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Curva acentuada à esquerda: É tempo de repensar a forma de fazer oposição



A maior parte da história da esquerda no Brasil foi construída fazendo oposição aos governos vigentes, lutando por direitos trabalhistas, por melhorias sociais para as classes mais vulneráveis, pela reforma agrária, pela liberdade e redemocratização durante a ditadura militar. Foi graças ao seu histórico como líder sindicalista no ABC paulista na década de 80 que Luiz Inácio Lula da Silva construiu sua imagem e chegou à presidência em 2002 como um homem do povo, um operário que poderia olhar para as necessidades da classe trabalhadora (apesar de só ter conseguido chegar à esse posto após assumir um discurso mais brando e conciliador que agradou também aos empresários e banqueiros). Assim, em 2002 a esquerda deixa de ser “oposição” e passa a ser “situação”, permanecendo no poder por 14 anos (dois mandatos de Lula e um e meio de Dilma) com a tarefa de solucionar problemas sociais gravíssimos como a fome, o desemprego, o analfabetismo e a extrema pobreza que assolava a parcela mais vulnerável da população brasileira, principalmente aqueles que residiam nas regiões mais afastadas dos grandes centros do Brasil, brasileiros que sempre estiveram fora dos planos econômicos dos governos de direita.


A esquerda não poderia cometer erros, sabia que teria pouco tempo, apenas alguns anos, para solucionar problemas históricos, centenários e estruturais deste país, criou programas como o “Fome Zero” e o “Bolsa Família” que foram fundamentais para garantir a sobrevivência daqueles que se encontravam no mapa da Fome; proporcionou o acesso as universidades públicas para jovens pobres com programas como o FIES e o PROUNI; fortaleceu o sistema de cotas; garantiu a permanência destes jovens na universidade com as bolsas da Capes e CNPq; ofereceu inúmeros cursos gratuitos e com bolsa com o PRONATEC, ofereceu a oportunidade da população pobre ter sua casa própria com o “Minha casa minha vida”; levou médicos para áreas desassistidas com o “Mais Médicos”; proporcionou o acesso a medicamentos a um baixo preço com o “Farmácia Popular”, e vários outros programas e ações que proporcionaram uma ascensão social das classes mais baixas. Mas, para tudo isso, precisou jogar o jogo sujo que sempre esteve presente na política brasileira, se submeteu a negociatas e alianças com partidos opostos e pagou um preço muito alto. A liberdade concedida aos mecanismos de investigação da Policia Federal, nunca dada em outros governos, expôs diversos escândalos envolvendo membros do PT. Escândalos que, juntamente com um maior acesso a aparelhos eletrônicos e uma maior circulação de informações levou uma população com curta ou nenhuma memória histórica à “descobrir a existência da corrupção”, tal situação juntamente com o ataque maciço de uma mídia bancada por grupos empresariais ressentidos com a derrota de Aécio Neves e a influência digital de grupos de redes sociais bancados por partidos de direita como o MBL e o Endireita Brasil, logo conduziu o imaginário social de muitos brasileiros à conclusão de que o PT era o “partido mais corrupto da história” e que ser de esquerda é “apoiar bandido”. O PT caiu e com ele a imagem da esquerda no Brasil. Após um breve momento de situação a esquerda voltou a ser oposição, mas, o mundo de agora não é mais o mesmo de antes, os sindicatos estão enfraquecidos, os movimentos sociais não são mais o grande veículo de circulação de discursos populares, as mídias sociais assumiram este papel, a polarização politica atingiu um status nunca visto antes neste país e cabe à esquerda enxergar estas mudanças conjunturais, reconhecer seus erros e reaprender a fazer oposição para se reerguer.


A ascensão da esquerda em 2002 fez com que a direita se colocasse em uma situação rara para ela neste país, ela precisou aprender a ser oposição, mas como ela faria? Ela não tinha o apoio popular (pelo contrário, seus interesses e discursos eram impopulares), não tinha força numérica, não estavam acostumados a protestar por algo. Foi preciso construir as bases para que suas fraquezas fossem superadas em seu projeto de retomada ao poder. Durante os primeiros anos de governo Lula, surfando na onda da conciliação a direita teve seus interesses atendidos na base das negociatas e do velho “toma-lá-dá-cá”, diante do desgaste desta aliança, do incomodo de ver a ascensão social dos mais pobres e do rancor acumulado pelos sucessivos fracassos de seus candidatos para voltar ao poder um projeto mais obscuro entrou em curso em nosso país, o projeto do ódio e do fascismo. Para ganhar o apoio popular a direita apelou para o que há de mais apodrecido na população brasileira, os seus preconceitos mais íntimos e sua ignorância. Para tanto, fez uso da pobre retórica do fanatismo religioso para justificar o ódio aos homossexuais que ganhavam maior visibilidade e direitos e as mulheres feministas e empoderadas que ganhavam mais espaço e importância nas mais diversas áreas. O discurso de que a família tradicional estava sendo destruída por estes grupos apoiados pela esquerda caiu como uma felpuda almofada na qual os machistas e homofóbicos poderiam se sentir confortáveis. Fizeram uso do medo, das frustrações e da insegurança dos brutos, para justificar o discurso da violência apontando o caminho da repressão militar o do uso popular das armas como solução para a criminalidade, mas que no fundo servia para massagear o ego dos que desejavam um expurgo de sua violência contida pelo politicamente correto, para que estes pudessem levar seus atos de violência, ignorância e brutalidade doméstica também para as ruas para autoafirmar sua deturpada concepção de masculinidade. Com relação aos interesses econômicos, o discurso corporativista extirpou a consciência de classe disseminando a falsa ideia de que o funcionário é parte da empresa e que os interesses da empresa também devem ser os interesses do funcionário, de que a figura do patrão é um ser bondoso em um mundo no qual o desemprego apavora os famintos. Assim, a direita conduzia o discurso popular e aumentava seu exército de apoiadores lhe dando força numérica para encher as ruas em protesto. Os ricos nunca tiveram que pedir ou protestar por algo, eles mandam e manipulam para que seus interesses sejam atendidos, a classe alta não precisou ir às ruas, ela terceirizou esta tarefa para a classe média ignorante e preconceituosa convencendo-a com discursos simplistas, religiosos e uma enxurrada de Fake News que foram facilmente absorvidas por uma população com pouca leitura e reduzida capacidade de interpretação e crítica.


