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A música brasileira vai muito bem, obrigado!


Em entrevista concedida à Folha de São Paulo em novembro de 2019, o renomado cantor Milton Nascimento demonstrou todo seu descontentamento com a atual fase da música brasileira. Ele é enfático ao dizer “A música brasileira tá uma merda” e que as letras são “Uma porcaria... Só sabem falar de bebida e a namorada que traiu. Ou do namorado que traiu. Sempre traição.” A visão limitada de Milton não surpreende, é comum encontrar nas rodas de conversas os saudosistas de tempos passados, os amantes dos rocks “com letra” das décadas de 80 e 90, do engajamento político das bandas e tudo mais que outrora existia e que para eles deixou de existir. Pois bem, de fato para aqueles que apenas ouvem o que se propaga pela mídia de massa (rádios e TVs) realmente podem se deparar com músicas de conteúdos muito banais, mas, para aqueles que buscam caminhos mais alternativos para encontrar suas músicas e selecionar suas playlists podem se deparar com uma riquíssima variedade de letras e sons da melhor qualidade. Então, desligue seu rádio, dê uma oportunidade às obras independentes e um horizonte totalmente novo pode se abrir diante de seus ouvidos, despertando seus sentidos para novas reflexões e assim, certamente, irá perceber que a música brasileira vai muito bem. Atrevo-me a dizer que, talvez, a música brasileira atravessa o seu momento mais rico, tanto em diversidade de gêneros e sonoridade quanto em profundidade de suas composições.


Enquanto as rádios reproduzem repetidamente quase a exaustão o sertanejo, o funk e o gospel podemos observar no cenário independente o surgimento e crescimento de diversos gêneros musicais, tais como: Folk, Indie, Hard Rock, Punk, Metal, Hardcore, Grunge, Blues, Jazz, Psicodelia, Lo – Fi, MPB, Hip-Hop e vários outros. Além das excelentes misturas de ritmos e de elementos regionalistas que dão originalidade e uma identidade brasileira aos gêneros musicais estrangeiros. Com relação as letras podemos observar uma ampliação do leque de novos temas e sentimentos que antes eram ignorados ou tratados como tabus. Ademais apresentam uma rejuvenescida coragem para denunciar de forma poética, ácida e explicita as mazelas sociais e políticas do atual momento de nosso país.


Neste texto farei algumas sugestões apenas de CDs lançados em 2019 que demonstram a efervescência do atual momento de produções musicais.


Minha primeira sugestão é o álbum “Manual de sobrevivência para dias mortos” (2019) do cantor e compositor pernambucano China. O disco é uma verdadeira pedrada com suas letras diretas, com fortes críticas ao momento político pós eleição de Bolsonaro e um ritmo que mistura o rock com sons regionais do Nordeste que combinam muito bem com o sotaque do cantor. Os pontos altos do disco são as músicas: “Vivo?”, “Moinhos de Tempo”, “Fascista Tupinambá” e “Consumo”. Em “Vivo?” China canta sobre a violência de um país que flerta com o armamento da população, a agressividade e a truculência e a consequência é a dificuldade de se manter vivo. Em “Moinhos de vento” a harmonia suave contrasta com a letra forte que denuncia a manipulação midiática, as desilusões e dificuldades dos subúrbios e conta com uma participação especial da Rapper Bell Puã que é uma verdadeira pedrada citando: o Golpe de 2016, o assassinato de Marielle Franco, o racismo e o imperialismo americano. Em “Fascista Tupinambá” China faz um Punk Rock agressivo em que expõe as contradições de uma classe média sob a alcunha de “cidadãos de bem”, a parcialidade da justiça brasileira e finaliza com um grito que é um verdadeiro desabafo. Já em “Consumo” uma balada eletrônica com tambores bem ritmados China dá uma verdadeira aula sobre as angustias e mazelas de uma sociedade de consumo.


Minha segunda indicação é o álbum “Igreja Lesbiteriana, Um Chamado” da cantora e compositora mineira Bia Ferreira. A cantora descreve seu estilo musical como “MMP” (Música de Mulher Preta), com uma voz potente e uma rica combinação de estilos que vai do Jaz ao Hip-Hop com muita influência africana, ela constrói muito bem um som agradável e instigante combinado com excelentes letras que passam a mensagem de forma direta e clara. Como mulher, preta, lésbica e vinda da periferia, Bia faz da sua música um ativismo contra o racismo, a homofobia e a desigualdade social. O álbum inteiro é excelente, mas aqui destaco as canções: “Não Precisa Ser Amélia”, “De Dentro do AP”, “Cota não é Esmola” e “Sharamanayas”. Em “Não Precisa Ser Amélia” Bia questiona o estereótipo de “Mulher de Verdade” do samba “Ai! Que saudade da Amélia” de 1942, canção de Mário Lago e Ataulfo Alves onde se faz exaltada a condição de subserviência da mulher ao marido, condição esta que é muito bem desconstruída por Bia que, enfaticamente diz em seu refrão: “Não precisa ser Amélia pra ser de verdade/ Cê tem a liberdade pra ser quem você quiser/ Seja preta, indígena, trans, nordestina/ Não se nasce feminina, torna-se mulher”. Em “De Dentro do AP” Bia chama a atenção para que os movimentos feministas façam uma autocrítica e para que percebam que a mulher preta além de enfrentar a luta contra o machismo precisa também enfrentar a luta contra o racismo e a desigualdade social. Bia também aborda a importância de programas sociais como as cotas em universidades para a correção das desigualdades historicamente construídas pelo racismo estrutural em “Cota não é Esmola”. Por fim “Sharamanayas” é uma crítica ácida ao fundamentalismo religioso, ao patriarcado, ao machismo ao mesmo tempo que é um manifesto de empoderamento das mulheres e da comunidade LGBT.


