Ao consultarmos o dicionário veremos que a definição para o termo “indulgência” está assim descrito: “disposto ao perdão; condescendente, complacente [...] desculpas por uma grave falta; remissão dos pecados pela Igreja” (AURÉLIO, 2001, p. 415). A definição categórica apresentada por meio do dicionário revela a natureza semântica e histórica do termo ao determinar que se trata de um discurso de retratação alinhavado com uma prática de aceitação e absolvição. De modo geral, a aplicação de indulgências está associada majoritariamente às instituições religiosas, especialmente às denominações vinculadas ao cristianismo.
Do ponto de vista histórico, as indulgências se difundiram como prática eclesiástica a partir da Igreja Católica no período medievo. Já nos tempos das Cruzadas (séc. X-XIII), expedições militares cujos objetivos visavam a retomada e conquista da “Terra Santa” (Jerusalém) e da Península Ibérica - esta última sob domínio árabe/mulçumano -, bem como de motivações políticas e territoriais (vide o interesse em retomar as rotas comerciais do mediterrâneo), as indulgências se apresentavam como uma ferramenta eficaz nas pretensões do Papa e da Igreja em empreender o movimento cruzadista. Neste contexto, as indulgências eram privilégios espirituais que objetivavam “[...] conceder o perdão aos pecados, perspectiva muito atraente naquela sociedade de forte religiosidade, mais clerical que civil, na qual pecado e crime eram a mesma coisa” (FRANCO JUNIOR, 1981, p. 5).
Dizer a um servo-camponês naquele contexto de forte presença da religiosidade que seria redimido de seus pecados no exato momento em que aceitasse compor o “exercito de deus”, era o mesmo que elevá-lo ao mais alto grau da hierarquia eclesiástica, legitimando suas ações a partir de então. Certamente que esse discurso da remissão dos pecados por meio das indulgências foi um dos mais bem organizados e sistemáticos recrutadores de almas para as Cruzadas. Outra questão a ser empregada, seja a continuidade da indulgência e seu consequente aprimoramento após o fim das expedições cruzadistas. Tornara, então, um dos mecanismos da Igreja para continuar se perpetuando como a instituição mais poderosa e rica da Idade Média. Via de regra, um senhor de terras, um comerciante ou um pequeno camponês, disponibilizavam o que lhes era mais essencial, um quinhão de terra, uma robusta quantidade de ouro e prata, ou até mesmo parte de sua produção para, em troca, receber do clérigo, a pretensa absolvição e, o mais importante, a certeza de que sua “vaga” no paraíso estaria garantida.
Não sem razão, uma das questões postas por Lutero ao rever o ecletismo católico foi, sem dúvida, o poder que as indulgências exerciam sobre as pessoas, e, não raro, como elas eram fortemente empregadas pela Igreja como ferramenta de dominação e continuação da sua hegemonia. Em tal circunstância, a negação de prestar indulgências à Igreja passou a ser heresia combatida com a morte. Logo, a Igreja fora perdendo terreno com o desenvolvimento das ideias e dos ideais que floresciam a partir do século XVIII, especialmente em virtude das concepções de libertação e emancipação humana pelo espectro da razão. Nesse sentido, as indulgências foram gradativamente perdendo sua força ideológica. Isto não significa que por perder sua força ideológica no contexto mencionado, tenha desaparecido de uma vez dos quadros dogmáticos da Igreja. Para além disso, foi reinventada e até mesmo incorporada por outros segmentos que não somente o catolicismo.
Não cabe aqui e nem é a intenção deste texto, empreendermos contra qualquer instituição religiosa ou denominações específicas a implementação das indulgências, optando por disseminar no leitor(a) a imaginação que lhe convir. O objetivo é ressaltar que as indulgências empregadas na conjuntura atual são diluídas por discursos dissuasivos que visam à “recompensa” espiritual como moeda de troca por determinados privilégios. Evidentemente que o método e o pragmatismo inerente à aplicação das indulgências nos dias atuais destoam das implementadas no período medieval. Todavia, essa constatação não retira a validade e o caráter essencial das indulgências: o poder de barganha.
Pode-se mesmo elaborar um quadro de referenciais e modelos que serviriam de base para ilustrar o que se entende por indulgências de hoje: a) doações e ofertas que soam espontâneas, mas que possuem uma carga simbólica representativa de poder de alguns grupos, classes ou pessoas, em relação a outros. Tal perspectiva pode ser demonstrada por meio da seletividade que existe no seio das igrejas, em que algumas pessoas e grupos recebem cargos de relevância, maior atenção dos líderes religiosos e poder de decisão e influência nos quadros eclesiásticos; b) também pode ser mencionado o fato de algumas igrejas privilegiarem em seus espaços os mais afortunados do ponto de vista econômico e social, empenhando-se no discurso de que quanto mais relevante a “contribuição” para com o trabalho e a instituição, em dobro o será concedido; c) as alianças do segmento político que associam-se ao segmento religioso (o mesmo ocorre no sentido inverso) com objetivos escusos de açambarcar “matéria-prima” para içarem-se nos mais altos postos do poder.
Diante dos exemplos citados, é de todo insípido e incolor o fato de que as indulgências de hoje se camuflam em meio ao discurso religioso. E, nesse aspecto, as formas e práticas indulgenciais não são tão somente uma exortação aos mais ricos. Ora, o que seria o dízimo ou as doações senão um exemplo nítido dessa prática enfadonha que gera, por sua vez, a sensação inebriante de uma aparente “normalidade” com o campo espiritual? Certamente que aqueles que se negam, ou mesmo não podem se dar ao direito de contribuir, serão taxados de indiferentes e frígidos para com o trabalho eclesiástico. Logo, estes não receberam do sacerdote as benesses provindas do divino, embotados de todas as escusas exortações possíveis.
De certo, fica evidente que as indulgências se configuram como uma prática discursiva e ideológica recorrente nas instituições de cunho religioso. Apesar de sofrer alterações desde seu surgimento, tal prática permanece essencialmente atrelada à dimensão do valor de troca e de barganha, entre o que materialmente se pode dispor ao trabalho eclesiástico e à instituição, logo, a uma divindade, e, por consequência, o que se busca em troca, ou seja, a chance da remissão, da conveniência, da promoção e de um lugar seleto junto ao campo da espiritualidade.
Referências:
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio: o minidicionário da língua portuguesa. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
FRANCO JUNIOR, Hilário. As Cruzadas. 6. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.
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