A estratégia de oposição adotada pela direita funcionou muito bem, alavancando Bolsonaro, um ex-militar e deputado com pouquíssima atuação política nos últimos 30 anos, à presidência da república como o representante máximo dos discursos fascistas disseminados durante o impeachment e a campanha eleitoral, um messias do ódio, da brutalidade e da ignorância. A direita voltou ao poder e a esquerda ao seu lugar de oposição, só que desta vez há uma população inflada pelo discurso fascista vociferando um ódio construído contra a esquerda. A esquerda está, então, sem o apoio popular, com seus líderes com a imagem manchada, com os sindicatos enfraquecidos, distante das bases que a fortaleciam no passado e diante de um cenário social e tecnológico totalmente diferente onde as notícias, informações, discursos e Fake News se disseminam rapidamente em correntes de Whatsapp e hashtags de Twitter, onde as “opiniões” de youtubers leigos tem a mesma importância, talvez até maior, que estudos científicos para a população. Com tanta desvantagem é preciso ter cuidado para não fazer uma oposição ingênua ou pior, que reproduza as aberrações da oposição construída pela direita.


Primeiramente, é preciso estar ciente de que a imagem da esquerda foi completamente despedaçada no imaginário popular, aquela parcela que se acostumou a ter sua opinião formada pela televisão e pelas redes sociais, para estes, a palavra esquerda está associada somente à corrupção, à imoralidade, à defesa de bandidos, à Lula e à PT, um reducionismo cruel, inúmeras vezes repetido e que empobrece a compreensão do que realmente é uma ideologia de esquerda. É preciso resgatar, sobretudo, no imaginário popular o entendimento do que é ser de esquerda, quais seus campos de interesse e de luta, sua história, suas conquistas de direitos, sua atual atuação nas mais diversas frentes. Para isso, é preciso estar próximo ao povo fazendo o trabalho de base, pessoalmente e virtualmente, levando os debates políticos e acadêmicos aos populares, escutando-os e dialogando, ampliando os horizontes e remando contra os reducionismos.


A força da esquerda sempre veio da união popular, dos movimentos sociais e da capacidade de lotar um estádio de futebol com grevistas lutando por seus direitos. A retomada da esquerda deve passar pelo fortalecimento desta união para que o trabalhador não se sinta abandonado quando seus direitos lhe forem tomados pelas medidas de austeridade neoliberais, que ele possa olhar para o lado e saber quem está lutando pela garantia de seus direitos, lutando por suas causas, e nesse sentido é necessário ter coragem para romper com a conciliação entre trabalhadores e os interesses neoliberais, assumir um lado e ser firme para enfrentamento. A ruptura deve acontecer também entre partidos de interesses conflitantes, a conciliação deu provas cabais de ser uma opção equivocada com o Impeachment de Dilma Rousseff articulado pela direita e com o apoio do então vice-presidente peemedebista Michel Temer. Não é possível caminhar de braços dados com quem quer te derrubar, é preciso fortalecer os que estão contigo, buscando uma união entre os diversos partidos de esquerda, resolver seus conflitos internos e construir um projeto de atuação que seja unificado, sério, sólido, coerente, em defesa dos trabalhadores e dos mais vulneráveis.


Com relação aos debates e a retomada dos diálogos se faz necessário trazer o debate político para um campo de análises sérias com relação à questões complexas superando os discursos simplistas e reducionistas, e para isso, é preciso abandonar os memes e piadinhas pois este embate apenas enfurece os ânimos, amplia a polarização, o ódio e a sensação de que o debate político não passa de uma briga de torcidas. O caminho é a argumentação, com estudos, fontes, dados e compromisso com a verdade, desmascarando as Fake News e cobrando das autoridades uma ação com relação aos responsáveis por criá-las e disseminá-las.


