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Cidadãos de Bem


Em 2015, praticamente um ano antes de seu falecimento, o escritor e filólogo Umberto Eco disse, em evento que recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidade de Turim, a seguinte frase: “Com as redes sociais, idiotas têm o mesmo espaço de Prêmios Nobel”. A frase dita por Eco, distante de ser evasiva, teve como intuito chamar a atenção para o ressurgimento de uma nova categoria social, a saber, das pessoas que pensam que sabem, mas na realidade não sabem, e se aproveitando da ignorância, sem saber que são, se sentem autorizados a escrever e se posicionar sobre qualquer tema.


Quando o escritor fez determinada afirmação, a face do fascismo ressurgia com intensidade na Europa. Eco, com a perspicácia de enxergar além do tempo presente, identificou no fenômeno de ascensão das redes sociais o entremear do fascismo. Importante ressaltar, o fascismo não ressurge com a Internet, o fenômeno conservador sempre esteve presente no cotidiano social, porém não conseguia encontrar espaços para a vasão. Assim, o que os modernos meios de comunicação “ofertaram” foi a possibilidade de redistribuição e circulação de ideias que atentam ao espaço coletivo.


Por meio do conceito liberdade de expressão, tendo se tornando apropriação cultural, parte da sociedade se vale do conceito para deslocar o valor de acordo com os seus interesses. Assim, a ideia de “expressar de forma livre” serve como justificativa para os discursos de ódio/violência endereçado aos grupos menos favorecidos e para aqueles que pensam diferente. Quando se interpela alguém por ter feito uma fala, ter escrito um post, ou mesmo um texto com teor fascista, permeado do início ao fim pela ideia da destruição do que quer que seja, a resposta já está na ponta da língua: “Estou apenas me valendo da liberdade de expressar”.


É interessante esse fato, porque se vale da ideia de liberdade para defender, justamente, o fim da liberdade. Antes de adentrar nessa seara, é necessário ressaltar que a possibilidade de múltiplas vozes é fundamental para a consolidação da democracia, quando, impreterivelmente, o sistema democrático deve zelar para a manutenção das decisões majoritárias, mas sem se esquecer dos direitos e das falas das minorias. Já dizia nos idos do século XVIII o filósofo Jean Jacques Rousseau: “Toda unanimidade é burra”.


Assim, negar a importância acerca da oferta de fala por parte das redes sociais é, indubitavelmente, um equívoco. No entanto, alertar para a possibilidade do fascismo e do totalitarismo se apossarem desses espaços é algo prudente. Depois da prudência vem a preocupação, porque regimes violentos se apoderam justamente da ignorância das pessoas, quando ignorância passa muito distante de ter ou não escolaridade, se associando muito mais a falta de sentimento humano.


A observação de Eco soa como um “mantra” no contexto dominado virtualmente pelos “cidadãos de bem”, que se sentem autorizados(as) a propalar e defender todas as formas de violência, desde comemorar a morte de ativistas sociais, a fomentação de ódio em torno da violência para com lideranças políticas que se distanciam da visão de mundo dos “cidadãos de bem”. O fascismo, sustentado majoritariamente pelas diferentes faces da violência, encontrou um contexto propicio para a proliferação, não somente no Brasil, mas em boa parte do “mundo ocidental”.


Em tese, o que sustenta o fascismo? Não há outra explicação a não ser a ignorância de uma parcela social. Reiterando, ignorância está relacionado com a desumanização do sujeito. A pessoa que perde o sentido humanitário tende a ser condicionado pelas diretrizes de “líderes” autoritários, simplificadores de problemas complexos, e com característica comum o fato de designarem grupos como inimigos, e diante da representação, começam a defender a aniquilação desses grupos.


Pessoas com características fascistas não desapareceram com a derrocada de Hitler e Mussolin em meados do século XX, porque os personagens centrais morreram, mas as ideias autoritárias continuaram circulando no imaginário social. No entanto, o entremear das ideias era tímido, se manifestando em indivíduos isolados, espalhados em diferentes lugares, com inúmeras dificuldades para aglutinação. Primeiro porque não conhecia os iguais, e depois pelo receio que tinham em socializar as ideias violentas, em virtude da memória coletiva sobre os horrores do fascismo/nazismo estarem presentes no cotidiano das pessoas.


Com o advento das novas tecnologias no início do século XXI, culminando no distanciamento histórico, assim como no “esquecimento” das mazelas do fascismo e das inúmeras ditaduras militares/civis, em especial no continente latino americano, e com a consolidação das fake news, produzindo inverdades, como exemplo: “Nazismo de esquerda, Hitler comunista, na época da ditadura não havia corrupção e outras invencionices do tempo presente”, pessoas que sempre flertaram com a desumanização encontraram os seus iguais, muita das vezes não fisicamente, mas virtualmente, formando comunidades do ódio e da violência por meio das redes sociais.

Tendo a compreensão de, minimamente, ter conseguido rastrear a explosão do fascismo em nosso meio, é necessário começar a desenhar estratégias de desmantelamento da corrente do ódio. Talvez a primeira ação esteja no diálogo sereno, não deixando de desacreditar no lado humano, porque os “cidadãos de bem”, importante ressaltar, são seres humanos, e como hoje odeiam, também podem ser (re)ensinados a amar. Assim, não se pode descartar/ignorar os “cidadãos de bem”, é necessário tentar resgatar o sentimento humano que está escondido nos mais longínquos espaços de suas mentes. Para isso, a reflexão e o convite ao pensamento, como assegura Marcia Tiburi, continua sendo um valor fundamental.

Marielle Franco, presente!.

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