extraído de uma conferência realizada por Foucault à Sociedade Francesa de Filosofia no ano de 1969. O tema da conferência sinalizava para uma questão de importância fundamental no período em que a conferência fora realizada: o desaparecimento do autor no tempo contemporâneo. Assim, Foucault se propôs a discutir sobre os elementos constituidores da nova “roupagem” da escrita que deslindava uma estética e uma forma específica, ou seja, a diluição da “autoridade” de quem escreve.


De outro lado, Foucault também despontava para uma vênia crítica aos “ditadores” da escrita, que se imputavam da autoridade que a “autoria” proporcionava para se autoproclamarem detentores do poder. De modo geral, Foucault estava criticando os detentores do discurso que se apropriavam de uma suposta “autoria” original para impor suas veleidades e ideologias discursivas.


Para o filósofo francês, um “[...] autor não é exatamente nem o proprietário nem o responsável por seus textos; não é nem o produtor nem o inventor deles” (p. 2). Com o objetivo de analisar a relação do texto com o autor, figura que lhe é exterior e anterior, Foucault nos mostra que não somos autores de textos que escrevemos. A assertiva parecerá ao leitor um tanto quanto incoerente com a lógica pragmática de quem, em especial, possui o hábito da escrita. A impressão que tive, inicialmente, também coaduna com a proposição duvidosa. Porém, importa acrescentar alguns outros elementos para a devida compreensão do que Foucault realmente quer dizer.


Em outras palavras, Foucault lança mão a algumas questões sintomáticas: a) que importa quem fala; b) o que é um autor; c) o que é um nome do autor, e como ele funciona? Para responder à primeira questão (que importa quem fala?), Foucault se apropria, de forma certeira, do exemplo da escrita. Para o filósofo, a escrita é anterior ao autor porque ela é transcendental (não dissolver confusamente com transcendente de Kant), porque ela está e é imanente ao sujeito que escreve, ou seja, o próprio autor. Conforme Foucault, a noção de escrita perpassa em termos transcendentais (princípio religioso da tradição e princípio estético da obra) como autônoma, a escrita como um corpus (p. 9). A Escrita se metamorfoseou. Ela está ligada ao sacrifício da vida e ao desaparecimento das características individuais do sujeito que escreve. Desaparecimento ou morte do autor. A escrita se libertou (p.6-7).


A segunda questão (o que é um autor?), Foucault responde afirmando que ela está relacionada com a ideia de individualização na história das ideias, com o conhecimento racional e a potencialização das ciências como vértices da vida humana (p. 5). Destaca ainda a “função-autor” que revela a existência de um discurso, circulação e funcionamento deste no interior de uma sociedade (p. 14). A função-autor está ligada a um sistema jurídico e institucional. É um discurso que tem por finalidade uma intenção política, econômica, ideológica, cultural; além é claro, de atribuir credibilidade (discurso especializado), etc (p. 20). Outra questão interessante e que chama a atenção, é a de que os textos e livros passaram a ter "autores" a partir do momento em que os discursos começaram a ser punidos; na medida em que começam a existir discursos transgressores (segundo Foucault isso se acentuou a partir do século XVIII e XIX), houve a necessidade de “punir” os autores. Por último, o autor como unidade estilística, ou seja, seleciona-se somente as melhores obras e/ou discursos daquele indivíduo que escreve como marca de sua identidade (p. 18).


Por fim, a última questão posta por Foucault (O que é o nome do autor; e como ele funciona?), sinaliza para um ponto consoante com o pensamento foucaultiano: o do discurso como campo de exacerbação do poder. Conforme Foucault, “enfim, o nome do autor funciona para caracterizar um certo modo de ele ser do discurso: para um discurso, o fato de haver um nome de autor, o fato de que se possa dizer "isso foi escrito por tal pessoa", ou "tal pessoa é o autor disso", indica que esse discurso não é uma palavra cotidiana, indiferente, uma palavra que se afasta, que flutua e passa, uma palavra imediatamente consumível, mas que se trata de uma palavra que deve ser recebida de uma certa maneira e que deve, em uma dada cultura, receber um certo status” (p. 13).


Até aqui o leitor deve ter se perguntado: então, de acordo com Foucault, a obra ou o texto antecede o autor? A resposta provável para a questão seria: ambos se entrecruzam. Resumidamente, Foucault quer dizer que um autor, antes um sujeito dotado de individualidade, é influenciado pelo contexto e a conjuntura histórico-social em que vive, sendo, portanto, um “não-autor” do que escreve. A autoria não é sua porque ele está imergido em uma relação e interação social com outros sujeitos, culturas, tradições, etc. Evidentemente que existem textos basilares que serviram e servem ao pensamento humano como referências e nortes no conjunto da sociedade, como os escritos de Marx, Weber, Freud, entre outros. A estes, Foucault fornece o conceito de “instauradores de discursividades”. Apesar de ser uma referência para o pensamento, a título de exemplo, a teoria ou os escritos de Marx são impensados senão submergidos no contexto do século XIX (Revolução Industrial; apogeu da ideologia burguesa; luta do proletariado, etc), sendo, portanto, Marx, influenciado pela conjuntura de seu tempo.


Sendo assim, não devemos negar que somos, a todo tempo e a tudo o que realizamos, influenciados, moldados pelo contexto que vivemos. Este á um elemento crucial no conjunto da análise crítica sobre as ações e estratégias adotadas no seio da sociedade contemporânea. Entender nossa sociedade passa pela compreensão da intencionalidade do discurso de cada indivíduo ou grupo. Essa é a impressão que tive quando li o texto “O que é um autor”, de uma inquietação provocativa a repensar valores e conceitos sobre questões atinentes ao cotidiano. Imaginar que somos “autores” daquilo que escrevemos ou realizamos em vida, é o mesmo que negar nossa conjuntura histórico-social. Esse é, na minha opinião, a grande contribuição deste texto para todos nós.


Boa semana para todos vocês!


Texto-base: FOUCAULT, Michel. O que é um autor? (Conferência realizada à Sociedade Francesa de Filosofia no ano de 1969).

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