
No último dia 14 de junho, a Câmara dos Deputados da Argentina possibilitou um importante passo para o avanço cultural e de direitos no país, pelo fato de ter aprovado o Projeto de Lei da Legalização do Aborto até a 14ª semana de gravidez. A votação foi apertada, quando houve 129 posicionamentos favoráveis e 125 votos contrários.
Porém, o que pesou na vitória do projeto foi a mobilização popular, principalmente do coletivo feminista, no qual conseguiu fazer com que as reflexões sobre o aborto saísse de um âmbito restrito e ganhasse espaço no imaginário social. A população argentina teve condições de se educar sobre o assunto, entendendo a importância do tema.
A conquista ainda não é definitiva, já que o Projeto será votado no Senado, considerado mais conservador do que a Câmara dos Deputados. A previsão para a votação, decisiva, está prevista para o mês de setembro, e se aprovado for, provavelmente será sancionado pelo Presidente Macri, pelo fato de, em muitas oportunidades, ter dito que respeitará a decisão da casa legislativa.
Com a possível legalização do aborto, a Argentina se juntará ao Uruguai, Cuba e Guiana Francesa, países da América Latina em que o direito ao aborto é concedido de forma irrestrita. De forma individual, na Cidade do México o procedimento também é legalizado.
Em decorrência da aprovação da Câmara dos Deputados argentina, o assunto sobre o aborto adquiriu notoriedade no Brasil, perceptível pelas inúmeras menções nas redes sociais, que é, indubitavelmente, um importante termômetro para se perceber as diferentes leituras da sociedade brasileira.
O Brasil também possui um projeto de lei parecido com o argentino, sendo o PL 882/2015, de autoria do Deputado Federal Jean Wyllys, que tem o intuito de legalizar o aborto até a 12ª semana de gravidez. Atualmente, embora tramite na casa legislativa, o PL tem poucas chances de ser colocado em votação, e se eventualmente for, remotas são as chances de ser aprovado, pelo caráter, majoritariamente, conservador da casa legislativa.
Na contramão da legalização, avança na Câmara dos Deputados o Projeto de Emenda Constitucional 181, de 2015, que propõe alterações na constituição, defendendo a “inviolabilidade do direito à vida desde a concepção”. Traduzindo em miúdos, se a emenda constitucional for aprovada, situações como estupro, ou risco de morte da gestante, atualmente entendidas meios constitucionalmente viáveis para a realização do aborto, não serão mais permitidos, diminuindo ainda mais as políticas de saúde pública, restrição de direitos, e consolidando o Brasil como um dos espaços mais conservadores do mundo.
Na Argentina, a legalização em construção, como mencionado no primeiro momento do texto, somente foi possível por uma compreensão da sociedade de que o direito ao aborto é uma política pública, e não uma questão subjetiva, moral ou religiosa. No entanto, a leitura educacional ainda é incipiente no Brasil. Por exemplo, pelas redes sociais, as análises contrárias a legalização, geralmente, têm no moralismo religioso a sustentação de argumentação, quando há uma negativa para se relacionar com outras possibilidades de leitura, inclusive com negativas às pesquisas científicas.
Nesse sentido, a simples opinião de ser favorável ou contrário a legalização do aborto, apenas por convicção subjetiva, moral, ou religiosa, inviabiliza qualquer análise racional. Independentemente de ser favorável ou contrário, é necessário reconhecer que a prática, mesmo sendo considerada ilegal, acontece corriqueiramente no país.
A frequência do aborto é constatada pela Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2016, tendo como pilar de observação os pesquisadores/a Marcelo Medeiros, Alberto Madeiro e Débora Diniz. Segundo levantamento da pesquisa, uma em cada cinco mulheres brasileira, até os 40 anos, já realizaram ao menos um aborto, totalizando, em média, 1 milhão anualmente.
