Reunião de professores nesta quarta-feira: uma jovem com deficiência intelectual desiste do curso de graduação após reprovação em maioria das disciplinas. Na sexta pela manhã, relato de uma aluna: tio com seqüelas físico-motoras decorrentes de um acidente de carro desempenha atividades no campo com dificuldades severas. Ainda na manhã de sexta: caminhada promovida pela Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE/Itapuranga) em parceria com escolas, universidades, bancos e prefeituras. Banca de mestrado na tarde de sexta, tema: Pessoa com Deficiência Física no Vão do Paranã (GO). Na noite de sábado, na MTV: garota em quadro grave de escoliose omite sua identidade em relacionamento virtual.
Esses acontecimentos, juntos à impugnação da candidatura de Lula, ocuparam a centralidade das minhas reflexões neste final de semana. O convite para a participação de uma banca de mestrado com a temática da PCD (Jamylle - UFG) foi o instante disparador dos meus sentidos para a presença cotidiana dessas pessoas e seus dramas.
A aproximação com as discussões acadêmicas a respeito da temática nos últimos três anos, fruto de convites e parcerias com pesquisadores e amigos (UFG, CEREST/GO, FIOCRUZ/RJ), tem me exigido a sensibilidade para modos não hegemônicos de perceber o mundo. Desde então, exercito a leitura da linguagem inscrita no corpo, como diria a queridíssima Angelita (FIC/UFG). Não é fácil.
Alguns pressupostos teóricos guiam a minha caminhada sensível:
1. A deficiência não é um “a priori” que se encerra no sujeito e seu corpo (concepção biomédica) e que reduz a sua capacidade produtiva e relacional, mas um dado-desafio social, político e econômico;
2. Todas as pessoas possuem “suficiências de mais ou de menos” (Eguimar Chaveiro e Luiz Carlos Fadel, 2018), afinal a funcionalidade dos sentidos não garante a realização autônoma e altruísta dos mesmos – há diferenças entre ouvir e escutar, ver e olhar, tocar e sentir, pensar e refletir;
3. A maior parte das deficiências no Brasil é adquirida no trabalho precário, que mutila, adoece e mata os trabalhadores;
4. As PCD desenvolvem formas de ler o mundo não necessariamente inferiores às pessoas “normais”, há compensações de sentidos;
5. A defesa pela “inclusão” da PCD não pode elevar a modelo a sociedade desigual, preconceituosa e autoritária em que vivemos, mas semear outros modos de ser/estar no mundo, nos quais o respeito à diferença sedimente a unidade.
Sete e meia da manhã. Centro Cultural Cora Coralina, Itapuranga - Goiás. Caminhada em solidariedade à PCD: crianças, adolescentes e seus hormônios; velhas e velhos e suas histórias; militares e suas filas; professoras e seus cuidados; cadeiras de rodas, cartazes, flores, celulares, olhares; pessoas e seus vôos.
Ao descer do carro, fui recepcionada por um aperto de mão de um homem desconhecido. Ele não me disse, mas guardava o desejo de narrar sua história. Ele queria muito me confidenciar o que viu na vida até o momento. O aperto de mão ia além do cumprimento, era um convite: venha, sente aqui e escute, depois escreva sobre. Porém, não me disse isso com palavras. Ele não se comunicava com a língua. Muito menos a portuguesa.
Ao fundo do nosso diálogo mudo, um carro de som a poucos metros tocava uma música me remontou ao jardim escolar:
“Vamos construir
Uma ponte em nós
Vamos construir
Pra ligar seu coração ao meu
com o amor que existe em nós”
Cantei essa música, junto aos meus colegas, na minha formatura do “prézinho”. O desafio não era cantar, mas concatenar canto e gesto. As mãos imitavam pontes. O público de pais e professores nos seguiam, temerosos não de desacertos, mas de desistências. Vibravam ao passo de cada sílaba cantada lenta e loooongamente. Aos poucos, uma coreografia do amor e do cuidado tomava conta do auditório.
Mas esqueçamos o prézinho e voltemos à caminhada da APAE. Como pode um desconhecido invadir com tanta ousadia o meu passado? Não era a história dele a ser narrada? Acontece que as narrativas se fundiram naquele instante, quando as mãos se encontraram e erigiram uma ponte entre nós. O cuidado que resgatei na memória era também o dele. É o da humanidade inteira.
