Os partidos de esquerda no Brasil terão que olhar para o resultado das eleições municipais de forma muito crítica, procurando compreender o cenário não somente com os olhos no presente, mas também recuando o olhar para o passado. O esmorecimento dos projetos de esquerda é resultado das ações e das omissões dos partidos políticos, das suas lideranças e de parte da militância que, em inúmeras ocasiões, se vê impossibilitada de compreender o outrem como agente político e social, como um vetor de transformação.
É nítido, a estagnação da esquerda partidária não é resultado do agora, tem sido gestada ao longo dos últimos anos, tendo como protagonista dessa gestação os desejos dos grandes meios de comunicação de responsabilizar não somente o Partido dos Trabalhadores, mas toda a esquerda, pelos problemas estruturais e históricos do país. O interesse da mídia tradicional não é o de solucionar os problemas de desigualdade social, de racismo, violência de gênero, homofobia, soberania alimentar, preservação do meio ambiente, entre outros. Pelo contrário, o objetivo é manter, sem a mínima alteração, a estrutura social, perpetuando e, até mesmo, ampliando esses problemas, objetivando garantir os lucros do capital financeiro. Para os grandes meios de comunicação, vidas não importam, o que importa mesmo é não deixar o mercado nervoso.
No entanto, independentemente das intenções, é nítido que o objetivo das elites, tendo nos meios de comunicação tradicional o seu porta voz mais eloquente, tem sido bem sucedido, isso porque virou pauta comum, no meio social, associar os problemas estruturais aos treze anos que o Partido dos Trabalhadores esteve no poder. Indubitavelmente, a narrativa elitista tem tido êxito. Nesse sentido, qualquer análise que procura pensar à crise da esquerda partidária, não levando em consideração o papel fundamental dos grandes meios de comunicação, poderá ser considerada uma análise desonesta intelectualmente. Isso porque, em países que estão na periferia do capitalismo mundial, situação do Brasil, a mídia burguesa tem um papel preponderante, despolitizando os atores e atrizes sociais na medida em que os individualiza.
Apesar disso, analisar todo o processo de crise da esquerda partidária somente pela criminalização imposta pela mídia é, também, desonesto. A crise enfrentada pelos partidos de esquerda é mais profunda. Nesse momento, a crise é de caráter estrutural. Por exemplo, infelizmente uma parcela considerável da esquerda reluta em admitir que a prática da conciliação não é mais possível. Insistem em conciliar com os donos do poder mesmo depois do golpe parlamentar de 2016, prisão arbitrária de Lula, e vitória eleitoral de Bolsonaro. Todos esses fenômenos recentes somente foram possíveis porque os setores das elites dominantes resolveram romper com a prática da conciliação, assumindo, de vez, o seu projeto de destruição, sem fazer nenhuma concessão. Porém, parte da esquerda partidária reluta em reconhecer a volta da normalidade por parte dos setores dominantes, acreditando que a política da conciliação possibilitará sua sobrevivência, quando, ao contrário, conciliação tem significado o fim da esquerda.
Outro problema elementar, de caráter estrutural, é o já conhecido distanciamento das bases, representada pela crise de legitimidade dos partidos políticos e dos sindicatos, conforme apresentou o cientista político Luis Felipe Miguel[1]. De fato, a maioria das pessoas não se sentem mais representadas por essas instituições. O vetor do distanciamento não é somente pela política de desarticulação, despolitização e individualismo promovida pelo neoliberalismo midiático, passando prioritariamente pela dificuldade dos partidos de esquerda, nosso objeto de reflexão, de conseguirem compreender, propor e ouvir a partir das dores dos mais pobres.
A narrativa dos partidos de esquerda, excetuando algumas lideranças, não têm se diferenciando muito do discurso da direita e, em muitas situações, têm se aproximando da leitura de mundo da extrema-direita. Por exemplo, em muitas cidades/municípios, a narrativa apresentada foi de cunho moralista e nitidamente conservador. Houve dificuldade para propor um projeto político de transformação social, de combate à pobreza, de fim da violência policial, de lidar com o problema das drogas como questão de saúde pública, humanitária e social, e não como caso de polícia, houve dificuldade para tratar do racismo estrutural, da homofobia, da violência de gênero, da legalização do aborto, e de tantas outras pautas que pautam a vida dos mais pobres.
Se a esquerda não consegue apresentar projetos que tenham o intuito de acabar com a desigualdade social, se não fala em ampliação de direitos, se não consegue apresentar um projeto político/econômico anticapitalista, o que essa esquerda tem de diferente da direita? Nesse momento, os partidos de esquerda estão padecendo de um grande problema, a saber, o medo de conquistar mentes e corações. A esquerda partidária deveria se pautar pela utopia, não pelo medo.
Quando o medo de perder eleições faz com que partidos não levem para o debate público questões como legalização do aborto, fim da homofobia, luta contra o capital, isso significa que não existe mais esquerda. É evidente que essa leitura não é generalizante, entretanto, está distante de ser pontual. O resultado do medo é nítido, isso porque a esquerda partidária não está conseguindo fazer com que as pessoas se encantem por seus projetos. Quando não existe encantamento, quando o discurso de despolitização parece fazer sentido, a saber, “político é tudo igual”, a possibilidade do desparecimento torna-se cada vez mais real.
Dentro da democracia burguesa, perder ou ganhar eleição faz parte do processo, porém, o projeto de esperança, de utopia, tem que aparecer no debate público. A busca não é, e não pode ser, pelo poder. O objetivo norteador dever ser o da transformação. E a transformação passa pelo trabalho de base, por meio do diálogo atento diante da dor dos pobres, se inquietando com a angústia dos oprimidos, e apresentando possibilidades de transformação. Os partidos de esquerda têm que existir para defender e ser apropriado pelo povo pobre e oprimido. Não pode ter medo, e tampouco duvidar da capacidade de compreensão das pessoas. Pelo contrário, o caminho está na crença de que o povo é o único capaz de promover a verdadeira e necessária revolução, construindo um país radicalmente democrático. Somente será possível falar em Democracia quando igualdade e liberdade caminharem de mãos dadas.
A esquerda partidária tem que buscar a política da conciliação, no entanto, essa conciliação não pode ser, em espécie alguma, com as elites, deve ser com o povo pobre e oprimido. Nesse caso, talvez seja reconciliação.
Notas:
[1] O Professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UNB) apresentou a ideia da crise de legitimidade dos partidos de esquerda e dos sindicatos no Seminário promovido pela Editora Boitempo, intitulado Formas de organização política: partidos, sindicatos, movimentos sociais. A conferência do Professor foi publicada recentemente, estando disponível no canal da Boitempo no YouTube.
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