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, a cada dois dias uma mulher morre no país devido as complicações da prática do aborto clandestino. Então, o primeiro passo, independentemente do posicionamento pessoal, é reconhecer a existência do aborto, demonstrada por importantes pesquisas. Após essa leitura, é necessário entender quem são as mulheres que morrem pela ausência da política pública, pela negação do direito, e por terem que recorrer aos espaços clandestinos. No grupo de uma, à cada cinco, estão mulheres de diferentes configurações sociais, ricas, da classe média e pobres.
Os dois primeiros grupos, por terem um poder aquisitivo privilegiado, acabam recorrendo aos espaços seguros e humanizados, diminuindo consideravelmente o risco de morte. Porém, a mulher pobre, majoritariamente negra, por não ser privilegiada socialmente, tem que recorrer aos espaços insalubres, com procedimentos conduzidos por pessoas sem a mínima capacitação, não somente colocando em risco, mas ocasionando a morte dessas mulheres.
Para entendermos, o aborto circula pelas três configurações clássicas de classe social, porém, quem morre, repetindo, é a mulher pobre, e consequentemente negra. No entanto, com a legalização do aborto, essa mulher que padece, poderia encontrar no espaço público o que às mulheres da classe média e alta encontram nos espaços privados, a saber, um espaço adequado para o aborto seguro.
Diante das opiniões pessoais, contrárias, caracterizadas, em grande maioria, pelo moralismo religioso, há um mantra, representado pelo direito à vida. Entretanto, essa mesma leitura é eivada de contradições, porque se há preocupação com a vida, por que não existe preocupação com a vida das mulheres pobres que morrem pela criminalização da prática?
Nesse sentido, talvez, diante da impossibilidade de responder determinada questão, as objeções moralistas partem para a defesa da prevenção, com alusões ao uso de contraceptivos e anticoncepcionais. Para se valer desses importantes meios, um preceito elementar é essencial, chama-se educação sexual. Porém, educação sexual perpassa por diferentes espaços, familiar, convívio coletivo e principalmente no âmbito da escolar. Mas, nesse último espaço, há uma barreira, porque parte das pessoas que defendem a prevenção, em detrimento da legalização, se posicionam contrários à educação sexual nas escolas, dizendo que isso fere os preceitos da família, por pretensamente incentivarem os jovens a praticarem o sexo. Diante da equivocada leitura, inviabilizam as oportunidades de se tratar o assunto com responsabilidade social, e também não permitem o avanço da educação, que é, em suma, a política da prevenção.
Em países que entenderam que a prática é um direito das mulheres, a procura do aborto diminuiu, sendo Portugal um exemplo a ser estudado. Mas por que diminuiu? A diminuição está relacionada com a oferta de políticas públicas, não somente no quesito medicina, mas também psicológico, nutricional, e outros, porque, em muitas ocasiões, a alternativa do aborto está centrada no desamparo da mulher, seja pela família, pelo parceiro, pessoas próximas, ou pela ausência de condições financeiras para conduzir, minimamente, de forma segura a gravidez. Diante das inúmeras dificuldades, o aborto acaba sendo a única alternativa.
Existe uma fiscalização do feto, mas há um desinteresse quando esse feto se torna um ser social, perceptível pela similaridade das pessoas que criminalizam o aborto, mas veem com naturalidade o trabalho infantil, apoiam projetos que possuem o intuito de reduzir a maioridade penal, e, também, defendem a higienização social, apoiando a morte dos jovens, negros e da periferia. Fica aqui a pergunta, por que o feto até a 12ª semana é importante, e deixa de ser quando se torna criança, jovem, ou adulto?
Defender a legalização do aborto é muito diferente de apregoar a liberação, ou naturalização da prática, ou sair dizendo para as mulheres abortarem seus filhos/as. A legalização está relacionada com a defesa de política pública, com a defesa do direito à vida de mulheres pobres. Legalizar o aborto é a construção, garantia e consolidação dos direitos humanos.
Apesar da dificuldade para se concretizar, pelo contexto atual, a legalização representaria um avanço no âmbito da cultura, principalmente por demonstrar a capacidade humana, e racional da sociedade brasileira para compreender que a descriminalização do aborto significa garantia de vida(s).
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