
A autoajuda pode ser definida como sendo um “conjunto de técnicas, orientações, informações ou práticas que se destinam à resolução de problemas de caráter psicológico através de recursos do próprio indivíduo” (Dicionário Eletrônico Priberam, 2019). Trata-se de um gênero textual extremamente difundido no mundo literário, e que pretende realçar sua funcionalidade psicológica e social, constituindo-se como “verdadeiros manuais de orientação ao leitor em como alcançar o sucesso, seja profissional, familiar, ou nos relacionamentos interpessoais” (SILVA E STAFUZZA, 2013, p. 2). Penso que, por meio das definições expostas, o leitor deste texto suponha qual deverá ser o viés analítico que pretendo desenvolver nas próximas linhas. Quero estabelecer uma reflexão sobre este gênero textual amplamente consumido como “verdade absoluta” por milhões de pessoas em todo o mundo, procurando evidenciar uma opinião crítica a respeito de suas competências tanto teóricas, quanto práticas.
O contato que tive com alguns poucos textos de autoajuda me levaram, invariavelmente, a refletir sobre a validade do que lia, ou as vezes ouvia e assistia (isso porque hoje a autoajuda também ocupa espaço nas mais variadas mídias sociais, como Facebook, Instagram, Youtube, entre outras). Em grande medida, o que eu leio sobre o gênero sempre me inquieta. Quase sempre indago: será que seguindo estes passos terei uma vida feliz? Condicionando-me a estes ou a aqueles princípios obterei sucesso profissional e pessoal? A verdade é que nunca saberei responder a estas questões, uma vez que nunca experimentei colocar em prática sequer alguns desses “princípios” ou “passos” sugeridos.
Tenho plena convicção de que a leitura é totalmente recomendável, independentemente do gênero literário ou textual, a qualquer pessoa. Tendo isto em perspectiva, imagino que quanto mais livros, artigos, resenhas e textos conseguimos ler, melhor, uma vez que uma vida biológica não é suficientemente necessária para lermos tudo que, porventura, desejamos. Assim, sempre me dispus a ler textos com temas variados, e não somente aqueles de minha ossada profissional. A alguns meses me dediquei à leitura de textos de autoajuda, fruto de recomendações de alguns colegas e amigos. Alguns textos me pareceram até interessantes, outros já nem tanto, sensação natural para quem está habituado com a leitura diária.
Quando você está familiarizado com a leitura, percebe em duas, três, quatro, cinco ou mais leituras de um mesmo tema ou gênero literário/textual, qual é a “tendência” daquilo que está lendo. Dessa forma, enquanto lia alguns textos de autoajuda, percebia que a “tendência” e o estilo textual e das abordagens construídas não variavam muito. Notei uma extrema ênfase em palavras, termos e conceitos do tipo “superação”, “esforço”, “dedicação”, “motivação”, “felicidade”, “eficácia”, “resultado”, “compromisso”, “responsabilidades”, “soluções”, entre inúmeras outras. Até aí tudo certo. Até porquê é a “tendência” natural do gênero utilizar dessas categorias. A questão é que a utilização excessiva desses termos e conceitos são abordados como sendo centrais na construção de um tipo ideal de vida, para fazer menção ao conceito weberiano.
O que quero enfatizar é a extrema necessidade da autoajuda se firmar, por meio de construções discursivas específicas, como uma literatura prática que forneceria métodos eficazes para a solução dos problemas cotidianos existentes na vida de qualquer ser humano. As abordagens, via de regra, circunscrevem-se a uma concepção de sucesso profissional e pessoal, que pode ser alcançada de modo fácil e prático, como se estivéssemos de porte de uma receita de um bolo ou uma fórmula química.
Parece-me pertinente mencionar o fato de que a autoajuda é resultado da instabilidade identitária dos sujeitos na contemporaneidade. Vivenciamos tempos de liquidez das relações sociais, políticas, culturais e econômicas. Presenciamos uma conjuntura de fluidez das conexões discursivas e subjetivas entre pessoas e instituições. Antes, o que era sólido agora figura dissolúvel e instável, resultando no que Bauman (2005) denominou de “modernidade líquida”. Para este pensador, a identidade não soa mais estável e insoluvelmente determinada. Nota-se, agora, identidades, no plural, construídas por meio de interconexões diversas, transitórias e “soltas”.
Por mais que haja controvérsias sobre o conceito de “modernidade líquida” defendido por Bauman, penso que possamos vincular esta categoria aos métodos da autoajuda. Essa instabilidade identitária gerou uma perca do referencial identitário, culminando em uma “crise de identidades”, aos moldes do que postula Hall (2006). Toda essa ausência de referencial transformou qualquer discurso aparentemente consistente e coeso, em supostos silogismos unitários. Entra em cena a autoajuda.
A perda de identidade fez com que pessoas e indivíduos procurassem a autoajuda como saída para suas respectivas instabilidades identitárias. Nesse sentido, os métodos adotados pelo gênero obtiveram notável aceitação social e mercadológica, em um contexto social complexo e diversamente incompreendido. A autoajuda eleva-se, nestes termos, como uma “terapia” de reconciliação identitária.
