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Academia: Um Espaço de Circulação de Saberes

Primeiramente, gostaria de agradecer o convite para compartilhar esse importante momento com todos vocês. Essa é a primeira vez que tenho a oportunidade de agradecer também a todo o colegiado do Curso de História, assim como à direção do Câmpus pela receptividade que tiveram para com a minha pessoa, e também aos discentes com que tive relações diretas nesses últimos meses. Antes de iniciar efetivamente a minha fala, espero que esse ano de 2017 possa ser um ano amplamente propositivo, e que possamos juntos, docentes e discentes maturamos reciprocamente os nossos conhecimentos.



Quando sentei para preparar esse diálogo, lembrei-me do semiólogo francês, Roland Barthes e a sua famosa aula inaugural no Colégio de France no ano de 1977, quando, em sua apresentação afirmou que estava muito feliz em compartilhar aquele momento, porém, não estava honrado, porque a honra para ele poderia parecer algo superficial, imerecida, entretanto, a alegria nunca seria. Assim, me sinto alegre por esse momento, no entanto, pelos motivos explicitados, não me sinto honrado.


Fiquei pensando o que poderia estabelecer como parâmetro para uma aula inaugural. E diante dos rápidos pensamentos, decidi trabalhar com o conceito de circulação como uma esfera pertencente ou, pelo menos que deveria pertencer ao espaço da academia. Penso que o espaço acadêmico, principalmente aquele que está diretamente vinculado ao curso de História, de humanas, deve ser impreterivelmente o espaço onde e quando circula a humildade, no sentido mais filosófico do termo, como nos assegura Rousseau em seu último livro, porém, não menos impactante que os outros denominado, Os Devaneios do Caminhante Solitário.


Quem é humilde, está aberto para novos conhecimentos, recusando rótulos, construindo-os de forma recíproca. Com isso, reitero o que, Viviane Mosé e suas reflexões sobre a educação evidencia, quando, pensa o papel do(da) docente seja ele(a) universitário, ou de outros espaços, como alguém experiente para mediar os saberes dos alunos(as), provocando-os para suscitar e consequentemente socializar os seus conhecimentos com todos à sua volta. Experiência nesse sentido não significa ter ou não ter uma certa idade. Esse é o nosso papel enquanto docente, mediar conhecimentos? Pensando em uma educação humana, acredito que sim, porém, me coloco à disposição para diálogos contrários.


Uma pessoa humana, preocupa-se com aqueles com quem convive socialmente, preocupa-se com aqueles com quem nunca estabeleceu qualquer tipo de relação, preocupa-se com o seu estado, preocupa-se com o seu país. Por meio das preocupações se posiciona para que retrocessos sociais não venham a prejudicar aqueles mais vulneráveis socialmente. Questões essas últimas que podemos presenciar nos últimos meses, quando, uma série de conquistas sociais estão sendo suplantadas por um processo que rompeu com os pilares democráticos em curso.


A reflexão acima pode parecer superficial, porém, essa preocupação sobre o nosso caráter humano, se constitui como uma preocupação que acompanha, ou melhor, provoca os historiadores ao longo do processo histórico, principalmente se nos atentarmos ao clássico livro de René Descartes, intitulado Discurso do Método, quando faz uma dura crítica aos historiadores dentro do seu contexto, a saber, no advento do denominado período moderno, no qual, afirma que o Historiador é em suma, um estrangeiro em sua própria terra, por estar preocupado apenas com os desdobramentos do passado, esquecendo-se dos acontecimentos do seu cotidiano, ou mesmo do tempo presente.


Acredito que a crítica de Descartes não se encontra descontextualizada, a mesma reverbera nos dias atuais, servindo principalmente para nos tirar do lugar comum, afinal, quantos de nós, já ouvimos do senso comum que estudar, ou melhor, fazer o Curso de História se refere a pesquisar o passado e decorar datas? Provavelmente muito de nós já se depararam com essa situação. A primeira impressão que temos ao nos deparar com essa crítica social, geralmente é a de descaracterizar quem faz determinada afirmativa, embora como percebemos, quem há faça está embasado em um dos pilares do pensamento moderno. Recusamos no primeiro momento essa designação, muita das vezes com falas ou pensamentos que retiram a legitimidade do denominado saber popular, quando, a nossa desconstrução pauta-se no seguinte aspecto: “Esse indivíduo não sabe definitivamente qual é a função da História”.


Tendo como base essa última afirmativa, muitos livros já foram escritos procurando evidenciar qual é o papel da História e o Oficio do Historiador, parafraseando o brilhante Marc Bloch. Lembro-me de quando estava na graduação, no qual, um dos meus grandes objetivos no Curso era saber para que servia a História. Em linhas gerais, eu deseja saber o que eu estava fazendo naquele lugar, sendo que poderia estar em inúmeros outros, mas não, estava ali, em nenhum outro, lendo textos, ouvindo e interagindo com os docentes e discentes daquela instituição.


