A sociedade brasileira se depara, praticamente, com um mês de governo Bolsonaro, quando a presença mais constante do presidente no noticiário nacional e internacional apresenta Jair, político, para milhões de pessoas que, de fato, não tinham conhecimento do e sobre o “mito” político.
Entre as pessoas que estão sendo, literalmente, apresentadas, não são poucos os que depositaram seus votos e, também, suas esperanças no presidente, acreditando que o sujeito que se apresentava como “salvador”, com condições de resolver os problemas econômicos, de emprego, segurança, e outros, por meio da instantaneidade, seria a solução, se não definitiva, mas pelo menos momentânea para aplacar os problemas reais que vivenciam todos os dias.
No entanto, é importante lembrar que Bolsonaro adquiriu notoriedade, por meio das redes, se valendo de questões fictícias, com receio, estratégia e incapacidade de encarar a realidade. No mundo fantasioso que possibilitou a alcunha de “mito” havia, e continua existindo: “Kit gay nas escolas, mamadeira de “piroca”, comunismo alastrado, professor/a doutrinador/a, destruição da religiosidade cristã, ditadura “gayzista””, e tantas outras invenções que fizeram com que um político sem relevância alcançasse o mais alto grau da esfera política.
Nesse sentido, talvez seja válido questionar, quantas pessoas votaram acreditando serem verdades as fantasias propaladas por Bolsonaro? É bastante provável que o percentual não seja pequeno. Entre os eleitores que depositaram seus votos no ex-capitão, é possível, no campo da hipótese, dividi-los em três categorias, sendo a primeira em torno de 20% do eleitorado, que se aproxima consideravelmente de um seguimento violento, autoritário, avesso à democracia, racista, misógino, homofóbico e tudo mais que há de desprezível na sociedade.
O mencionado grupo, minoritário entre os eleitores/as, pode ser entendido como os bolsominios, apelido pejorativo para àqueles/as que se esforçam em defender, irrestritamente, as ações do presidente, no qual perceberam na possibilidade de ascensão ao poder de Bolsonaro, a oportunidade concreta de naturalizar todo o ódio contra as minorias armazenado ao longo das últimas décadas.
Ainda no campo das hipóteses, existe um contingente de eleitores que pode ser entendido como fanáticos religiosos, que foram, infelizmente, convencidos por parte de algumas lideranças religiosas, ligadas ao cristianismo, de que Bolsonaro era verdadeiramente o “Messias”, ou seja, alguém enviado por Deus para restabelecer a ordem moral de um cristianismo, desumano, no Brasil.
Pode parecer até estranho, mas uma parcela significativa dos votos recebidos pelo atual presidente se constituiu em decorrência das atuações incisivas de muitos pastores pentecostais, neopentecostais, padres e outros seguimentos ligados a um cristianismo, desumano, que adquire cada vez mais notoriedade no país. Os fanáticos religiosos geralmente são pessoas que estão distantes das leituras, sejam empíricas ou acadêmicas, e por isso têm dificuldades para compreender os desdobramentos sociais, e como possuem essa dificuldade acabam sendo direcionados a aceitarem como “irmão” qualquer um que se diz signatário de uma bandeira que eles/as, fanáticos, acreditam.
Por exemplo, qual religioso cristão, exceto os fanáticos, votaria em alguém que sempre defendeu a violência, a tortura, discriminação, opressão, morte e tantas outras atrocidades, sabendo que Jesus Cristo, representação do cristianismo, de acordo com a fé cristã, sofreu tudo aquilo que Bolsonaro legitima? É provável imaginar, mas se não fosse o fanatismo religioso, culminado com a atuação de lideranças que se valem da crença dos fiéis para se enriquecerem as pessoas não teriam depositado seus votos no Messias de carne e osso.
Por último, ainda no campo das hipóteses, há o grupo mais expressivo dos eleitores, girando em torno de 50%, constituído por pessoas esperançosas, constituído em sua maioria por indivíduos que levam uma vida extremamente miserável, que não se aproximam dos grupos neofascistas, tampouco são fanáticos religiosos, e que viram no discurso anticorrupção de Bolsonaro uma luz no fim do túnel, uma possibilidade de diminuição da vulnerabilidade social que se encontram.
