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A Violência endereçada aos Pobres: Filme Cidade de Deus



Primeiramente, gostaria de agradecer ao Professor Léo Carrer, curador da série, por ter me convidado para pensar o filme Cidade de Deus, e consequentemente ter a oportunidade de estabelecer um diálogo com vocês. Penso que o filme, produzido em 2002, dispensa comentário acerca de sua relevância e protagonismo adquirido no cenário cinematográfico brasileiro.


Além disso, Cidade de Deus, apresenta o “cenário” das grandes, médias e, atualmente, pequenas cidades brasileiras, a saber, o panorama da desigualdade social. Acredito ser necessário pensar a tessitura do filme não pela temática que parece ser mais óbvia, mas por aquela que escapa aos olhares desatentos e, na contemporaneidade, desumanizados.


Nos tempos atuais, vivenciamos um fenômeno característico do fascismo, quando está associado na coisificação de determinados sujeitos, principalmente de indivíduos que vivem à margem da sociedade, que sofrem diretamente os impactos mais nefastos da desigualdade. Pensar a realidade social e, minimamente, tentar compreendê-la, demanda tempo, esforço e sensibilidade, não para legitimar determinadas ações, mas para compreender os reflexos dessas ações em nosso meio.


Sinceramente, a violência não me preocupa, o que me deixa mais preocupado são as leituras feitas para pensar o fenômeno e, como consequência, as alternativas apresentadas para dirimir os impactos da violência em nosso meio, porque observam, geralmente, a superficialidade das relações sociais, e diante do superficial, as análises que circulam no cotidiano negligenciam a importância dos fatos históricos.


De acordo com Marc Bloch (2001): “O bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está sua caça”. Talvez, como defende Paul Ricouer (2007), podemos estabelecer um diálogo entre caça e rastro, para termos melhores condições de compreender o passado histórico do país, que possui o rastro da escravidão, sustentado na violência praticada contra os negros e indígenas.


A escravidão, não somente explica, mas como é a causa principal da configuração social da América Latina, caracterizada pelo espaço subalterno destinado aos negros. O filme retrata com sensibilidade a raiz histórica da escravidão, quando apresenta o cenário da favela carioca, Cidade de Deus, habitada majoritariamente por pessoas negras, que são excluídas da presença de acompanhamento do estado de bem estar social.


A presença do estado nos espaços periféricos não se faz com políticas públicas voltadas para área da saúde, escola, emprego, espaços de lazer, segurança, ou cultura, mas a presença do estado é sinônimo de violência policial, que estabelece uma relação com os cidadãos como se fossem objetos, não se importando com suas vivências e convivências. Se sorriem, choram, comem, não se alimentam, dormem, ou vivem na rua, pouco importa, porque o sujeito oriundo da favela é entendido, infelizmente, por um amplo conjunto social como se fosse uma coisa. Na medida que há a coisificação do sujeito, gradativamente quem coisifica deixa de perceber o ser humano como humano.


Talvez, o exemplo mais cabal de desumanização dos seres humanos está materializado no fatídico discurso de guerra às drogas, que é, na realidade, guerra e morte imputada as pessoas pobres das cidades. Quando se fala em morte ocasionada pelo estado, o alvo é nítido, são jovens, negros e oriundos da periferia, que vivem à margem da sociedade, sem, ou com pouquíssimas oportunidades de e na vida.


Segundo levantamento do G1, o país registrou a morte de 5.012 pessoas por policiais no ano de 2017, correspondendo ao montante de 790 mortes a mais do que em 2016, ou seja aumento de 19%. No entanto, percebam que os seres humanos são percebidos como estatísticas. Assim, ninguém, exceto os familiares, sabe seus nomes, seus sonhos, seus desejos, suas angústias, leituras de mundo, e tantas outras questões inerentes aos seres humanos.


A morte desse quantitativo impressionante de seres humanos insere a Polícia Militar brasileira como a mais violenta do mundo, fazendo com que a Organização das Nações Unidas (ONU), no ano de 2013, recomendasse o fim da Polícia Militar no país. A recomendação veio com outras 169 recomendações visando que o Brasil possa garantir o Direito Humano ao seus cidadãos. No entanto, a Polícia que mais mata é a que mais morre. Somente para termos um parâmetro, no ano de 2015, segundo o site G1, ocorreu a morte de 368 policiais, já em 2016 esse número saltou para 453, e em 2017 houve a redução, mas, mesmo assim, o número continua alto, tendo sido registrado a morte de 385 policiais.


Os dados, mencionados, demonstram que a ideia do estado de apostar na violência como mecanismo de pacificação social tem ocasionado resultados catastróficos, quando as principais vítimas são os sujeitos que vivenciam o universo da precariedade social, inclusive os militares. Defender a força do estado é negar a realidade social, e a negação passa, impreterivelmente, pelo desconhecimento histórico dos conflitos sociais que moldam a sociedade.


