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A Escola dos Annales e a revolução na historiografia: alguns apontamentos



O movimento historiográfico dos Annales em 1929, tendo como marco inicial a organização e elaboração de uma revista - Annales d'histoire économique et sociale – consistiu, como afirma Peter Burke, em uma verdadeira e genuína revolução na historiografia. Por mais que o termo empregado por Burke (1991) possa soar demasiado exagerado para alguns, a dimensão aqui proposta a respeito desse movimento para a História como ciência e disciplina acadêmica desatou em diferentes concepções e problemáticas que outrora permaneciam inertes.


Tendo como seus fundadores Lucien Febvre e Marc Bloch, a Escola dos Annales – como também é denominada – introduziu nas abordagens da ciência e do conhecimento histórico novos objetos e temas de pesquisa que antes não estavam na ordem do dia. A partir dessa “inovação” na historiografia, o movimento dos Annales incorporou uma história-problema, em grande medida, substitutiva a uma História Política e Factual, herança do Positivismo do século XIX (BURKE, 1991).


Para Diehl (2004), o movimento dos Annales implicou na abertura da história a outras áreas do conhecimento, como linguística, antropologia, arqueologia, paleontologia, etnografia, geografia, economia, etc., bem como promoveu uma ampliação à concepção de fonte histórica, não apenas considerando-se os documentos escritos como válidos para o historiador, mas, também, o reconhecimento da tradição oral, dos achados e vestígios arqueológicos, iconográficos, entre outros. Entretanto, o principal aspecto inicialmente empregado pelo autor é o processo de “reorientação da tradição historiográfica dos Annales” em um outro processo que culmina na “fragmentação”, ou seja, “no esfacelamento da disciplina histórica dos vínculos originais da “escola” (p. 200). Significa, portanto, o intuito do autor em revelar a própria mudança dos quadros teóricos e metodológicos iniciais dos Annales a partir de dentro do próprio movimento, cumprindo assim sua “função dialética”.


Conforme esclarece Dielh (2004), essa reorientação dos Annales reveste-se de um movimento naturalmente dialético, portanto, de forma alguma irracional. Desse modo, o autor ressalta dois momentos importantes no conjunto de mudanças e reorientações nos quadros teórico-metodológicos do movimento dos Annales, sendo o primeiro de 1929 a 1969 e o segundo de 1969 em diante. No que se refere ao primeiro momento (1929-1969), o autor observa que se trata de um período em que as primeiras gerações dos Annales priorizavam uma história total e global, em que a principal mudança estaria na transição de uma história factual para a história estrutural. Isto é, “pela visão global, recusa-se a singularidade do “fato histórico” isolado e abrem-se possibilidades de sistematização da visão estrutural da história”. No tocante ao segundo momento, este, por sua vez, caracteriza-se, como salienta François Furet citado por Dielh (2004, p. 201-203), como sendo de uma “excessiva compartimentalização da história evidenciando o abandono da proposta inicial da síntese histórica ou da “história social” do total”.


Ainda neste segundo momento definido por Dielh, convém acrescentar o fato de que a crítica de Furet se insere no processo transitório de gerações do movimento dos Annales, fato já mencionado por um de seus “pais fundadores”, Lucien Febvre. Além disso, a transição mencionada de uma história total, voltada, sobretudo, para uma síntese global, à uma história compartimentalizada, fraturada, reorientou-se especialmente a partir de alguns fatores, em que se destacam a concepção de história-problema, a nova perspectiva de fonte histórica, a interdisciplinaridade e, não obstante, a pluralidade de temporalidades (curta, média e longa duração), na relação espaço e história (junção da geografia com a história) e, por fim, à percepção da história não como ciência do passado, mas, sim, como ciência do presente que interroga e interpela o passado.


