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Do Ofício De Historiador

No último dia 19 (sábado) comemorou-se o dia do historiador. A data comemorativa foi criada por força da Lei nº 12.130, de 17 de dezembro de 2009. O projeto de lei que reserva uma data específica para a comemoração nacional do dia do historiador é de autoria do senador Cristovam Buarque (PPS-DF). A opção pelo dia 19 de agosto não poderia ser tão pertinente. Essa data marca o nascimento de um dos mais famosos e reconhecidos abolicionistas e diplomatas da história do Brasil: Joaquim Nabuco (1849-1910). Homem de notória carreira intelectual, Nabuco empenhava-se em lutar contra o “fascismo” da escravidão e em defender as relações harmoniosas entre os segmentos sociais. (Sobre a razão e o motivo para a criação do dia do historiador ver texto de Mary del Priori e Márcia Raspanti. Disponível em: <http://historiahoje.com/19-de-agosto-dia-do-historiador/>).


Certamente o dia 19 de agosto é um importante momento de reflexão, pois evidencia a importância do historiador para a sociedade. Como se sabe, não há sociedade, povo, nação, Estado, ou qualquer outra forma de organização social, sem história. A famosa frase de Paul Veyne “tudo é história, logo a história não existe”, vem bem a calhar. Com isto se quer dizer que a história está em todos os lugares, em todas as culturas, em todos os pensamentos, em todas as sociedades, no cotidiano, nas futilidades, etc. E se a história está em tudo, o historiador é aquele capaz de lidar com as diretrizes do pensamento e da pesquisa histórica. O que se quer dizer enfaticamente, é que o historiador é o homem capaz – o único, talvez – de apreender e interpretar o movimento e o dinamismo comum ao processo histórico. É por essas e outras razões que o historiador cumpre valioso papel na sociedade.


De certo modo um grande avanço rumo à valorização desse profissional já se encontra em movimento. Um claro e nítido exemplo disso é a proposta de profissionalização de historiador encarnada na PL nº 4. 699-C (PLS nº 368/09) e que se arrasta já a mais de quarenta anos no congresso nacional. (Ver “Dossiê que regulamenta a profissão de Historiador” – Associação Nacional de História. Disponível em: <http://www.anpuh.org/conteudo/view?ID_CONTEUDO=317>). A proposta de profissionalização do historiador representa um amplo processo de valorização deste profissional, uma vez que o mercado de trabalho não se restringiria apenas ao âmbito do exercício da docência. Teríamos, nesse caso, historiadores trabalhando em instituições públicas ou privadas, como museus, arquivos históricos, centros culturais e históricos, parques naturais e de turismos, entre outros. Outra grande vantagem é a da obrigatoriedade da contratação do profissional para realizar trabalhos de pesquisa histórica, bem como de arquivamentos, datação e conservação de documentos.


O projeto de profissionalização da profissão de historiador é nada mais do que um nítido reconhecimento devido e mais do que justo, uma vez que se encontra em débito a nossa sociedade com tais profissionais. Não se procura por uma apologia à profissão de historiador, apenas à merecida consideração da importância deste para a história de nossa sociedade. Nesse sentido o historiador é um agente da memória social e coletiva, que procura promover o resgate à cultura e tradições. Não obstante, o historiador é o “espírito” sedento por problematizar a realidade social, em suas questões complexas e cotidianas. Carr (1996, p. 25) afirma que “a função do historiador não é amar o passado ou emancipar-se do passado, mas dominá-lo e entendê-lo como a chave para a compreensão do presente”. Ademais, o historiador lida com fatos que o estão em evidência. Continua Carr (op. cit. p. 29 e 15) a dizer que “o historiador sem seus fatos não tem raízes e é inútil; os fatos sem seu historiador são mortos e sem significado. Portanto, minha primeira resposta à pergunta “Que é história?” é que ela se constitui de um processo contínuo de interação entre historiador e seus fatos, um diálogo interminável entre o presente e o passado”.


As proposições de Carr que versam sobre a interação mútua do historiador e seus fatos contribui para avançar no sentido da originalidade desse “espírito” para com o conhecimento histórico. Carr ainda nos alerta para o fato de que o historiador não está inerente a seus fatos, como se estivesse com os olhos tapados frente aos acontecimentos. Diz ele que é preciso estudar o historiador mesmo antes de começar a estudar os fatos. A história e, menos ainda, o historiador, são imparciais. A história e o historiador são elementos de uma mesma substância. Um dependente do outro. A história define o “caráter” do historiador. O historiador define como a história será escrita. No âmbito da escrita da história, o factual e a imparcialidade certamente são conceitos a muito abandonados, apesar de ainda resistirem bravamente. Não há história que não revele uma intenção ou desejo. Não há historiador, no pleno gozo de sua tarefa como promotor da escrita histórica, imparcial ou neutro. São falaciosas, portanto, as proposições, quanto à história e ao historiador, da imanência, da objetividade e imparcial ação mediante os eventos históricos. Veyne (1982, p. 28) já nos advertia que “[...] os historiadores, em cada época, têm a liberdade de recortar a história a seu modo (em história política, erudição, biografia, etnologia, sociologia, história natural), pois a história não possui articulação natural”.