A oposição da direita tentou criar heróis, salvadores, foi assim com Cunha, o Japonês da Federal, Sergio Moro e Bolsonaro, que foram idolatrados pelos seguidores da direita, e que pouco a pouco foram desmoronando, em contrapartida a esquerda optou por seguir a agenda de Lula com as hashtags pedindo sua liberdade e posteriormente com a tietagem das postagens de Lula em suas redes sociais, para grande parte da esquerda ainda um herói, pronto, caímos no mesmo erro. A esquerda não é o Lula, não é o PT, é um ideal, uma corrente sociopolítica que está além de partidos ou uma pessoa especifica. É preciso ter cuidado para não criar heróis ou figuras messiânicas como salvadores assim como a direita fez, a idolatria cega impede a autocrítica necessária para reconhecer os erros e buscar um caminho diferente. Reconheço a importância que Lula e o PT teve na história deste país, mas é preciso dar espaço para novas pessoas carregarem o bastão, não como heróis, mas como competentes lideranças. É fundamental “oxigenar” os partidos com gente jovem, capacitada e com histórico de lutas junto à movimentos sociais, citaria Ciro Gomes como um nome forte, mas acredito que seus ideais estejam bem mais para o centro e para a conciliação, por isso, nomes como Flávio Dino, Fernando Haddad e Marcelo Freixo me parecem mais apropriados e com competência suficiente para liderar um projeto de renovação e unificação das esquerdas se tiverem tempo e boa vontade por parte de seus respectivos partidos.


Quanto à luta contra a violência, o autoritarismo e a repressão militar é viável que a esquerda assuma uma postura firme contra qualquer tipo de governo antidemocrático, independente de esquerda ou direita. Criticar a ditadura no Brasil, mas apoiar qualquer postura ou governo antidemocrático de esquerda em qualquer parte do mundo é dar munição para a direita se sentir confortável em sua defesa do autoritarismo e da ditadura militar. Defender uma ditadura é inconcebível em qualquer situação, devemos prezar pelo fortalecimento constante das instituições democráticas, isso é coerência.


A oposição precisa ser feita no enfrentamento das reformas que precarizam as condições de vida dos mais vulneráveis, mas também precisa ser forte para apontar os erros cometidos por este governo, porém, o foco não pode ser nos fracassos desse governo com a classe alta, como a alta do dólar e o baixo crescimento do PIB, pois isso, é medir as prioridades de um país com a régua dos ricos. A oposição deve expor amplamente nos mais diversos meios de comunicação os crimes contra o povo e seus direitos e propor soluções na forma de um projeto de país que coloque o bem estar do povo, o desenvolvimento social acima do interesse da economia. Algo similar já vem sendo projetado pela Holanda que já estuda um modelo de planejamento econômico para decrescer após a pandemia do Covid-19 construindo uma economia mais solidária e menos predatória com base nos seguintes princípios: 1 - Passar de uma economia focada no crescimento do PIB, a um projeto governamental que foque em serviços públicos essenciais e estruturais que requerem investimentos a longo prazo (setores públicos críticos, energias limpas, educação, saúde) e setores que devem decrescer radicalmente (petróleo, gás, mineração, etc.); 2. Construir uma estrutura econômica baseada na redistribuição que estabelece uma renda básica universal, um sistema universal de serviços públicos, um forte imposto sobre a renda, ao lucro e à riqueza, horários de trabalho reduzidos e trabalhos compartilhados; 3. Transformar a agricultura para uma que seja regenerativa, sustentável e baseada em produção local, respeitando a biodiversidade e proporcionando condições de emprego e salário justos. Tópicos interessantes, que poderiam ser discutidos e adaptados para a realidade brasileira.


Sei que tudo isso parece distante e talvez utópico, e que provavelmente tais ações não serão suficientes para a esquerda retornar ao poder nas próximas eleições, mas, o que proponho aqui não é uma retomada de poder mas sim, uma retomada de essência, uma retomada da credibilidade, a esquerda não necessariamente precisa estar na situação para conseguir suas vitorias, ela precisa ter força, competência e apoio popular para lutar. Não há mais espaço para a esquerda se pintar de moderada e se apequenar para caber na casa grande, no grande salão do jogo politico das elites, ela precisa ser diferente deles, ser a representação confiável dos interesses dos mais vulneráveis, ser unissonamente a voz do povo. Bolsonaro se vendeu como um representante do povo, mas este papel jamais poderá cumprir, pois, quem o sustenta é o modelo econômico neoliberal e rentista. É a eles a quem ele jura lealdade ao ponto de colocar em risco a vida de milhões de brasileiros para proteger os interesses do mercado. O povo precisa estar atento para ver de que lado a luta por seus interesses acontece.

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1 Comment


Baita contexto histórico. Vi cada fase acontecendo. Que tristeza termos um inominável na presidência. Mas nada é eterno, um dia estaremos no governo novamente e, quiçá, tenhamos aprendido a lição.

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