Em última instância, ressalta Dielh, o aspecto da reorientação do movimento dos Annales está associado ao que o autor considerou uma “constelação” de elementos que fazem parte de um processo de crise da própria ciência e razão histórica. Isto é, verifica-se no específico movimento de mudança da ciência histórica transições que se operam mediante uma crítica tenaz à concepção moderna de história, sobretudo no que toca ao aspecto da linearidade do tempo histórico e da observação concernente às fontes. Nesse sentido, a crise do paradigma moderno constituiu a própria crise da história em que houve alterações significativas, como, por exemplo, no estudo da questão regional, além de outras já indicadas no texto. No que toca ao movimento dos Annales, Dielh (2004) assinala dois pontos nevrálgicos na engrenagem da mencionada reorientação, tanto teórica quanto metodológica, a saber: a ausência de uma teoria do conhecimento (epistemologia) - que acreditamos se referir a um corpus teoricamente definido, e que, por alguma razão, o autor entende estar intrinsecamente ligado à fragmentação dos Annales -, e a carência de uma teoria da mudança social, ao qual entendemos como falta de uma proposta política de ação social de envolvimento com as lutas sociais.

Deve-se considerar, também, segundo Diehl (2004), a aproximação do grupo dos Annales à perspectiva marxista de história, conectada com à própria crise de caráter teórico-metodológico do marxismo na Europa, em particular na França, com a fragmentação e compartimentalização dos Annales. Como marco dessa aproximação, o autor baliza a década de 1940 e os anos que se seguem, destacando os principais pontos dessa convergência fazendo-se uso dos pressupostos de Ciro Flamarion Cardoso. São eles: a) síntese global, b) consciência da realidade social, c) e d) leis econômicas que determinam o social (determinismo econômico), e) ausência de limites determinados entre as ciências sociais e f) pesquisa histórica vinculada ao presente.

Na esteira do movimento dos Annales, lembra Diehl (2004), houve o encontro com a teoria marxista por parte de alguns historiadores, cujo efeito foi o desvio do foco central da história do político para o econômico e social. Tal relação dos Annales com a teoria marxista também é notadamente visível, segundo Diehl (2004) citando Furet (1988), especialmente a partir da década de 1960 quando este identifica uma genuína “marxização do braudelismo”. Essa relação identificada por Furret (1988) entre as teses braudelianas e os Annales se opera no sentido das “pulsações econômicas”, ou seja, quando o movimento historiográfico passou a priorizar os elementos quantificáveis da análise histórica. Além disso o autor francês ressalta a forte influência do marxismo na França a partir da década de 1960, muito particularmente nas ciências sociais, como um atenuante para sua consequente inserção nos Annales.


No curso das transposições teóricas e metodológicas indicadas por Diehl (2004), impõe-se diferentes matizes e olhares acerca da história e da sociedade pelo movimento dos Annales. Interpõem-se elementos de análise voltadas para a perspectiva quantitativa (história serial, estatística, etc.) quanto para elementos de ordem social, do imaginário, das mentalidades e do cotidiano. Conforme Burke (1991), o grupo da chamada Nova História, composto especialmente por Lê Goff, Le Roy Laudurie, Agulon, Besancon, Richet, Ozout, F. Furet, Marc Ferro e outros, se esforçaram em produzir um conhecimento voltado para a micro-história, constituindo o auge do esfacelamento e fragmentação da história. Desse modo, ao passo que alguns historiadores dos Annales primavam por se aproximar da teoria marxista, outros se empenhavam em buscar diferentes abordagens, destacando-se, enfaticamente, elementos antropológicos na análise dos processos sociais.


No contexto das novas perspectivas e abordagens dos Annales, em grande medida propiciada pela dimensão antropológica da história, houve, de acordo com Burke (1991), uma excessiva operação no sentido de justificar uma diversidade de temáticas como o inconsciente coletivo, o ritual, os sentimentos, a sensibilidade, as sociabilidades, a festa, o cotidiano, entre outros, como sensíveis a outras substâncias sociais. Esses temas confluíram para duas frentes mais gerais: a história do cotidiano e a história das mentalidades, ambas determinando “novos” rumos – levando em consideração elementos de continuidade-descontinuidades do próprio movimento dos Annales – para o campo científico da história.


No Brasil, os Annales aportaram na historiografia por meio da história das mentalidades, tendo como marco cronológico a década de 1980 e os anos seguintes. Diehl (2004) ressalta que apesar da década de 1980 ser o marco dessa inserção dos estudos das mentalidades na historiografia brasileira, certos trabalhos já abordavam a respectiva temática antes mesmo da mencionada década. A título de exemplo, o autor referência como marco dessa abordagem das mentalidades antes da década 1980, o contexto de meados do século XIX, cujo autores como Vernhagen e Capistrano de Abreu se notabilizaram. De modo geral, os trabalhos voltavam-se para a importância da prática inquisitorial no Brasil Colônia, sem, é claro, o devido rigor de pesquisa e análise teórica que atinge em 1980.


