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A face da fome

Na década de 90 o som vindo do Mangue do “Maracatu” de Chico Science denunciava a fome presente em um país de desigualdades e vergonhosas misérias, submersas como um caranguejo dentro do lamaçal do descaso de nossos governantes, a fome assustava e matava em nosso país em proporções semelhantes a uma guerra, ao fim dos anos 90 a fome matava em média 300 crianças por dia no Brasil, além de deixar um rastro de milhares de subnutridos, o cenário de calamidade colocava o Brasil entre os países pertencentes ao mapa da fome da ONU, a fome em nosso país era paisagem, tratada como natural por nossos governantes, de tão natural parecia um projeto governamental muito bem planejado e organizado, mas Chico cantou “Com a barriga mais cheia comecei a pensar que eu me organizando posso desorganizar” e nos fez despertar.


Os primeiros questionamentos a respeito da fome no mundo eram pautados na capacidade produtiva de alimento, o jovem pastor e sociólogo Thomas Robert Malthus em 1798 argumentava que a fome era consequência da incapacidade da produção alimentar atender ao crescente número populacional, Malthus elegeu como os principais culpados pela fome os pobres, justificando que a fome era uma consequência da própria irresponsabilidade dos pobres por sua excessiva reprodução biológica, propondo como solução um “controle moral” incluindo abstinência sexual, aumento da idade média de casamentos e redução do número de filhos. As previsões catastróficas de Malthus nunca se confirmaram, mas após a Segunda Guerra Mundial, o crescimento populacional nos países periféricos proporcionado pelo avanço da medicina reduzindo a mortalidade infantil alarmou os estudiosos da fome retomando as ideias de Malthus reformulando-as sob o nome de neomalthusiana, mas novamente colocando a culpa nos pobres, sendo novamente adotadas como medidas o controle de natalidade, distribuição de métodos anticoncepcionais e esterilização em massa de parte da população pobre como aconteceu na Índia e na Colômbia.


Somente com o advento das teorias reformistas ou marxistas que o olhar sobre a questão foi mudado, e a miséria passa a ser culpa da desigualdade social e o crescimento populacional passa ser uma consequência dessa desigualdade e não o motivo dela como pregavam as teorias anteriores. Segundo este novo olhar, para solucionar o problema da fome e da superpopulação é preciso solucionar as desigualdades sociais e assim os problemas anteriores se solucionariam naturalmente. Neste novo momento a fome deixa de ser um problema meramente de produção de alimentos e passa a ser essencialmente um problema de condições financeiras para pagar pela comida.


Para Maria do Carmo Freitas em seu livro a Agonia da Fome, “a fome é produzida pelas condições sociais, econômicas e políticas dadas por um modelo estrutural e/ou conjuntural, correspondente ao poder aquisitivo, a produção de alimentos e os efeitos das crises econômicas sobre a pobreza. Ou melhor: a fome crônica torna-se a expressão de uma sociedade com desigualdades extremas, cuja erradicação implicaria, necessariamente, transformações sociais.”


No Brasil um dos primeiros e mais importantes estudiosos da fome foi o Geografo/Médico Josué de Castro, que a partir de uma minuciosa análise da situação brasileira produziu valiosos conceitos a respeito de uma fome que tanto era biológica que agia voraz e destrutivamente sob os corpos, como também simbólica, produtora de subjetividades e relações invisíveis dentro de nossa sociedade, ao qual Castro chamou de fome oculta, revelando a realidade de um país de milhões de subnutridos.


A fome e a subnutrição no Brasil possuem características próprias de nossa realidade socioeconômica, confirmando as constatações apresentadas por Castro o economista Paul Singer reafirma que esta “fome endêmica é antes de tudo um problema de falta de dinheiro. As pessoas que sofrem desse mal não se alimentam adequadamente porque não têm dinheiro suficiente para comprar comida. Há dados abundantes para o Brasil de pesquisas de orçamento familiar. Todas demonstram nitidamente que existe uma correlação perfeita entre níveis de renda e níveis de alimentação.”


