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Foto do escritorLucas Pires

Desbolsonarizar é preciso



No último ensaio publicado nesse espaço, Seduzidos pelo ódio: uma breve explicação sobre o bolsonarismo, mencionei alguns dos desafios que circundam a sociedade brasileira no decorrer dos próximos anos. A derrota eleitoral de Bolsonaro/Paulo Guedes foi muito representativa, evidenciando uma capacidade de resiliência, não necessariamente das instituições, mas da sociedade brasileira aos avanços da ideologia neofascista. Exemplos históricos demonstram que quando um conjunto social abraça o fascismo, a tendência é não se desvencilhar facilmente. No fenômeno brasileiro, essa tendência de permanecer grudada ao projeto de destruição ficou e continua muito evidente. Afinal, um terço da população continua sendo seduzida pelo poder de atração proporcionado pelo ódio.


Porém, a derrota eleitoral do neofascismo e, consequentemente, a derrota do projeto de destruição da sociedade brasileira somente foi possível porque a maioria da população não deixou ser seduzida pelo fascínio da destruição. Não resta dúvida, a figura do presidente Lula tem uma enorme relevância para a derrota eleitoral da extrema-direita. Afinal, Lula é um importante representante do que há de mais autêntico no povo brasileiro. Muitos se sentem representados na trajetória de vida do presidente, na sua capacidade de resiliência diante das injustiças sociais, políticas e judiciais. Um outro detalhe, foi nos governos do presidente Lula que a vida da maioria da população brasileira melhorou significativamente. A sociedade passou a viver e a conviver com mais dignidade.


Todos esses fenômenos, merecedores de uma leitura mais atenta, não podem ser desconsiderados. Porém, haverá uma outra oportunidade para se analisar toda a relevância do presidente Lula neste último processo e o quanto a sua figura de líder político e de ser humano foi importante para a derrota eleitoral da extrema-direita brasileira. Por enquanto, a análise estará centrada, mais diretamente, na capacidade de resiliência da sociedade. No decorrer do ano de 2022, apresentava-se no horizonte dois caminhos: Possibilidade de existência de um estado democrático de Direito ou a certeza da Barbárie. Felizmente, a primeira possibilidade prevaleceu. Existe um longo percurso a ser percorrido até a consolidação efetiva do estado democrático de direito no país. Entretanto, com muita mobilização social é possível caminhar por essa trilha.


A capacidade de resiliência da maioria da população não poderá ser compreendida como uma questão menor, pelo contrário. Envolta em um cenário de rápida destruição do tecido social, impulsionada pelas políticas neoliberais do ex-ministro da Economia Paulo Guedes, as condições de vida e de sobrevivência estavam distantes de serem favoráveis. O cenário estava caracterizado pelo elevado índice de pessoas desempregadas, de pessoas convivendo com a precarização em todos os níveis, tais como a quantidade inaceitável de indivíduos convivendo com a insegurança alimentar, com a fome, entre outros fatores. Todo esse contexto de destruição das políticas públicas deixou uma parcela considerável da sociedade vulnerável a todos os tipos de violência. O ano de 2022 esteve marcado pelo assédio moral, religioso, econômico e institucional.


Convivendo com esse cenário, uma “simples” declaração de voto no candidato do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva, poderia significar, e em muitas situações significou; demissão no emprego, público ou privado, expulsão de templos religiosos, violência física e ou psicológica, ameaça de morte e, infelizmente, morte de pessoas que manifestavam o seu desejo de voto no atual presidente. Na condição de um fenômeno ideológico diretamente influenciado pelo fascismo histórico, a extrema-direita não consegue e não deseja conviver com as diferenças. Pelo contrário, o projeto arquitetado, que provavelmente se consolidaria com a reeleição de Bolsonaro, estava centrado em uma sociedade heteronormativa, branca, judaico-cristã, e neoliberal ao extremo.


Enfim, a derrota eleitoral da extrema-direita significou, também, a derrocada de um projeto de sociedade moldado pela violência, e constante tentativa de impor os seus valores diante da diversidade sociocultural. Por enquanto, a capacidade de resiliência da maioria da população foi suficiente para impedir a consolidação de um projeto autoritário. Autoritário em todos os sentidos; valores, costumes, religiosidade e no campo econômico. No entanto, o desejo de imposição deste projeto de destruição continua movendo mentes e corações de milhões de pessoas por esse país. Movidas e seduzidas pelo ódio, o anseio de promover uma contrarrevolução conservadora continua presente no imaginário social. Enquanto esse desejo não for derrotado socialmente, o fantasma do autoritarismo continuará nos assombrando.