Diante de um contexto que anseia por apagar a memória histórica, se valendo de argumentos do não vivido, é importante resgatar a memória coletiva, também, como ato de resistência. Resistir, esse é o termo que gostaria que se atentassem para estabelecermos um diálogo mais honesto. Indubitavelmente, se observado for as últimas décadas, a prática da resistência nunca fora tão necessária como nos dias atuais. E a nossa resistência passa pela honestidade intelectual, distante de memes e de discursos enervados, simplistas, que se fazem presentes com intensidade nas redes sociais.


Diante do fenômeno da opinião, seja honesta ou desonesta, o tema da violência circula no imaginário social, seja por meio de programas televisivos que estão muito distantes de adentrar nos problemas sociais, porque possuem a tendência para criminalizar as vítimas, levantando bandeiras de pena de morte, redução da maioridade penal, e maior encarceramento das pessoas. Ou seja, políticas que, de forma indireta, estão sendo aplicadas, mas têm apresentado resultados desumanos, ineficazes e agravando os problemas e conflitos sociais.


O impacto inflado pelos programas dos finais de tarde, influenciam para que sujeitos no dia a dia saiam reproduzindo falas distantes de adentrarem nos problemas. Nesse sentido, é importante pensar à origem social de falas, como, por exemplo, “a polícia prende, mas a justiça solta”. A fala é desonesta com a realidade social, porque o Brasil aumentou e continua a aumentar sua população carcerária de forma vertiginosa nos últimos anos.


Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), o país possuí 726.712 mil pessoas presas, o que equivale a dizer que é a terceira maior população carcerária do mundo. Da quantidade de presos/as, 40% estão em regime provisório, quando ainda não possuem condenação judicial. Se não possuem, exceto em situações muito extremas, não poderiam estar presos, porque há uma tendência considerável de serem absolvidos diante do julgamento vindouro. Mais da metade da população é constituída de jovens entre os 18 e 24 anos, quando 64% desses são pessoas negras. Os dados estatísticos demonstram justamente o contrário do que é apontado pelos diálogos de e das redes, ou seja, no Brasil, dependendo da configuração social, seja culpado ou inocente, o indivíduo é preso, e sua liberdade não é instantânea, pelo contrário, a entrada na prisão resulta em difícil saída.


Os problemas da violência, em nosso meio, estão diretamente relacionados a desigualdade social, a falta de oportunidades e, consequentemente, aos efeitos nefastos da injustiça. É evidente que tatear todo esse cenário demanda tempo, disponibilidade e disposição para fazê-lo. Nesse sentido, não falta Literatura especializada para quem deseja se aprofundar na configuração social do país, tendo na escravidão um meio de observação. Assim, indico os clássicos trabalhos de Kátia Mattoso (2016), intitulado Ser Escravo no Brasil, Jacob Gorender (2017) com seu importante livro O Escravismo Colonial, Gilberto Freire (2005) com um dos mais relevantes trabalhos na área, intitulado Casa Grande e Senzala, Emília Viotti da Costa (2010) Da Senzala à Colônia, e tantos outros pesquisadores/as que se debruçaram e se debruçam sobre o tema da escravidão, possibilitando que haja uma leitura do que éramos, e somos, por meio da ideia das transformações, mas também das continuidades.


Pensar é um processo “dolorido”, no entanto, significativo, porque ajuda a entender o que somos à contrapelo, como defende Walter Benjamin (2012). Partindo dessa premissa, gostaria de inverter a lógica de análise me valendo de uma pergunta, a ausência do estado no cotidiano social das pessoas mais pobres, em especial dos negros, não é um mecanismo de violência? Não ofertar espaços de lazer, cultura, emprego, escola, saneamento básico, infraestrutura, condições de sociabilidade e outros mecanismos essenciais não é um processo de violência?


Por exemplo, uma das causas do que entendemos por violência, associada principalmente ao roubo e tráfico de drogas, está vinculada a desigualdade social. O Brasil, não sendo novidade para ninguém, é um dos países mais desiguais do mundo. Segundo dados do IBGE, em pesquisa realizada em 2017, a concentração de renda tem aumentado sistematicamente no país, garantindo o privilégio, conforto e opulência social de poucos, em contrapartida, mantendo a maioria da população brasileira em condições subumanas, convivendo diariamente com a falta de habitação, de emprego, de alimentação e, consequentemente, com o mínimo do mínimo de dignidade.