A terceira indicação é o álbum “Voz Bandeira” da sambista carioca Marina Iris. O disco traz um samba tão bem feito que agrada até mesmo os que não são tão adeptos do estilo. Entre as excelentes composições temos o samba enredo “História Para Ninar Gente Grande” em homenagem a Marielle Franco e que concedeu à Mangueira o título de Campeã do Carnaval Carioca de 2019, música que também conta com a participação da consagrada sambista Leci Brandão. O disco também traz canções como “Voz Bandeira” que dá nome ao disco e “Pra Matar Preconceito” que demonstram o ativismo da cantora contra o racismo estrutural que se manifesta na objetificação da mulher preta e nos olhares enviesados presentes no cotidiano. Além de denunciar o preconceito Marina também reforça a importância do enfrentamento e da luta constante contra o racismo ao dizer: “Pele preta nessa terra/ É bandeira de guerra porque vi/ Se é Conceição ou Dandara/ Pra matar preconceito, eu renasci” e “Canto pra libertar/ Corpo, alma, prazer/ Nem tente me calar/ Esse aí não tá pra nascer.”


A quarta indicação é o ótimo folk da banda carioca Suricato com o disco “Nas Mãos as Flores”. Com músicas suaves e letras que falam de evolução pessoal, autoconhecimento e aceitação das diferenças e de nossas individualidades. Com destaque para as músicas: “Tatua”, “Hoje”, nas “Mãos as Flores” e a excelente regravação da música “Como Nossos Pais” de Belchior e que fez sucesso na voz de Eliz Regina.


Além destas novidades vale ressaltar que vários outros artistas que alcançaram sucesso há algum tempo continuam a produzir excelentes álbuns. Listando apenas os lançados em 2019 temos: O fantástico “Planeta Fome” de Elza Soares que constrói duras críticas aos retrocessos do governo Bolsonaro com as músicas “Blá Blá Blá”, “Comportamento Geral”, “Não Tá Mais de Graça” (música que dialoga com a canção “A Carne” cantada por Elza em 2012), “País do Sonho” e a regravação de “Pequena Memória Para um Tempo Sem Memória” de Gonzaguinha. Temos também o disco “Amarelo” do Rapper Emicida com a excelente música que dá nome ao disco e fala sobre suicídio (um problema que vem crescendo entre os jovens brasileiros nos últimos anos), a música conta com participações especiais de Belchior e Pabllo Vittar. E ainda o disco “Matriz” da baiana Pitty que canta sobre a necessidade de estarmos unidos em resistência aos tempos conservadores de nosso atual momento político como na canção “Noite Inteira” no trecho: “Respeite a existência, ou espere resistência/ Entendo que discorde, não espere que eu me cale.”


Vale ressaltar também, que todos estes bons trabalhos não são um evento isolado do ano de 2019, mas sim, revelam que a música brasileira vem evoluindo, se diversificando e se politizando em um processo continuo e crescente na última década. Podemos observar isso com os excelentes álbuns lançados nos últimos dez anos como: “Solta as Bruxas” (2016) da banda Francisco El, Hombre; “Allehop” (2016) da banda “O Teatro Mágico”; “Amar é Para os Fortes” (2018) do rapper Marcelo D2. “Raizes” (2018) da cantora Negra Li”, entre muitos outros, que se eu for citá-los aqui este texto irá sé delongar demais.


Enfim, as possibilidades são inúmeras quando percebemos que há muito mais do que aquilo que a mídia mercadológica insiste em nos empurrar com suas repetições exaustivas (o famoso mais do mesmo). Pois, para as gravadoras e as rádios o que importa são os altos lucros e, por isso, o foco é sempre naquilo que mais se vende, mas a arte não se mede por lucro, e na maior parte do tempo sucesso não é sinônimo de qualidade. Em suma, mais uma vez lhes digo, desligue seu rádio e venha conhecer o que mais a música brasileira pode oferecer porque a música brasileira vai muito bem, obrigado!


Um abraço meus amigos, abaixo segue alguns links para downloads para quem se interessar em ouvir os discos aqui sugeridos.











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