O 8 de Março se tornou um dia referencial em que – dizem – comemora-se o Dia Internacional da Mulher. Historicamente, o 8 de março se tornou um marco no ano de 1857 quando um grupo de mulheres de Nova York que trabalhavam em uma fábrica de tecidos, iniciaram uma série de movimentos e manifestações de luta em busca de melhores condições salariais, redução da jornada de trabalho e licença-maternidade. Resultado: morreram queimadas pelos policiais que continham as manifestações. Não por acaso, mulheres já eram mortas em fogueiras pela Inquisição no período medieval, acusadas de, supostamente, praticar bruxaria. Na verdade, estavam aplicando conhecimentos de alquimia e curandeirismo, que eram, por sua vez, relacionados à feitiçaria. Não raras vezes, a simples aglomeração de mulheres já induzia os inquisitoriais à denúncia, posterior acusação e condenação por hipotéticos atos de feitiçaria e/ou bruxaria.
Do ponto de vista do calendário, essas datas referenciais, como o Dia Internacional da Mulher (8 de março), Dia do Índio (19 de abril), Dia da Consciência Negra (20 de novembro), entre outras, assumem, ao meu ver, aspecto puramente reflexivo. São datas importantes? Sem sombra de dúvidas. Discordo, tão somente, de sua dimensão comemorativa. Isto é, diz-se que “comemora-se” o Dia da Mulher, “comemora-se” o Dia do Índio, etc. Ora, o aspecto comemorativo não cabe aqui, uma vez que estamos a passos largos de uma sociedade justa, fraterna e igualitária em relação às mulheres, aos indígenas, aos negros, ou seja, às minorias de nossa sociedade. Penso que tais datas possam ser articuladas não para celebrar, mas sim para construirmos uma reflexão em diferentes espaços da vida cotidiana de crítica social e esclarecimento de questões concretas, como racismo, desigualdade de gênero, genocídio autóctone, entre inúmeras outras possíveis.
Em particular, no que se refere ao 8 de março, não teríamos nada a celebrar. Ao contrário. Apenas paremo-nos para refletir sobre as estatísticas. Segundo dados publicados pela Organização das Nações Unidas (ONU) em relatório que trata sobre o feminicídio, a cada uma hora, seis mulheres são mortas no mundo. Em 2017, 87 mil mulheres morreram no mundo vítimas de feminicídio. Em 58% desses casos (cerca de 50 mil), as mortes foram cometidas por conhecidos, neste ponto, ou por companheiros, ex-namorados, ex-maridos ou mesmo familiares. O relatório enfatiza ainda que o espaço doméstico é o mais perigoso para as mulheres e é determinantemente resultado de um longo processo de violência psicológica ou física já vivenciados (ONU/Onudd, 2018).
O Continente Americano é o segundo mais perigoso para as mulheres, perdendo apenas para a África, diz o relatório. Na América Latina, nove mulheres são assassinadas diariamente. No Brasil, a cada dia, três mulheres são assassinadas, vítimas de feminicídio. A grosso modo, as principais motivações que o relatório indica como componentes da prática do feminicídio são o ciúme, associado ao compulsório desejo de posse da companheira, a rejeição por parte da mulher em um futuro relacionamento, ou até mesmo uma simples discordância conjugal.
Todavia, é preciso considerar que, do ponto de vista jurídico, o Brasil é reconhecido por avançar significativamente no que tange a um projeto que criminalize a violência contra a mulher. A tipificação do crime de feminicídio e a consolidação da Lei Maria da Penha elevou, a patamares nunca antes vistos a possibilidade de denúncia e punição àqueles que praticam covardemente atos violentos em relação à mulher. Entretanto, na prática, o que se percebe diariamente é que, apesar da legislação e de todo arcabouço jurídico, as denúncias ainda são incipientes, as punições, quando acorrem, são paliativas e em grande parte falhas em alguns aspectos. Além disso, a estrutura de delegacias para atender as ocorrências e denúncias são ainda extremamente precárias, constituindo assim, em um obstáculo à dinamicidade nos processos de acolhida da denúncia (quando há denúncia) e de medidas cautelares e protetivas.