Para ser bem sincero com vocês, acredito que até hoje no meu subconsciente e, isso Freud explica, essa pergunta me tira literalmente do lugar. Afinal, para que serve a História? Afinal, porque estou aqui dialogando com vocês nesse momento? Antes que me interpretem de forma equivocada, não estou caminhando para uma elemento transcendental, de cunho religioso, não é esse o objetivo das indagações, embora respeito quem acredita em respostas que caminham para esse limiar. Provavelmente, essa pergunta demonstra ser tão interessante para eu, porque no primeiro dia de graduação, deparei-me com a mesma, quando, uma determinada Professora me fez a seguinte pergunta: “Para que serve a História”?


Lembro que diante do nervosismo por toda a situação que estava envolto, respondi da melhor maneira possível naquele momento. Provavelmente a minha resposta se deu pelo fato de eu ser um sujeito caipira e, como assegura, Rolando Boldrin, o caipira quando se encontra em situações embaraçosas, consegue ter uma resposta rápida e satisfatória para tudo. Simplesmente segui essa tradição do universo caipira, respondendo com muita convicção o que, até então provavelmente deve ter sido a melhor resposta da minha vida. Porém, naquele momento, para a minha surpresa e alegria posterior dos colegas, a professora calmamente respondeu: “Não é nada disso que você falou”.


Hoje, relutando com o meu próprio ego, sinto um orgulho imenso da resposta distante daquilo que a professora esperava. O meu orgulho deve-se ao fato de não continuar sabendo para que serve a História e, tampouco conseguir compreender porque estou aqui dialogando com vocês. Talvez, no campo das hipóteses, esteja aqui principalmente para compreender cada vez mais que há uma equidade de saberes entre os sujeitos.


Evidentemente que essa assertiva levantada acima não é minha, a mesma se refere provavelmente a um dos mais novos campos de reflexão da História, à saber, a História Cultural, conjuntamente com à abrangência do conceito de cultura popular, que em síntese coloca em patamar de equidade cognitiva um Doutor, não os nossos doutores superficiais, mas, aqueles com titulação com alguém que não teve acesso a escolarização formal.


Antoine Prost em seu livro, Doze Lições sobre a História, afirma que é possível fazer História de tudo. Partindo desse pressuposto, mesmo sem saber para que serve a História, já deduzo que ela é no mínimo importante. Assim, ter feito o curso de História foi importante para minha pessoa enquanto sujeito, assim, como continua sendo enquanto cidadão. Dentro do campo da importância, me sinto na obrigatoriedade de estabelecer um rápido, porém, incisivo diálogo com o historiador italiano, Carlo Ginzburg e, o seu clássico O Queijo e os Vermes.


Tanto no campo da importância, quanto no da circulação de saberes, o personagem principal do livro, a saber, o moleiro Menochio, representa a meu ver, a ideia central do que pesquiso atualmente, que é o conceito de Cultura Popular. Somente para rememorar aqueles que já leram o livro, e para provocar aqueles que não tiveram a oportunidade de ler, vou fazer uma breve síntese do livro. Menochio, um moleiro camponês, que com muitas dificuldades aprendera a ler em um pequeno espaço no interior da Itália. A leitura fora para ele importante porque se sentira indignado com os dizeres que diziam para ele ser verdade, principalmente com os oriundos dos doutores da Igreja.


Dentro de um espaço, no qual, a crença religiosa perdurava fervorosamente, o moleiro em virtude de alguns livros clandestinos que lera, começou a questionar de maneira incisiva as ditas verdades, não bíblicas, mas, daqueles que se diziam representantes dessas verdades. A oratória, culminando com a impressionante capacidade intelectual de Menochio, começou a incomodar os doutores da Igreja que, logo desejaram ter um diálogo mais próximo com o moleiro. Logo no primeiro encontro, em um local no mínimo hostil, o nosso personagem principal manteve a coerência cognitiva, discutindo, dialogando com os doutores, demonstrando para esses os equívocos de interpretação que faziam sobre e da Bíblia. Para Menocchio esses equívocos não eram de forma alguma natural, porém, intencionais, beneficiando os interesses da Igreja e consequentemente daqueles que estavam a seu redor.


Diante da sabedoria demonstrada pelo camponês, os doutores indignados, e não menos incrédulos diante de tanta sabedoria popular, se valeram de uma técnica até os dias atuais muito utilizada, que é o da difamação, desqualificando o pobre do moleiro. No contexto que estamos dialogando, à saber, entre os séculos XV e XVI, a mencionada difamação se caracterizava pela associação feita ao demônio. Não demorou muito para o sábio Menochio ser considerado um herege, influenciado pelo diabo literalmente e sofrer as consequências por ser um sujeito inquieto, crítico, e que não aceitava aquilo que eles diziam para ele que era verdade. Menochio tinha a impressionante capacidade de desdizer, no sentido da dúvida o que diziam para ele.