Diehl (2004) pontua alguns autores e obras baluartes no contexto de inserção dos pressupostos teóricos e metodológicos dos Annales por meio dos estudos e trabalhos voltados à história das mentalidades na historiografia brasileira. Em primeiro lugar, enfatiza a obra Visão do Paraíso (1959) do historiador Sérgio Buarque de Holanda. Afirma categoricamente que se trata de ser “o primeiro trabalho sobre o imaginário no Brasil Colônia, quando o autor se debruça sobre as mentalidades portuguesas que orientam a visão inicial sobre os trópicos” (DIEHL, 2004, p. 215). Continua ainda afirmando que a obra, “de reconhecida erudição”, apresenta uma miríade de interpretações de mitos e lendas sobre o “paraíso terrestre” perpassando à Renascença, a escolástica e aos viajantes do período medievo. Trata-se, portanto, de uma “visão” dos trópicos assente em uma ideologização pertinentemente voltada ao imaginário europeu, caracterizado, sobretudo, pela “edenização”.


Em segundo, a obra O diabo e a Terra de Santa Cruz (1986), de Laura de Mello Souza. Conforme observa o autor, “esse trabalho também caracteriza o início da discussão dos fundamentos da própria história das mentalidades da historiografia brasileira” (DIEHL, 2004, p. 217). O objetivo central da obra estaria em averiguar a feitiçaria e as práticas mágicas no Brasil durante os séculos XVII e XVIII. Além disso, analisa o cotidiano de pessoas da Colônia, seus anseios, desejos, conflitos, angústias, modos de pensar e sentir. Diehl (2004) chama a atenção para o protagonismo, presente na obra de Souza (1989), relegado às mulheres, aos escravos (forros ou libertos), deserdados e aprisionados na tessitura da sociedade colonial. Além desses e outros aspectos presentes na obra de Souza (1989), o autor dá ênfase ao aspecto da religiosidade, marcada por forte sincretismo (resultado da mistura de crenças e religiosidades ameríndias, africanas e europeia). É uma obra de puro sentido e substância mental (mentalidades) onde se busca perscrutar o imaginário tanto coletivo de homens e mulheres do período colonial.


Além de Visão do Paraíso (1959) e O diabo e a Terra de Santa Cruz (1986), Diehl (2004) realça outras duas obras e autores. São elas, respectivamente: A ideia da revolução no Brasil (1972), de Carlos Guilherme Mota e Cristãos-novos na Bahia (1972), de Anita Novinsky. Ambas as obras, segundo o autor, são de interpretações de ideias e pensamentos, em que a primeira emprega esforços no sentido de “estudar as formas de consciência emergentes na vida revolucionária, mostrando o modo pelo qual as ideias de liberdade e autonomia surgem nos movimentos pernambucano e mineiro”. Enquanto a segunda prima por revelar a “perseguição dos judaizantes do Brasil no século XVII”, reagrupando fragmentos de identidade (DIEHL, 2004, p. 216).


Poderíamos concluir que as obras acima apresentadas seriam, conforme Diehl (2004), muito particularmente em se tratando de Visões do Paraíso (1959) e O diabo e a Terra de Santa Cruz (1989), como marcos referenciais da nova história e história das mentalidades na historiografia brasileira, pois buscam elucidar elementos interligados ao pensamento, ideias e consciências, tanto individuais quanto coletivas.


O fato é que o movimento historiográfico dos Annales contribuiu para uma ampliação da noção de fonte histórica, acarretando o esgarçamento do objeto e dos campos de abordagem das Ciências Humanas e Sociais. Isso sem levar em conta a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade tão necessárias e urgentes em tempos atuais, resultado de uma nova maneira de conceber a realidade social, para além de qualquer determinismo, seja ela puro ou pintado de boa teoria.





Textos base:


DIEHL, Astor Antônio. A recepção da discussão sobre a "nova história": do Movimento dos Annales à fragmentação da história. In: DIEHL, Astor Antônio. A cultura historiográfica brasileira nos anos 1980: experiências e horizontes. 2. ed. Passo Fundo: UPF Editora, 2004. Cap. 4. p. 197-229.


BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. 2. ed. São Paulo: Unesp, 1992.



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