top of page

Expectativa e frustração na experiência histórica e ontológica humana


A expectativa e a frustração constituem o mais elementar e ilustrativo condicionamento ontológico da humanidade. Desde a mais longínqua experiencia do homem na Terra, expectativas foram sendo gradualmente criadas em razão de uma gama de fatores e natureza diversas, ao passo que o sentimento de frustração decorreu, em proporção igual ou superior, daquilo que se gestou em expectativas. Conforme o exposto, fica claro que não se poderia pensar em expectativa sem sua consequência mais singular: a frustração. Claro fica, por logo, que não se poderia pensar em frustração sem sua causa mais evidente: a expectativa. São dois lados de uma mesma moeda.


Pretendo, inicialmente, discorrer sobre estas duas categorias, expectativa e frustração, em que ouso dimensioná-las como ontológicas. Por conseguinte, tento mostrar que tanto a expectativa quanto a frustração – apesar de apresentarem substâncias específicas em suas conceituações – possuem características sociais e coletivas que vão além de uma rasteira concepção momentânea de experiência de vida. Isto é, tratar-se-á de uma averiguação em que se objetiva delimitar essencialmente a função pedagógica dessa correlação binômica. Esta função pedagógica se revelará valiosa, uma vez que possibilitará ampla interpretação sobre os atenuantes que resultam da interconexão expectativa-frustração. Em consequência, abordaremos os conteúdos práticos dessa conexão dual, apresentando a seguinte hipótese: a expectativa e a frustração não decorrem de meros condicionamentos sentimentais (o que não negligencia sua essencialidade motivacional variável), mas, sim, de determinantes da própria condição humana de existência enquanto tal.


Para a primeira discussão, afirmo que entendo a relação expectativa-frustração como um conjunto de elementos que constituem a existência humana, que por sua vez, são indispensáveis à convivência social e à experiência de vida. Tal afirmação se justifica em razão de uma condicionante prática e histórica. Desde a Pré-História, o homem gera em si mesmo e naqueles que o cercam, expectativas com relação à manutenção de sua existência concreta e física. Significa que o homem pré-histórico concebia sua existência física à possibilidade de encontrar ou não, meios para o qual não prescindia à sua reprodução, tais como, água, frutos, animais, madeira, fragmentos de rochas, cavernas, entre outros. Ao passo que tais recursos diminuíam, a expectativa aumentava em comparação com o porvir, exatamente porque não se tinha convicção do que o amanhã reservaria, uma boa caça, um rio, uma árvore frondosa. Daí, a necessidade de se transferirem de um lugar para o outro, com muita frequência.


Essa opção pelo nomadismo reflete, do ponto de vista histórico, uma condição sine quo non de sobrevivência. Por meio disso, as expectativas geradas a cada instante em que um recurso natural se escasseava confluía para novas expectativas e novas frustrações. E a extensão dessa expectativa no caso de uma malsucedida experiência de sobrevivência culminava em igual ou superior frustração. Nesse sentido, ocorre que, naturalmente, a frustração gerada pela expectativa de encontrar um ambiente que propiciasse a devida realização das condições de vida biológica para o homem o condicionava a estar em constante estado de alerta. Este estado de atenção, fundado na incerteza do amanhã, contribuiu, tão logo, para o limiar da agricultura e de seu consequente aprimoramento. Diríamos então, com receio de incorrermos a generalizações históricas, que o sedentarismo histórico do homem a partir da agricultura foi gestado no útero da incógnita, neste caso, da frustração. A intrínseca relação das necessidades de sobrevivência do homem ao longo do tempo o levara a aprender sobre a melhor forma de conseguir se manter vivo e a se reproduzir. A expectativa e a frustração apenas funcionaram como um mecanismo para acelerar este processo.


Eu poderia continuar a descrever a respeito deste contexto de sobrevivência do homem pré-histórico, em especial atenção, no tocante ao aspecto do desenvolvimento de técnicas agrícolas, que possibilitaram, conforme os anais de história, a formação das primeiras civilizações. Certamente concluiríamos que a prática do cultivo do solo com intensa atividade laboral coletiva, fora influenciada por inumeráveis fracassos com relação à uma boa colheita, o que possibilitava aprimorar e inovar em técnicas e instrumentais para isto. Ou seja, mediante expectativas e frustrações gestadas, fora possível ao homem continuar sua trajetória em direção à formação das sociedades.