Também podemos estabelecer outra reflexão possível. A autoajuda aparece como condição de disciplina, regulação e padronização de comportamentos humanos e sociais. Neste ponto, faço uso dos pressupostos foucaultianos. Acredito que a autoajuda estabelece padrões uniformes de disciplina comportamental. O indivíduo tem por “necessidade” instituída pelo meio social em que vive, atingir um desempenho muito além daquilo que muitas vezes poderia realmente atingir. Desde o ambiente de trabalho, da esfera familiar e do campo social em que se insere, o sujeito é constantemente cobrado por normas e padrões pré-definidos por um grupo específico, pela mídia ou então pelas grandes corporações e empresas: seja um bom profissional; seja um bom pai, uma boa mãe; seja prático, dinâmico, eficiente; seja isso, seja aquilo; dê o melhor de si, você é capaz, motive-se.
Ora, essa exacerbação nos padrões de comportamento e nos métodos de produzi-lo, instruídos pela a autoajuda constitui, no meu entendimento, uma “docilidade” do sujeito, determinando-o a ser útil ao consumo, ao capital, à mídia, às elites, entre outros. Assim, a autoajuda se configura como um “poder que aplica-se à vida cotidiana imediata que caracteriza o indivíduo, marca-o com sua própria individualidade, liga-o à sua própria identidade, impõe-lhe uma lei de verdade, que devemos reconhecer e que os outros tem que reconhecer nele” (FOUCAULT, 1995, p. 235).
Ainda há, de modo mais ou menos diverso, a relação saber-poder no contexto da autoajuda. Foucault (1995) observa que o conhecimento especializado se configura em uma relação de poder intrinsecamente atribuída ao sujeito que não possui esse conhecimento especializado. Dessa forma, os especialistas e os grandes centros de formação da autoajuda, com cursos, palestras, seminários, congressos, os chamados coaching, adquirem fácil aceitação no conjunto da sociedade e do mercado. Constituem, portanto, um saber-poder altamente influenciador de padrões e comportamentos sociais. Lembro-me que uma vez participei de uma reunião da HINODE (empresa do ramo de cosméticos) a convite de uma amiga. Por curiosidade, resolvi ir. Em pouco menos de uma hora de exposição, o arguidor quase me convenceu a ser um colaborador da empresa. As vantagens financeiras e o glamour apresentados eram realmente apetitosos. Depois de um tempo fui pesquisar sobre o grupo. Descobri que utilizavam dos métodos da autoajuda como retórica de convencimento.
Destarte, acredito que a autoajuda impõe valores e princípios meritocráticos, como se internamente todos nós tivéssemos um ‘Bill Gates’, pronto para ser descoberto, explorado e lapidado. Como se fossemos capazes de superar todas as adversidades existências e cotidianas por meio de 10 passos em busca da felicidade ou então através de alguns poucos princípios de uma vida de sucesso financeiro, pessoal e profissional. Como se existisse, em nós, um dispositivo que, na iminência de o acionarmos, estaríamos condicionados a nos motivarmos para enfrentar um dia difícil, ou ir em busca de um algo que desejamos. Ora, penso ser importante dizer que um dia difícil é um dia difícil e pronto. Devemos aceitar que, vez ou outra, as coisas não dão certo mesmo, e isso é a vida. Schopenhauer e Nietzsche não viam sentido na vida sem a dor. A dor, o sofrimento e os problemas cotidianos são necessários na construção de nossas identidades coletivas e individuais. Toda dor, todo sofrimento e todos os problemas exercem uma função pedagógica, pois nos moldam à experiência de vida em sociedade.
Em minha humilde opinião, a autoajuda se configura, pura e simplesmente, como retórica vazia de sentido prático, pedagógico e reflexivo. Corroboro dos pressupostos de Silva e Stafuzza (2013) quando observam que a autoajuda se constitui por meio de um discurso cirurgicamente alinhavado com o discurso econômico-capitalista, ao considerar o sujeito dotado unicamente de uma identidade produtiva, orientando-se, portanto, através de padrões de consumo. Lembro-me do que Hanna Arendt denominou de Animal Laborans, para designar a subserviência do homem, inicialmente às máquinas, logo ao relógio (categoria indispensável, segundo Karl Marx para se pensar o modo de produção capitalista) e, posteriormente, ao trabalho, como atividade objetiva indispensável à sobrevivência. Nessa questão, penso que a autoajuda é um forte instrumento utilizado por uma lógica consumista-capitalista com escusos interesses de inculcar nas pessoas padrões de comportamento, consumo, gostos, gestos, hábitos, relacionamentos, modos de pensar, agir, vestir, entre outros.
Para finalizar, acredito que a frase de Leandro Karnal ilustra sensivelmente tanto o termo ‘autoajuda’, quanto sua dimensão textual: “a autoajuda, ajuda quem escreve”. Isto é, a autoajuda “ajuda” seus autores, pois é um gênero textual nitidamente bem aceito no mercado. Embora eu tenha restrição ao gênero, não poderia ser autoritário ao ponto de impor a quem admira esse tipo de leitura uma atitude contrária. Apenas penso ser necessário refletir sobre a autoajuda e o que ela, de fato, propicia como elemento controverso.
Referências:
BAUMAN, Z. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In H. L. Dreyfus & P. Ravinow, Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica (pp.231-249). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
PRIBERAM, Dicionário. Autoajuda. Disponível em: <https://dicionario.priberam.org/autoajuda>. Acesso em: 09 fev. 2019.
SILVA, S. C. & STAFUZZA, G. B. Práticas identitárias da autoajuda no mundo contemporâneo do trabalho. Psicologia & Sociedade, 25(3), 718-727, 2013.
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