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Autocrítica, muito além do PT

Foto do escritor: Lucas PiresLucas Pires

Os próximos quatro anos serão de suma importância para as décadas vindouras do país. Depois de uma certa estabilidade democrática, o Brasil se vê diante de um paradoxo, quando elegeu democraticamente um futuro presidente que, em mais de uma oportunidade, se posicionou contrário as mínimas garantias democráticas.


É difícil assegurar que haverá continuidade, mesmo que simbólica, de democracia constitucional no país, isso porque o governo Bolsonaro conseguiu uma grande conquista nos últimos anos, a saber, a vitória, mesmo sem fazê-lo, no campo do discurso.


O êxito eleitoral, apesar das denúncias de disparos pelo WhatsApp, concomitante com a impossibilidade do líder das pesquisas, o ex-presidente Lula, de concorrer ao processo eleitoral, somente foi possível porque Bolsonaro, e os seus seguidores, conseguiu se inserir em um espaço visível, mas que foi invisibilizado pelo campo progressista ao longo dos últimos anos. Nesse sentido, o capitão reformado do exército não pode ser considerado protagonista da ação.


O domínio, bolsonarista, esteve no não discurso, na ausência de diálogo, e na criminalização de quem desejava fazê-lo. Por exemplo, o fato de Bolsonaro não ter participado dos debates no segundo turno se configura como algo sintomático, porque foi somente a continuidade de uma prática recorrente nas ações do líder de extrema-direita, quando ao longo de seus 28 anos de atividade enquanto político profissional nunca protagonizou uma discussão séria, honesta para o país.


Pelo contrário, suas falas sempre foram superficiais, eivadas de preconceito, garantindo-lhe um gradativo protagonismo na mídia, que nunca lidou com Bolsonaro como uma séria ameaça à democracia, mas como alguém “polêmico”. De preconceito em preconceito, ameaças e outras bravatas, característico do “homem que se acha macho pra caralho”, o líder de extrema direita passou de uma figura polêmica pela grande mídia, ao entendimento de um ser burlesco pelo campo progressista.


Na realidade, Bolsonaro, seja pela imprensa, ou pelos progressistas, nunca foi levado a sério, suas curtas e enervadas falas, de alguma forma, ou de outra, sempre foram relativizadas por diferentes setores da sociedade. No entanto, fica cada vez mais evidente de que as falas mereciam, no mínimo, um tratamento atencioso de quem presa pela manutenção da democracia, no nosso caso, mesmo que simbólica. A aceitação para com os preconceitos de Bolsonaro não é de responsabilidade do “capitão reformado”, mas de todos/as que recusaram o debate, mesmo sabendo que o debate seria, é, e continuará sendo inviável.


Nesse sentido, transferir a responsabilidade do caos social para nós, requer, não somente autocrítica, mas também humildade. Procurar transferir toda a culpa para o Partido dos Trabalhadores é de uma desonestidade sem proporção. Independentemente de quem tivesse chegado ao segundo turno, não resta dúvidas, Bolsonaro sairia do pleito eleitoral vencedor.


O processo eleitoral foi somente a síntese de um paradigma que já estava em curso, principalmente pelo fato de a sociedade brasileira não ter enfrentado, de frente, suas feridas abertas. Bolsonaro representa todas as feridas originárias do passado, perceptíveis no tempo presente, e que acompanhara os desdobramentos vindouros do país. Por exemplo, o futuro presidente relativiza à escravidão, criminaliza, por meio do racismo estrutural, o negro na contemporaneidade, acredita que as especificidades socioculturais dos indígenas é algo desprezível, lembrando o colonizador europeu. Bolsonaro acredita que os problemas climáticos são uma invenção da esquerda, minimiza os impactos violentos de uma sociedade patriarcal, acredita que ser patrão no país é muito difícil, e de que ser subserviente dos Estados Unidos é o caminho para resolver os problemas econômicos do país.


Além disso, pensa e faz outros acreditarem que a democracia, mesmo que simbólica, é um mero detalhe. Porém, nunca é demasiado reiterar, as falas curtas, eivadas de preconceito do futuro presidente não são uma invenção do tempo presente, elas existem desde o processo de colonização da América Latina. Assim, o futuro presidente não pode ser entendido como fenômeno, mas sim como representação.


O êxito de Bolsonaro foi não ter sido incomodado quando transformou fato em fake e fake em fato. Diante do contexto no qual a informação, independentemente de ser verdadeira ou não, vale mais do que problematizações acadêmicas/científicas, Bolsonaro encontrou terreno fértil, simplificando problemas complexos por meio de frases de efeito, revivendo preconceitos enraizados, e passando incólume pelo campo progressista, que ignorou, ou melhor, aceitou a existência de um não discurso, entendendo esse não discurso como polêmica, ou meramente como fala de um fanfarrão, quando deveria ter encarado o problema como algo muito, mas muito sério.


O preâmbulo da derrota começou no momento em que o campo progressista começou a pedir desculpas por textos longos quando se propunha a pensar temas importantes para o país. Ao pedir desculpas, por apresentar e trazer problemas para ser debatidos, o campo progressista abriu espaço para os submundos da ignorância triunfar. E o triunfo da ignorância não foi somente uma passagem, ou mesmo um modismo, mas parece que veio com intenções de permanecer por um bom tempo. Falar barbaridades sobre tudo e todos sem o mínimo de capacidade intelectual para tratar do(s) assunto(s) é compreendido, por parte da sociedade, como supra sumo da inteligência, e a inteligência, de fato, entendida como ideologia.


É possível que a palavra reinvenção domine todos os cenários do campo progressista nos próximos anos, porém se a reinvenção não se originar por meio de uma autocrítica séria e consciente, muito além de leituras partidarizadas, o pesadelo atual poderá se prolongar por um tempo indeterminado. Afinal, quando a ignorância adquire patamar de sabedoria, o ser ignorante passa a acreditar que de fato é sábio.

 
 

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