A correlação entre fome e poder aquisitivo nos parece óbvia, e ainda assim as políticas públicas no Brasil apenas trataram de remediar momentaneamente as consequências, sempre deixando de lado as reais causas do problema. Para Oliveira (1981) “Mesmo sendo a fome um problema crônico, a retórica do discurso governamental vislumbra a emergência como uma constatação de calamidade social, compreendendo a fome como um acidente de passagem, em trânsito pelo território corporal dos pobres. Para os governantes e seus tecnocratas, nas entrelinhas dos seus discursos (desde sempre), os famintos não sabem reverter suas condições carenciais por ignorarem o valor do leite materno ou a dieta mínima para uma sobrevivência saudável. Ao lado disso, um projeto econômico que fortalece a concentração de renda não poderia andar junto à melhoria da qualidade de vida da maioria, e muito menos solucionar o problema histórico da fome dos brasileiros”. Assim essencialmente a fome é remediada através de programas de caráter assistencialista, enquanto a desigualdade social e a concentração de renda é mantida.


Diante da profunda situação de miséria de parte da população os programas assistencialistas possuem sim o seu valor, porém não devem ser pensados como medida única, pois apenas amenizam o problema, que precisa ser resolvido a longo prazo com políticas que promovam uma melhor distribuição de renda. Mas devemos nos lembrar que este país é o país da exclusão e da indiferença, e que aos poderosos não interessa uma redistribuição de renda, e até mesmo os programas assistencialistas sofrem os ataques de ódio por parte dos poderosos donos do capital, considerando-os um “gasto desnecessário” que gera “prejuízo para a economia”, e a propaganda negativa convence até mesmo as camadas populares que reproduzem o discurso de ódio da elite ao afirmarem que: “bolsa família é dar dinheiro para vagabundos”.


Para Fernando Pedrão a fome é o “produto da indiferença da reprodução do capital no Brasil, sobre o povo” tanto que chegam ao ponto de inúmeros casos prefeitos e governadores que desviam dinheiro da merenda escolar, retirando de muitas crianças a única refeição que elas teriam no dia. Mas não é apenas um roubo de dinheiro qualquer, quem rouba da merenda escolar rouba também o futuro destas crianças, retira delas possibilidade de uma aprendizagem normal, pois a subnutrição dificulta também o desenvolvimento cognitivo das crianças.


Em um país que insiste no discurso da meritocracia a equação da situação é bem simples, é preciso um alto grau de estudo para conseguir um bom emprego, e se você é pobre e não deseja morrer de fome, vai precisar estudar e trabalhar ao mesmo tempo o que certamente prejudicara a qualidade de seus estudos, que posteriormente quando a competitividade da meritocracia exigir, você ficará de fora da seleção dos melhores, pois aquele que teve uma boa alimentação e teve o privilégio de se dedicar exclusivamente aos estudos seja na fase inicial ou no ensino superior certamente levará uma grande vantagem nas disputas pelos melhores empregos e pelas melhores vagas em universidades, então sim, a fome é um produto da desigualdade e ao mesmo tempo reprodutor de desigualdades. Mas para mascarar a injustiça social, certamente a grande mídia usara o exemplo do senhor “José” um pedreiro que caminhou 20 km todos os dias para fazer sua faculdade e que com muito esforço e economia conseguiu comprar sua casa própria como um exemplo de “sucesso” para justificar os milhares de excluídos produzidos por este processo.


Dizia o ditado popular: “Cara feia pra mim é fome” e realmente a fome é a face mais asquerosa da desigualdade, do descaso, da corrupção e da desumanidade de nossa sociedade, a fome é a destruição do corpo no sentido físico e da dignidade no sentido simbólico. Lutar contra essa mazela de nossa sociedade é um dever moral de todos nós. Queremos nos saciar da fome, mas não apenas a fome do alimento físico, mas também a nossa fome de futuro, de perspectiva de vida e de esperança de um futuro melhor. Como dizia Arnaldo Antunes em tempos de Titãs: “A gente não quer só comida, a gente quer comida diversão e arte, a gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte...”


Boa semana amigos!





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