A corrupção política/pública, como defende o sociólogo Jessé Souza, está muito distante de ser o grande problema do país, quando, para o autor, o conflito está centrado na desigualdade social, e consequentemente na concentração de renda. No entanto, ao contrário de Jessé, a maioria dos eleitores de Bolsonaro vira nele a esperança para diminuir os impactos da corrupção, e com isso ter condições de ter uma vida mais digna.
Segundo o ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, os governos de esquerda da América Latina elucidaram a criação de uma parcela de consumidores, mas não de cidadãos críticos e atuantes. Na situação brasileira, a assertiva de Mujica não é diferente, porque mesmo com os avanços sociais e educativos proporcionados pelo PT, o partido não conseguiu construir a cidadania plena no país, com característica emancipatória e transformativa. Se tivesse conseguido emancipar culturalmente, jamais teríamos o presidente que temos hoje.
No tocante a Bolsonaro, além da oposição partidária e social, do papel da imprensa em qualquer país democrático, o seu principal problema está ancorado na realidade, e consequentemente nas milhões de pessoas que votaram, vendo-o como uma esperança. Os dois primeiros grupos, os truculentos e os fanáticos, no momento, pouco se importam com as ações reais do presidente, porque os primeiros querem a continuidade da banalidade do mal, me valendo de Hannah Arendt, e os outros continuam sendo direcionados por algumas lideranças religiosas. Com esses seguimentos o presidente não precisa se preocupar.
No entanto, os esperançosos, a cada dia que passa, veem suas esperanças diminuírem, principalmente ao perceberem que o presidente continua produzindo um mundo fantasioso, porque continua falando de comunismo, de bolivarianismo, ideologia de gênero, doutrinação marxista, e outras questões que de maneira alguma, por serem inexistentes, terão condições de amenizar os problemas sociais.
Na medida em que a esperança diminui, as dificuldades parecem aumentar, trazendo consigo insatisfação, revolta e sentimento de que foram enganados pelo discurso midiático do ex-capitão. Sensação intensificada sobre vários assuntos, inclusive no tocante a corrupção, sendo que suspeitas aproximam o núcleo familiar do presidente, como seu filho Flávio Bolsonaro, pairando leituras sobre indícios de práticas corruptivas. A famosa frase: “Podem chama-lo de racista, machista e homofóbico, mas não podem chama-lo de corrupto”. Então, essa assertiva muito presente nas redes sociais parece não se sustentar por muito tempo.
Enfim, Bolsonaro parece perceber que a realidade de um país tão amplo e complexo como é o Brasil vai muito além de frases prontas e “lacrativas” no Twitter. Ao identificar que a realidade bate a porta, Bolsonaro se aproxima, como forma de refúgio, do fantasioso. O mundo fantasioso que o presidente reluta em abandonar ficou perceptível mais uma vez durante essa semana, oriundo da primeira viagem internacional em Davos. Essa era uma oportunidade impar para o presidente apresentar ao mundo, dos negócios, seus projetos econômicos, reais, para dinamizar a economia brasileira.
Porém, o presidente não somente não conseguiu fazê-lo, como foi alvo de críticas da imprensa nacional e internacional. Insatisfeito com as críticas, inerente para com aqueles que ocupam cargos de poder, Bolsonaro cancelou a entrevista coletiva que concederia ao término do evento. O mundo real parece assustar consideravelmente o presidente do Brasil.
A realidade é dolorida, e dificilmente o mundo fantasioso, construído e vivenciado, até o momento, por Bolsonaro, terá condições de fornecer mecanismos para solucionar os problemas reais que ele, e o país se deparam. Diante dessa situação, há uma forte tendência que o fantasioso se esfacele, trazendo consigo o esmorecimento daqueles/as que acreditaram e sustentaram a ideia de que estavam elegendo um verdadeiro “mito”.
No mundo contemporâneo os mitos são construídos rapidamente, porém suas dissoluções parecem seguir o mesmo caminho da construção. Bolsonaro terá condições de se sustentar como “mito” por muito tempo? Ao que tudo indica não, e a resposta está no fato de que o presidente parece não ter se preparado para lidar com um mundo que vai muito além das lives.
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