A ponte a ser construída é o elo entre a memória e a ação. Facilmente esquecemos que o cuidado, e a educação, são vitais para o ser humano, esse ser incompleto desafiado a andar, a comer sozinho, a falar, a se relacionar, a lidar com as dores físicas e emocionais, a envelhecer, a morrer. Aprendemos e necessitamos de cuidado do nascimento à morte. O cuidado não é privilégio da PCD, o cuidado é a substância da relação com o outro (Eguimar Chaveiro).
Cuidado não é sinônimo de tutela, muito menos de ajuda incondicional. A condição é o consentimento do outro, caso contrário o cuidador se tornar obstáculo à autonomia do sujeito. Por isso, a escuta atenta precede o cuidado. Repito: ouvir nada tem a ver com escutar. Quem ouve pode ter uma péssima escuta, e um surdo pode ser um espetacular escutador. O que está em questão é a capacidade de deslocamento de si e a entrega ao drama/narrativa do outro (Walter Benjamin).
No convívio com a PCD, o exercício é mais simples do que parece: antes e além da deficiência, são Pessoas. Por isso, a batalha semântica contra o termo “deficiente” e a defesa da expressão “Pessoa Com Deficiência”.
O mesmo raciocínio se aplica a outros campos da diferença humana: antes e além da sexualidade, Pessoas. Antes e além da religiosidade, Pessoas. Antes e além da condição social, Pessoas. Antes e além da cor de pele, Pessoas. Antes e além da nacionalidade, Pessoas.
A PCD desafia a lógica instituída: seus corpos negam a razão instrumental e a concepção euclidiana de espaço. A geometria não responde a sua forma de perceber e posicionar-se no espaço. A cartografia esvaziada do ser humano tampouco consegue representar as referências de mundo desses sujeitos. Portanto, o primeiro passo para nós, ditos pesquisadores, é reconhecer as defi-ciências. Se estas não dão conta dos sujeitos reais, suas eficiências e deficiências, precisam ser reinventadas ou aprimoradas. Afinal, como advertiu o nosso mestre Ruy Moreira na sua última vinda a Goiânia: se a finalidade das ciências é narrar o mundo, e o mundo é humano, para que serve a ciência que negligencia a dimensão humana?
A crítica à ciência se aplica também ao momento eleitoral. Se o desenvolvimento humano ocupa segundo plano nos programas de governo dos candidatos, quais outras expectativas justificam um voto?
Sabida das contradições do Estado, e confesso, bastante descrente das possibilidades humanitárias por meio dele, ainda me pego surpresa com a deficiência dos eleitores na escolha de seus candidatos. Valores invertidos, explicações fáceis, comportamentos eticamente estéreis.
Às vezes tenho a impressão que muitos sujeitos escolheram a via mais irresponsável para lidarem com o mal estar que lhes afligem: externalizar a culpa, apontar um culpado socialmente vulnerável, ou seja, apostar numa SOLUÇÃO FINAL. Mecanismo psíquico, social e político do nazi-facismo (Suely Rolnik). Tento, apesar desses lances de desesperança, evocar minhas crenças no humano e acionar a hipótese da preguiça mental para explicar tamanha irresponsabilidade social no voto. Talvez apenas falte a esses sujeitos a capacidade de perceber a implicação de determinados discursos (e ações que deles decorrem) e o cotidiano. Se começarem a juntar as peças do quebra-cabeça, rapidamente notarão a incompatibilidade da apatia de Geraldo Alckmin, da violência de Jair Bolsonaro e da hipocrisia de Henrique Meireles com a alegria que emana do respeito à diferença, expressa, entre outras coisas, no sorrido do Garoto APAE na manhã desta sexta.
Referências:
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: obras escolhidas. Brasiliense, 2017.
CHAVEIRO, Eguimar Felício; VASCONCELLOS, Luiz Carlos Fadel de (orgs.). Uma ponte ao mundo: cartografias existenciais da Pessoa com Deficiência e o trabalho. Goiânia: Editora Kelps, 2018.
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006.
Texto:
Ana Carolina de Oliveira Marques
Doutora em Geografia. Professora na Universidade Estadual de Goiás/Campus Itapuranga
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