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Academicismo

Não há dúvidas quanto ao papel relevante que a universidade desempenha no conjunto da sociedade. Em todos os níveis do cotidiano o espaço universitário promove a necessária articulação entre o conhecimento científico e as necessidades que a sociedade impõe a si mesma historicamente. Importantes e imprescindíveis avanços sociais, políticos, econômicos e culturais resultaram de uma intensa participação da universidade como campo da difusão do saber e das ideias, bem como ambiente saudável para a pluralidade de opiniões, pensamentos e teorias.



É por concordar com a ideia de que a universidade é importante para todos nós que acreditamos que ela não pode sofrer reveses e limitações intencionalmente provocadas, quer seja como espaço democrático de debate de ideias e opiniões, bem como lugar que contribui para o crescimento e o desenvolvimento socioeconômico e cultural. Sabemos que nos últimos tempos a universidade pública vem sofrendo à duras penas com redução drástica do orçamento federal e estadual, realidade que infelizmente contribui para o arrefecimento das atividades e pesquisas acadêmicas. Supostamente se diz que o problema está na crise econômica, algo que não concordamos. O real e verdadeiro problema está sim na má gestão do bem público por parte dos agentes políticos, nos atos ilícitos imputadores das práticas corruptivas destes e na falta de sensibilidade ou mesmo de interesse e/ou força de vontade política de não valorizar a universidade como realmente deveriam. Estas são algumas questões sintomáticas que devemos lançar mãos.


Não obstante, convém assinalar algumas questões pertinentes quanto ao modus operandi da universidade no que toca ao pragmatismo de seus agentes funcionais. De certo modo, apenas aqueles que pertencem ou pertenceram ao ambiente universitário compreenderam com maior eloquência a crítica que estamos construindo neste texto a despeito de um egoísmo exacerbado que por razões obvias transmuta-se em academicismo. A partir de uma perspectiva genuinamente analítica, a universidade concentra seus esforços na dita “produção do conhecimento”. Nada mais sugestivo, uma vez que o conceito de “produção”, no qual Marx se debruçou e no qual não iremos aqui explicitar por ser de vasta sua análise sobre o mesmo, antecede na construção discursiva o termo “conhecimento”. Significa que, como numa fábrica ou grande empresa, o “produzir”, nos termos quantitativos, sobrepuja-se ao subjetivo, ao qualitativo. Como no sentido e na lógica da produção de mercadorias, onde o tempo é um elemento estritamente substancial e devidamente calculável, na universidade temos que nos moldar à essa dinâmica e medida de tempo quantificáveis da produção capitalista. Sempre se trata do texto, da resenha, do artigo, da monografia, da dissertação e da tese que devem ser “produzidos” como que um calçado ou um utensílio doméstico. É sempre os prazos a serem cumpridos que determinam as relações acadêmicas. Trata-se também das publicações em quantidades colossais. Diria que atingimos um novo estágio da evolução de nossa espécie, o homo lattes. A vida de qualquer sujeito que adentra em uma universidade qualquer depende exclusivamente do currículo que esse vai tecendo ao longo da carreira acadêmica.


Além do aspecto da “produtividade” acadêmica estar na esteira da produção capitalista, existe um fantasma que assombra a universidade, me refiro ao egoísmo. Mais do que nunca, o ambiente universitário tem demonstrado que os lobos devoram as raposas. Impera no seio da universidade e da academia uma disputa concorrencial de egos, onde o que vale mais são os títulos, a quantidade de artigos, textos e livros publicados, o número de orientações dadas, de projetos aprovados e etc. Trata-se de um ambiente plenamente egocêntrico, em que as veleidades de mestres, doutores e pós-doutores determinam as estruturas acadêmicas, os grupos, aqueles “privilegiados”. Utópicos seríamos se achássemos que a universidade se separa do restante da maça podre. Como em qualquer outro segmento da sociedade, a universidade é uma estrutura onde prevalece a lógica do compadrio, do paternalismo, dos conchavos, da política de “uma mão lava a outra”. Ela (a universidade) talvez seja um segmento da sociedade onde o egocentrismo esteja caracterizado da forma mais fecunda.


É assustador perceber como os desdobramentos internos de uma universidade implicam em um jogo sujo de relações de poderes, onde não só lobos devoram raposas, mas lobos devoram lobos. É indubitavelmente horrendo como as vaidades acadêmicas operam em grande parte de seus agentes, renegando outras formas e possibilidades de conhecimento, saberes e experiências. As vezes penso que a universidade não cumpre com sua missão, baseada em um tripé ensino-pesquisa-extensão, onde a extensão, ponte entre ela (a universidade) e a sociedade é genuinamente deficitária. Em grande medida, a universidade, no que se refere à extensão, não se dispõe a incluir em suas diretrizes os saberes populares, a experiência e o conhecimento provenientes de outros segmentos sociais, sujeitos, indivíduos e agentes.


Certamente se pode afirmar com dúbia precisão, levando em consideração as posições em contrário, que a ainda insistente resistência da universidade em assimilar os saberes populares ocorra em significativa parcela pelas razões objetivas e pragmáticas das disciplinas parcelares e da autoridade científica. Criamos um monstro. Vivenciamos a era dos “especialistas”, nos termos de Foucault e Bourdieu. O primeiro afirma categoricamente que os “especialistas”, aqueles que se dedicam a apenas uma ciência ou disciplina, são “instauradores de discursividade”, pois suas convicções e domínio sobre tal ciência ou disciplina impõe autoridade discursiva. Ora, como falar em Capital sem ler Marx? Eis a imputação autoritária. Ne esteira de Foucault, Pierre Bourdieu condena as estruturas já predispostas no que denomina de “monopólio da competência científica”. Competência esta intimamente relacionada a “autoridade científica”, inseparável de sua capacidade técnica e objetiva de domínio sobre determinada ciência. Como redarguir ante a autoridade cientifica? O poder social o impede.


A era de ouro dos “especialistas” imputou a uma determinada elite intelectual o potentado do saber e a soberania do conhecimento. O dito “científico” relegou a outras formas de saber a depreciativa condição de senso comum. O que não se encaixa nos parâmetros da ciência é senso comum ou de nenhuma relevância. O lamentável disso tudo é que a universidade se perpetua como espaço e ambiente dessa soberba intelectual. É um egoísmo em todos os níveis que se transforma em academismo.


A universidade precisa resgatar sua forma antiga de ser o espaço de difusão do conhecimento em diferentes ângulos e perspectivas. A universidade precisa ser um espaço democrático em que diferentes olhares e visões de mundo possam estar amplamente em um contexto de diálogos e assimilação. O desafio se torna extremamente difícil e complexo diante a universidade que encontramos. Todavia, a luta deve sempre continuar.


Tenham todos um excelente dia.

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