Como se pode notar, os números apresentados pelo relatório da ONU acenam para uma conjuntura de guerra. A violência praticada contra a mulher, nas circunstancias que aqui estamos descrevendo, são representações históricas e sociais, de um processo de construção das sociedades humanas que remonta a origem dos primeiros grupos humanos, estes, com base sempre na figura do pater famílias. A figura masculina, historicamente, esteve (e ainda está) associada àquele que provém a manutenção do lar e da família, panóptico de protetor e conservador dos valores morais familísticos.
Este histórico e sociológico mundo patriarcal moldou nossas mentalidades e nossos quadros culturais, de um modo geral, a legitimar o exercício de atos soberanos e violentos contra a mulher, como se esta não fosse um membro em igual importância na orbita familiar, mas sim, tomada secundariamente, acessoriamente a este último. É na formação dos primeiros núcleos familiares (frátrias, clãs e genos) que se pode considerar o limiar da desigualdade entre homens e mulheres, bem como da violência, seja, mental, psicológica ou física contra a mulher.
Além do feminicídio, a desigualdade de gênero também é outro fator que se constitui como um grande desafio. Não é preciso muito esforço para demonstrar, estatisticamente, que a mulher ainda ganha menos do que o homem. Em pesquisa realizada no ano de 2018, o IBGE constatou que as mulheres brasileiras continuam a receber menores salários em relação aos homens, ocupando os mesmos cargos e postos de trabalho que estes. De modo geral, a pesquisa revelou que as mulheres representavam cerca de 45, 3% da força de trabalho e ganhavam 79,5% do total do salário pago ao homem. Ou seja, uma diferença de 20,5%, diz a pesquisa. Ademais, os cargos de chefia – apesar de relativo aumento, ressalta a pesquisa – ainda continuam a serem ocupados, em sua grande maioria, por homens (IBGE, 2018). Basta nos remetermos ao parlamento brasileiro e veremos, também, esta nítida diferença nos quadros de seus componentes.
Nossa formação social, como já o demonstramos, moldou-se por meio do patriarcalismo, que ao longo do processo histórico sedimentou nossas práticas culturais, nossos quadros linguísticos, nossas redes mentais e nosso imaginário a um machismo condicionado à naturalização. Esta assombrosa constatação pode ser facilmente notada nos mais variados comentários pejorativos, nas cantadas (que por sua natureza já absorvem elementos machistas), no olhar (que não escapa à objetificação do corpo), nos discursos políticos e religiosos, em que impera o hábito autoritário do manterrupting (termo que se refere à interrupção da fala ou discurso feminino por homens, antes mesmo de serem concluídos).
No tocante ao Dia Internacional da Mulher, acredito poder dizer que não temos nada a comemorar de fato. Não se deve oferecer flores ou chocolates neste momento. Nem mesmo parabenizar a nenhuma mulher, enquanto outras inúmeras estão sendo mortas, massacradas, exterminadas, humilhadas. Devemos refletir sobre tudo isso e valorizar a luta pelo empoderamento feminino, continuar buscando alternativas de enfrentamento que possam culminar em igualdade de direitos entre homens e mulheres, em sentido prático. Há ainda muita confusão, o que em partes é induzida, a respeito do feminismo. Tal movimento requer melhor clarificação de suas propostas e objetivos para não cair no ostracismo proselitista, e isto se dá por meio de uma medida que atente às suas genuínas intenções. Cabe alcançar meios alternativos de discussão, espaços outros que não os oficiais e institucionalizados apenas, estes já manchados pelo lamaçal da cultua patriarcal e machista. O feminismo, ao contrário do que muitos pensam e propalam de modo equivocado, não requer a superação da mulher em relação ao homem. Busca, no entanto, equiparação e o equilíbrio de direitos, o que já está garantido em nossa Constituição.
Em termos concretos, a luta em prol da igualdade de gênero e ante os alarmantes índices de feminicídio devem ocupar os diferentes espaços sociais e políticos, seja no âmbito doméstico, no trabalho, na escola, nas universidades, no campo, na cidade, nas ruas, nos bairros, nas vilas, etc. Será igualmente importante estarmos atentos e proativos à luta em defesa da igualdade entre homens e mulheres, que, quando nos despertarmos, veremos que tal empreendimento não deve apenas ser encabeçado por mulheres. Aos homens também se delega tal responsabilidade, pois não se trata aqui de oposições de sexo ou gênero, mas de defesa de iguais condições e direitos humanos em sociedade.
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