Como defende Jessé Souza, em seu livro A Elite do Atraso (2017), a elite brasileira continua escravocrata, ou seja, sem nenhuma sensibilidade para com o sofrimento dos outros, preocupada somente com a manutenção dos seus privilégios, e disposta a impedir qualquer projeto que vise dirimir a enorme desigualdade existente no país. Diante da falta de política pública, da insensatez elitista, e do apartheid social existente, quais os caminhos possíveis para as camadas que vivem na miséria social?


Muitos, embora descontentes com a situação, procuram manter o cotidiano de suas vidas em um ritmo de normalidade, levantando as 5 horas da manhã e voltando para casa as 22 horas, recebendo, pelo seu árduo trabalho, um salário mínimo, sendo no máximo suficiente para pagar água, luz e supermercado. Quando se vive com o mínimo, há um problema, muito distante de ser apenas do indivíduo, mas um problema da sociedade, que tem que se debruçar sobre o mesmo, para ter condições de compreender que algo está errado diante dessa configuração social.


Porém, há outros sujeitos que se indignam diante da miséria social imputada e, diante da indignação, procuram estabelecer mecanismos para subverter a ordem social, se valendo de associações de bairro, ingresso nos movimentos sociais, recorrendo a crença sobrenatural e tantos outros mecanismos. Todos as estratégias de sobrevivência são válidas. No entanto, há uma pequena minoria que não se direciona para os caminhos mencionados, mas para uma perspectiva de subversão pela força, praticando assaltos, furtos, sequestros, homicídios, tráfico de entorpecentes, assim como outros mecanismos desaprovados pela maioria da sociedade.


Geralmente os indivíduos que se valem da violência como tentativa de equalizar as relações sociais, entendendo nessa ação um meio para ter uma vida menos sofrível, compreenderam que todas as soluções viáveis, política, social, sobrenatural, não surtiram efeito, e diante da desesperança percebem a necessidade de serem protagonistas de suas ações. O protagonismo é entendido pela maioria das pessoas como roubo, assassinato, sequestro, tráfico e outros, no entanto, prefiro compreender como ato de rebeldia, ou resistência perante a opressão imposta.


Há um sentido filosófico, no âmbito da leitura social, no ato de roubar, ou traficar. Fazer essa assertiva não significa defender a legitimidade da ação, mas compreender as razões de existência da ação. Somente depois da compreensão das causas dos problemas é que haverá condições de solucioná-los. Por exemplo, o tráfico de entorpecentes possibilita poder ao indivíduo, tais como, possibilidade de proteger as pessoas mais próximas, melhores condições socioeconômicas, respeito perante os pares e a comunidade, entre outros benefícios que o indivíduo não teria se continuasse em seu cotidiano social.


O filme, Cidade de Deus, apresenta o cenário da violência na favela carioca, no entanto, a tessitura cinematográfica não evidência a violência praticada pelos mais pobres, mas aquela que é imputada aos mais pobres, quando lhes é negado o direito a uma vida digna. Diante dessa negação, todos nós temos uma significativa parcela de responsabilidade. Para se chegar a essa conclusão, penso, é necessário humanizar o olhar, compreendendo a vítima como vítima, e não como protagonista. ´


As vezes pensar o que não é evidente é mais difícil, mais desconfortável, porque ocasiona incômodo e incomoda, demanda tempo, leituras e mais leituras, porém, mais do que nunca, enxergar por outros horizontes não é somente necessário, mas um ato humano.



Referências:


BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

CAESAR, Gabriela; REIS Thiago; VELASCO, Gabriela. Atlas da Violência 2018: Crianças são maiores vítimas de estupro no país. G1 Notícias. Acesso em 18 de setembro de 2018, as 10 horas e 20 minutos.

COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Unesp, 2010.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51º ed. São Paulo: Global, 2006.

GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 1980.

MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser Escravo no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.

MOREIRA, Rômulo de Andrade. A realidade Carcerária do Brasil em números. Justificando. Acesso em 18 de setembro de 2018, as 16 horas e 12 minutos.

RICOUER, Paul. A Memória, a História e o Esquecimento. Tradução de Alain François [et al.]. Campinas: Unicamp, 2007.

SALGADO, Daniel. Cresce número de pessoas mortas pela Polícia no Brasil; assassinatos de policias caem. O Globo. Acesso em 17 de setembro de 2018, as 11 horas e 40 minutos.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

VERDÉLIO, Andreia. Com 726 mil presos, Brasil tem terceira maior população carcerária do mundo. Agência Brasil. Acesso em 18 de setembro de 2018, às 15 horas e 10 minutos.

REDAÇÃO. Concentração de renda aumenta em quase todas as regiões do país em 2017, diz IBGE. Revista Fórum. Acesso em 18 de setembro de 2018, as 14 horas e 37 minutos.

REDAÇÃO. Conselho da ONU recomenda fim da Polícia Militar no Brasil. G1 Notícias. Acesso em 19 de setembro, às 11 horas e 02 minutos.

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