Para Vieira et al (1989, p. 18) “ao historiador cabe dar, ao objeto eleito para estudo, uma explicação global dos fatos humanos, acima de qualquer compartimentação, centrando o eixo dessa explicação nos mecanismos que asseguram a exploração e a dominação de uns homens sobre os outros, e que se traduzem nas relações econômicas, sociais, culturais, nas tradições, nos sistemas de valores, nas ideias e formas institucionais”. Observa-se que o historiador é incumbido da tarefa, as vezes desgostosa, de explicar os eventos a contrapelo da oficialidade institucional e política. Essa crítica, ou mesmo inventividade cética, a que o historiador deve possuir – possuir como um tesouro inalienável e de valor – é substância mais do que necessária para sua completa e coerente leitura da realidade histórico-social. Uma das mais importantes ferramentas da pesquisa histórica e que o historiador faz uso, porque é sua matéria-prima, é o documento. O documento é essencial para o entendimento do processo histórico. Sem ele o historiador não consegue identificar, analisar, interpretar, compreender e escrever a história. Á própria noção de documento revela as transições e mutações da história. Em sua primeira interpretação – que é uma interpretação positivista –, o documento fala por si mesmo. Ele é alvo da objetificação e da descrição. O historiador não intervém em sua narrativa ou na sua substância. A bem da verdade a objetividade do documento histórico já não faz parte da seara da história mundial, ao menos em tese. Grande contribuição deve ser dada à Escola dos Annales, que modificou circunstancial e metodologicamente, a concepção e funcionalidade do aparato documental. Agora o historiador deve intervir. O documento não mais fala por si próprio. O documento é, em suma, problematizado pelo historiador.


Burke (1997, p. 33) desponta para a contribuição efetiva da “originalmente chamada Annales d’histoire économique et sociale, tendo por modelo os Annales de Geographie de Vidal de la Blache a revista foi planejada, desde o seu início, para ser algo mais do que uma outra revista histórica. Pretendia exercer uma liderança intelectual nos campos da história social e econômica. Seria o porta-voz, melhor dizendo, o alto-falante de difusão dos apelos dos editores em favor de uma abordagem nova e interdisciplinar da história”. Dantes a história e o historiador estavam restritos, circunscritos ao campo da história política, dos grandes homens e fatos. Ele não poderia intervir, mesmo sendo ele partícipe daquele processo que descrevera. Sua função precípua era a descrição ‘crua’ dos eventos. Porquanto, no âmbito da história e do ofício do historiador, os Annales despontaram para a crítica ao factível, para a problematização e interdisciplinaridade. Em suas mais de quatro gerações de intelectuais que iniciaram suas atividades a partir de Febvre e Bloch, os Annales trouxeram a Nova História ou História Nova. Se trata da história do cotidiano, dos preços, dos solos, dos climas, das culturas e costumes, das mentalidades.


No contexto das transformações metodológicas encetadas pelos Annales, Shaff (1987, p. 139) afirma que o historiador deve estar comprometido com a verdade histórica. Mas a verdade histórica a que o historiador deve dedicar seu compromisso não é a verdade absoluta e imutável. Trata-se, pois, da verdade de seu tempo histórico, de sua realidade, de seu contexto histórico. Em suma, o historiador deve “[...] integrar num todo coerente o postulado de uma história comprometida, de uma história de classe, de uma história animada de espírito de partido, e o imperativo da cientificidade da história, ou seja, da sua tendência para a verdade objetiva no sentido de uma marcha infinita para a verdade absoluta [...]”.


Os caminhos e descaminhos em que a sociedade se envolve ao longo de sua marcha histórica são, mais detalhadamente precisados, quantificados e hermeneuticamente analisados, pelo “espírito” do historiador. Não se deve omitir sua parcialidade, sua intencionalidade frente à história. Ele (o historiador) é um homem de carne e osso e, por isso mesmo, está sujeito a tomar partido de A ou B. Entretanto, sua tarefa não se finda, pois ela é todo o processo histórico. O próprio historiador é apenas uma pequena peça de uma engrenagem que compõe uma máquina chamada História. Boa semana para todos vocês!


Referências


BURKE, Peter. A Escola dos annales/1929-1989:a revolução francesa da historiografia. São Paulo: Unesp, 1997.


CARR, E. H. O que é história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.


SCHAFF, Adam. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1987.


VEYNE, Paul Marie. Como se escreve a história: Foucault revoluciona a história. Brasília, DF: U.N.B., 1982


VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha; KHOURY, Yara Maria Aun. A pesquisa em história. 4ª. ed. São Paulo: Ática, 1989.

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