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A REFORMA DO ENSINO MÉDIO E A FARSA DOS ITINERÁRIOS FORMATIVOS



A famigerada Reforma do Ensino Médio (Lei Nº 13.415) foi instituída em fevereiro de 2017, no governo de Michel Temer. Dentre as alterações incluídas na Lei 9.394 de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), houve a inserção dos chamados “itinerários formativos”, que passaram a integrar a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), no que se convencionou chamar de “parte diversificada do currículo”. Em resumo: o currículo da educação básica passou a ter em sua estrutura, além da Formação Geral Básica (que se compõe das disciplinas convencionais), uma parte “flexível”, contendo os itinerários formativos, divididos em cinco eixos ou áreas (Linguagens e suas Tecnologias; Matemática e suas Tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias; Ciências Humanas e Sociais Aplicadas; Formação Técnica e Profissional). No que tange a carga horária, com a reforma, os itinerários teriam um mínimo de 1.200 horas (40%) e a FGB 1.800 horas (60%), com um total de 3.000 horas anuais no denominado “Novo Ensino Médio”. A implementação dos itinerários formativos seria gradual, começando no 1º ano, depois 2º ano e, por fim, 3º ano.


O grave problema da Reforma do Ensino Médio é que ela não foi posta em debate com a sociedade e muito menos com a comunidade escolar. Foi elaborada e articulada pelo lobby do setor privado de ensino, interessado em tornar a educação uma mercadoria, entre as quais podemos citar: Fundação Lemann; Fundação Itaú para a Educação; Instituto Mackenzie; Fundação Bradesco, FTD Editora, e a possibilidade de ingresso de empresas estrangeiras. Não por acaso, a aprovação da Lei nº 13.415 no congresso foi rápida e a toque de caixa, uma vez que tais conglomerados privados são um dos principais financiadores de campanhas eleitorais de políticos e parlamentares.


E não nos deixemos enganar. A reforma possui claros objetivos de promover uma política de apropriação privada do ensino público. O “Novo Ensino Médio” envolve muito mais do que a simples cobrança por “inovação” e “flexibilização” curricular. Ela influencia conteúdos, procedimentos políticos-pedagógicos e relações de poder dentro e fora da escola, que passam a funcionar com base no dogma do mercado. Christian Laval, no livro “A escola não é uma empresa” (2004), reforça a tese que defendemos: a de que neoliberalismo tende a enfatizar a autonomia e liberdade de escolha pelos “consumidores da escola” e por uma “profissionalização” dos cursos. Ou seja, uma espécie de metamorfose do ensino, que leva à mercantilização geral do conhecimento e aprendizagem, e reforço das desigualdades.


Já em 2017 éramos alertados do engodo e da falaciosa justificativa do governo Temer para a implementação da reforma. O texto do professor Denis Castilho intitulado “Reforma do Ensino Médio: desmonte na educação e inércia do enfrentamento retórico”[1] se tornou uma referência nacional na crítica aos principais pontos contidos no texto da reforma. Um desses pontos diz respeito aos itinerários formativos. Conforme ressalta o professor, os estudantes têm a falsa sensação de autonomia na escolha dos itinerários, uma vez que a oferta destes depende de fatores estruturais, físicos, pedagógicos e de recursos humanos das escolas. O resultado disso é o aprofundamento das desigualdades entre escola pública e escola privada.


A maioria das escolas brasileiras não conseguem ofertar os mesmos itinerários e nas mesmas condições, o estudante fica refém das opções que a escola consegue e pode oferecer. Cai por terra, portanto, o argumento da autonomia de escolha dos itinerários. Dessa forma, as instituições de ensino privado farão uso massivo dos itinerários como “nicho” de mercado, marketing educacional/pedagógico, agarrando-se a uma ideia de mudança “inovadora” e “moderna” no ensino. Com relação às escolas públicas, estas terão dificuldades de adaptação e implementação, devido a fatores que estão intrinsecamente vinculados às disparidades regionais e locais, precarização e sucateamento estrutural, pedagógico e docente.


Não obstante, inúmeros outros fatores comprovam a ineficácia dos itinerários formativos. Dentre eles, constata-se o completo descolamento da realidade dos estudantes, ou seja, daquilo que vivenciam no cotidiano, em suas relações sociais, interpessoais e práticas culturais. Em outras palavras, nada do que os estudantes veem nos itinerários possui base empírica com aquilo que estão acostumados a sentir e presenciar no seu dia a dia. Nesse ínterim, os estudantes e professores não veem sentido naquilo que estão fazendo em sala de aula, tornando os itinerários uma mera obrigação curricular a ser cumprida. Soma-se a isto, a deficiência de material didático e pedagógico que contemple aqueles itinerários selecionados pelos estudantes, o que torna inócua qualquer tentativa de propor uma base teórica sólida para o que está sendo trabalhado em sala de aula. Sem referencial, sem um mote, a sensação que fica é de completo vazio e ausência de sentido nas aulas dos itinerários.


Outro fator importante (e grave) que evidencia a falácia dos itinerários, é a diminuição sistemática dos componentes curriculares essenciais para a formação dos estudantes. Componentes como História, Geografia, Sociologia, Filosofia, Arte, passam a não ser mais obrigatórios, podendo ser diluídos nos itinerários formativos, perdendo a essência e o sentido epistemológico para os quais existem. Componentes como estes são fundamentais para a formação crítica e cidadã dos estudantes, o que comprova a necessidade de manutenção na grade curricular sem alterações, desvios e diluições. A reforma promove, desta forma, um “epistemicídio”, nos termos colocados pelo professor Denis Castilho. Ou seja, o ‘assassinato’ do pensamento crítico, da reflexão autônoma e da consciência política, social e filosófica de nossos estudantes.