Provavelmente no contexto atual, se tivéssemos mais pessoas como Menochio, a grande mídia nacional não teria o monopólio que tem e, não estaríamos ‘experienciando’ tantos retrocessos sociais como o que vemos descortinar cotidianamente a nossa frente. Porém, esse é um assunto para um outro momento. Voltando para as desinibidas capacidades intelectuais de Menochio, penso que o mesmo não fora morto necessariamente por estar duvidando das pretensas verdades divinas, mas, por afrontar o conhecimento daqueles que se consideravam os grandes sábios da época. O moleiro italiano provocou e questionou o ego dos sábios, rebaixou seus conhecimentos, dizendo em síntese o seguinte: “Vocês que se acham tão sábios, na realidade não sóis”.


No contexto contemporâneo, podemos perceber a crítica de Menochio, nos valendo de uma assertiva do grande literato Umberto Eco, que disse que: “A Internet possibilitou e deu voz aos idiotas”. Direta ou indiretamente quando nos deparamos com algo que não concordamos nas redes sociais, socializamos a assertiva do escritor de, O Nome da Rosa. Em suma, desqualificamos, rebaixamos o que distancia de nossas convicções, chamando-os de idiotas. Evidentemente que essa questão não significa que devemos corroborar com tudo, o diálogo, assim como as contradições não somente bem vindas, como são necessárias dentro de um processo democrático.


No entanto, há uma diferença enorme em se distanciar no quesito pensamento e, desqualificação do sujeito que pensa diferente de nós. Compartilho algo com vocês, penso que estamos nos tornando cada vez mais uma sociedade intolerante, comprometendo seriamente a estabilidade de uma democracia ainda frágil como é a brasileira. Como diz o Professor Rezende Bruno, há duas semanas atrás, em uma fala eminentemente acadêmica nesse mesmo lugar, quando, afirmou que estamos com dificuldades de respeitar as diferenças em um país das diferenças como é o Brasil. Posso não saber muito bem para que serve a História, porém, se a mesma me der condições de ser um ser humano mais humano, penso que já foi válido não ter tido condições de responder à Professora quando me fez a pergunta que mencionei no início dessa reflexão.


Para finalizar momentaneamente esse diálogo com vocês, atualmente pesquiso um famoso contador de causos da região de Bela Vista de Goiás, conhecido popularmente como Geraldinho Nogueira que, soube como poucos retirar as dramaticidades de uma vida marcada por dificuldades sociais. Desdramatizou sua vida por meio de um riso contagiante, envolvente que explica consideravelmente o posicionamento sociocultural das camadas populares nos rincões desse imenso país. O Contador de causos, assim como uma boa parte dos brasileiros, não teve acesso à educação formal, sendo considerado um indivíduo sem escolarização. No entanto, ao pesquisa-lo, percebi que o saber acadêmico, desde que você não respeite as diferenças sejam elas de cunho religioso, social, cultural, regional, sexual, no campo das minorias étnicas, entre outros, não serve para quase nada, a não ser para aguçar o nosso próprio ego.


Geraldinho, penso eu, se constitui como um representante do universo das pessoas pobres, humildes desse país, no qual, infelizmente muitos desses indivíduos não tiveram a oportunidade de frequentar os bancos escolares como mencionei anteriormente. Entretanto, essa peculiaridade na vida de Geraldinho não faz dele como um representante social, menos sábio do que qualquer um de nós que se encontra nesse espaço, pelo contrário, quem tiver a oportunidade de estudar esses meandros da cultura popular, perceberá que os saberes circulam em diferentes espaços sociais.


Desse modo, acredito que a academia, assim como o curso de História, não é o lugar para você adquirir conhecimento, pelo contrário, penso que o Curso de História, assim como a academia, constitui-se como o espaço para você reconhecer os outros saberes que não são evidentemente os seus. Reconhecer os diferentes saberes, equivale a maturar os seus próprios conhecimentos.


Com essa afirmativa encontrei a resposta para que serve a História? Confesso para vocês que continuo sem saber para que, a História pensada como ciência serve e, sinceramente espero que possamos continuar procurando essa resposta conjuntamente. E ainda no campo da sinceridade, torço muito para que nenhum de nós possa encontrá-la, para vivenciarmos um labirinto de buscas constantes. Busca pelo conhecimento? Não, pelos conhecimentos, e busca principalmente pelo respeito às diferenças.


Agradeço imensamente pela atenção de vocês.

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