Por exemplo, o processo de desnazificação da Alemanha demorou décadas. Pelo que tudo indica, a desbolsonarização da sociedade brasileira demandará um tempo considerável. No mínimo, um período de média duração. Observar e entender os fenômenos históricos de ascensão, derrocada e (re)educação humana e social das sociedades que foram atingidas e destruídas pelos totalitarismos do século passado parece ser fundamental. Compreender o trabalho de (re)educação da sociedade alemã depois do fim da segunda guerra mundial e, consequentemente, derrota do nazismo pode ser um caminho a ser vislumbrado pelo Brasil. É evidente que as medidas e os processos adotados têm que ser adaptados tanto a realidade brasileira quanto ao tempo presente. No entanto, de uma questão não é possível abrir mão, a saber, o início da desbolsonarização da sociedade brasileira. O fenômeno não somente é preciso, é mais do que isso, tornou-se urgente.


Muitas pessoas acreditam e têm defendido a importância da acolhida. Ou seja, de acolher, sem julgamento, aquelas pessoas que abraçaram o projeto de destruição da extrema-direita. Afinal, essas pessoas estão próximas de nós. São vizinhos/as, amigos/as e familiares que, quando percebemos, se radicalizaram e passaram a defender um modelo de sociedade excludente, violento e neoliberal. Procurar sentar, conversar e tentar compreender o porquê da defesa de um projeto de autodestruição tem sido defendido com muita veemência por inúmeros setores e agentes da sociedade civil. Não resta dúvida, no processo de desbolnarização, a acolhida terá um papel importante. Porém, as atitudes individuais terão as suas limitações.


O trabalho, mais do que as boas intenções individuais ou de grupo, parece demandar um esforço coletivo, passando prioritariamente pela presença do estado. Primeiro, é necessário resgatar um princípio de coletividade que o neoliberalismo, ao longo das últimas décadas, destruiu literalmente no país. Nesse sentido, fazer com que o indivíduo compreenda que vive em uma sociedade pode ser um processo importante. Na condição de um indivíduo coletivo, o problema de outrem não deve ser compreendido como sendo um obstáculo meramente individual, mas algo a ser resolvido por meio da coletividade.


No decorrer das últimas décadas, com o valor atribuído ao processo de individualização, meritocracia e empreendedorismo, o neoliberalismo conseguiu desumanizar milhões de pessoas. O processo de desbolsonarização passa, prioritariamente, por um enfrentamento sistemático ao neoliberalismo e aos seus agentes mais nervosos, a saber, o mercado financeiro. O enfrentamento ao projeto neoliberal significará, em contrapartida, a maior presença do estado na vida das pessoas. Presença, neste caso, no sentido mais amplo do termo. Caberá ao estado consolidar um investimento sem precedentes na arte, na cultura e na educação humana e humanizadora. A arte e a cultura terão um papel fundamental, principalmente porque serão os meios que proporcionarão o resgate da sensibilidade e da empatia que foram se perdendo com o avanço da extrema-direita e do neoliberalismo ao longo dos últimos anos.


Não é coincidência que os regimes totalitários da extrema-direita, no decorrer do processo histórico, construíram um sentimento de negação da arte e da cultura, apresentando-as como se fossem perigosas para os famigerados “cidadãos de bem”. De fato, a arte e a cultura representam um perigo a todo e qualquer projeto autoritário. Com a ascensão da extrema-direita no Brasil, houve uma perseguição sistemática a qualquer projeto artístico e cultural. Um outro fator, a atividade dos/as artistas passou a ser criminalizada, e qualquer fomento cultural passou a ser uma afronta aos valores e costumes dos “cidadãos de bem”.

Conforme mencionado, é por meio da arte e da cultura que nos humanizamos, que passamos a ter mais empatia e nos sensibilizamos com os problemas sociais. Para o avanço da extrema-direita um fator tornou-se fundamental, a saber, a desumanização do indivíduo e, consequentemente, da sociedade. A arte e a cultura representam totalmente o oposto. A arte nos humaniza. Caberá ao estado brasileiro um investimento substancial nos projetos artísticos e culturais esparramados pelo país, fazendo com que essas manifestações possam alcançar o maior número de pessoas possíveis.


Resgatar o princípio de humanidade que a extrema-direita e o neoliberalismo destruíram torna-se fundamental. Por último, mas não menos importante, tanto a qualidade de vida quanto a dignidade devem estar presente no horizonte de todas as pessoas. Nos últimos anos, o neoliberalismo inviabilizou qualquer possibilidade de vida digna. As pessoas passaram e continuam enfrentando problemas de toda a sorte; desemprego, insegurança alimentar, fome, precarização do trabalho e assim por diante. Enfrentar esses problemas, devolvendo qualidade de vida e dignidade para toda a população torna-se algo essencial para a desbolsonarização do país.


Existe um desafio enorme no horizonte do governo Lula. Porém, a desbolzonariação não dependerá somente do governo federal. Deverá ser um esforço contínuo de toda a sociedade. Para isso, tencionar para que o governo Lula possa produzir políticas públicas de transformação da realidade deverá ser um dever de todos/as que não foram seduzidos e cooptados pelo ódio da extrema-direita.

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