A despeito do incomensurável dano causado pelos itinerários formativos na educação brasileira, a precarização docente é um dos mais relevantes e que tem sido cada vez mais sintomática. Um desses sintomas é o ‘esquartejamento’ docente. Isso porque, segundo o texto da Reforma, os itinerários poderão ser ministrados por profissionais com “notório saber”, ou seja, por pessoas que não possuem formação acadêmica em Licenciatura. Por conta dos itinerários, diversos professores acabam se distanciando de suas formações básicas, tendo que lecionar conteúdo sem qualquer relação com sua formação acadêmica. O resultado dessa tragédia é o abandono da docência, uma vez que os professores não se sentem valorizados e motivados o suficiente para continuar lecionando.


Outrossim, aqueles docentes que assumem os itinerários têm que se desdobrar horas a fio fora do ambiente escolar preparando aulas sem qualquer relação com sua formação, o que acaba afetando suas relações e atividades extraclasse. Na ausência de estrutura e recursos didáticos e pedagógicos adequados, os professores acabam por ter que tirar verdadeiros “coelhos da cartola". Devido à extensa carga horária (ampliada pelos itinerários, é bom que se diga), os docentes precisam "inventar" metodologias e práticas pedagógicas para que as aulas sejam o menos possível tediosas e repetitivas. Com isso, aumenta o volume de trabalho, oriundo da cobrança por resultados, que potencializa cansaço físico e mental, desencadeando problemas graves como ansiedade, estresse, burnout, crises de pânico e depressão.


Aliás, o adoecimento mental é outro assunto que não pode ficar de fora desse debate. A preocupação com a questão da saúde mental nas escolas não é algo recente. Porquanto, é um debate que ainda não se encerrou, trazendo à tona um grave problema enfrentado a décadas pela comunidade escolar. O momento pandêmico que vivenciamos trouxe sequelas inimagináveis para a saúde física e mental de toda sociedade, em especial no âmbito educacional. Aliado a isso, os itinerários têm potencializado problemas de saúde mental, como aqueles que mencionamos acima. Com o aumento da carga horária de aulas, passa a existir uma quantidade significativa de disciplinas e componentes, o que torna o foco e a concentração dos estudantes ramificada e diluída demais. O estudante acaba não tendo um mote, uma direção determinada dentro do contexto das disciplinas, o que provoca estresse, crises de ansiedade, mudanças no comportamento e outros problemas.


O engodo da Reforma do Ensino Médio fica evidente quando se tenta, equivocadamente, tratar as questões psicossociais e emotivas dos estudantes por meio de componentes como “Projeto de Vida”. Isto é, como se as questões emocionais e psíquicas, complexas que são, fossem se resolver por intermédio de uma “matéria” ou “disciplina”. É evidente que a escola é reflexo da sociedade, e como tal, questões que envolvam comportamentos e emoções devem ser trabalhadas pela escola e por todos que nela estejam. Mas não se deve exigir que o professor seja um terapeuta ou um psicólogo. O professor não está preparado para lidar com este tipo de questão específica, muito menos em situações que escapam a sua função, uma vez que o papel do professor é promover a difusão do conhecimento, formar opiniões, propor a conscientização política e social e o pensamento crítico.


Conforme o professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, Daniel Cara, a reforma do ensino médio já está morta. Isso porque ela gera desigualdades, enorme insatisfação dos professores e estudantes, bem como desvios consideráveis no que tange a essência do ensino no Brasil. Além do mais, ressalta o professor, o país não tem estrutura suficiente para implementar essa reforma, em virtude de suas disparidades regionais, culturais, sociais e econômicas. Diante dos fatos, a revogação é iminente[2].


Fica claro, portanto, que os itinerários formativos não tem sentido, nem eficácia. Não passa de uma farsa neoliberal. É urgente que o Ministério da Educação revogue a Reforma do Ensino Médio e devolva a educação à sociedade, aos estudantes e aos professores. É preciso que haja um debate democrático, transparente e que coloque no centro a comunidade escolar como sujeito desse processo.


Fontes consultadas


BRASIL. Lei nº. 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis nos. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº. 5.452, de 1º de maio de 1943, e o Decreto-Lei nº. 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei nº. 11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Brasília, 2017. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13415.htm>. Acesso em: 19 jul. 2023.


CASTILHO, Denis. Reforma do Ensino Médio: desmonte na educação e inércia do enfrentamento retórico. 2017. Disponível em: https://www.geografia.blog.br/gallery/gdn04v01_01.pdf . Acesso em: 19 jul. 2023.


FIRMO, Érico. Daniel Cara: novo ensino médio "já está morto". O Povo. Fortaleza, p. 17-18. 07 maio 2023. Disponível em: https://media.campanha.org.br/acervo/documentos/entrevista_Daniel_Cara_O_Povo_0705_01c_17DOM_17_DIG.pdf . Acesso em: 20 jul. 2023.


LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo e ataque ao ensino público. Trad. Maria Luiza M. de Carvalho e Silva. Londrina: Editora Planta, 2004.

[1] O texto pode ser acessado por meio do link: <https://www.geografia.blog.br/gallery/gdn04v01_01.pdf>. [2] Para uma melhor compreensão dos argumentos contrários apresentados pelo professor Daniel Cara, ver entrevista concedida ao Jornal ‘O Povo’. Link de acesso: https://media.campanha.org.br/acervo/documentos/entrevista_Daniel_Cara_O_Povo_0705_01c_17DOM_17_DIG.pdf.

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