O que quero demonstrar é que, historicamente, o homem e as sociedades antigas, modernas e contemporâneas, se estruturaram em consistentes bases culturais, sociais, políticas e econômicas, tendo como um dos elementos condutores a díade expectativa-frustração. Certamente que a formação política e econômica de grande parte das sociedades humanas e dos Estados nacionais (entendendo este como um aparato burocrático de organização sociopolítica) possam estar direta ou indiretamente vinculados ao binômio expectativa-frustração. Ora, se entendermos por política toda e qualquer relação de poder que se opera em todas as instâncias da vida humana (FOUCAULT, 1984) concluiríamos que, diversos segmentos do tecido social elaboram projeções sobre como este ou aquele poder deverá ser, de fato, exercido. Seja entre patrícios e plebeus, senhores feudais e servos, burguesia e proletariado, a expectativa dos segmentos dominantes é sempre continuar estendendo seus tentáculos aos dominados. A estes últimos, a expectativa é a de, um dia, tornarem-se dominantes. No caso da frustração, nos dois modelos apresentados, fica a questão do fracasso na não realização dos dois projetos.


As maiores revoluções da história sempre tiveram motivações circunscritas por desejos, anseios e expectativas. Isto significa que o desejo de mudança move o espírito humano a continuar buscando novas formas de organização social e política. Move também no sentido de invocar novas correntes de pensamento e estruturais mentais variáveis. O que seria da Revolução Francesa se o campesinato não gerasse tamanha expectativa em torno de uma alteração nos padrões de vida da corte francesa, esbanjando opulência enquanto o povo vivenciava a miséria? E em relação aos ideais daquele momento específico, onde os valores burgueses quiseram uma ruptura com o arcaísmo da estrutura de poder baseada no absolutismo e no ainda consistente poder monárquico, as expectativas de uma França liberta de tais grilhões puderam se concretizar? Ao menos de uma parte a resposta é afirmativa. E a frustração, onde se encaixaria nessa história? Ora, o campesinato que derrubou a Bastilha do absolutismo, após a vitória da Revolução, obtivera mantida as promessas que lhes foram feitas? Não houve, de certo, uma real e brutal manutenção da miséria na França? Com certeza a Revolução mais fracassou e mais se frustrou do que se tornou vitoriosa.


Este é o lado que do ponto de vista ontológico até aqui estou tentando ressaltar. Isto é, que o ser humano é constantemente induzido a agir em todas as instâncias da vida por circunstâncias decorrentes de uma dada expectativa, o que automaticamente gerará, mais cedo ou mais tarde, uma dada frustração. Se analisarmos com o devido cuidado prático, veremos que todas as ações humanas, sejam elas de toda e qualquer dimensão, forjam-se a partir de anseios, desejos e expectativas. Tão logo, se houver o malogro, aquilo que foi gerado como expectativa rapidamente se transforma em aprendizado e acúmulo de experiências. O que não significa a possibilidade de incorrer num erro mais de uma vez.


Neste quesito, o quesito pedagógico, é que introduzo minha segunda avaliação sobre a validade da relação expectativa-frustração na experiência humana. O erro é uma ação que devidamente localizada em suas bases circunstanciais, nos mostra o lado mais destacado da frustração. Isto é, quando ocorre a frustração, ela é resultado prático da tentativa de acertar, daquilo dar realmente certo. Em outras palavras, o efeito concreto do erro e da frustração é servir de aprendizado e preparação para futuras experiências gestadas. Isso significa que da frustração – que neste ponto estamos associando ao erro para definirmos suas nuances pedagógicas – emerge uma nova expectativa, pois ela não é mais a antiga expectativa, a que antecedeu o erro, a frustração, mas é uma nova possibilidade criada a partir de uma não realização daquilo que se desejava.


Disso, decorre o que vou denominar de pedagogia da frustração e pedagogia da expectativa, respectivamente. É, pois, exatamente nesta ordem que se interpõem a expectativa e a frustração à esfera do aprendizado, que no parágrafo anterior destacamos. Em outros termos, constitui-se em elevado nível a força com que tal pedagogia da frustração determina a pedagogia da expectativa. A possibilidade do erro e da frustração conflui para novas formas de pensamento e novos modelos relacionais, que fornecem uma reconstituição do que antes foi gerado no seio da dicotomia expectativa-frustração.


Para exemplificar, pode-se considerar que uma pessoa sente uma atração afetiva por outrem (expectativa), entretanto, sua estratégia de conseguir chamar a atenção para si é ainda insuficiente (frustração). Diante de incontáveis tentativas de obter a atenção da pessoa objeto de seus desejos e, por conseguinte, de variados fracassos nessa tentativa, reelaboram-se outros métodos e outras estratégias de se tornar visível e notado, logo, de consumar a conquista daquilo que se almeja. Está aí a função pedagógica da relação diádica expectativa-frustração. É o mesmo que uma criança, sedenta de curiosidade em levar sua mão em direção ao fogo (expectativa), mas que não consegue alcançar as chamas (frustração). Ela irá reelaborar, depois de várias tentativas, meios e metodologias para alcançar as chamas, nem que seja por meio de uma cadeira.


Na esteira dessa proposição pedagógica do binômio expectativa-frustração, defendo a ideia de que a própria condição humana, ou seja, tudo aquilo que nos afasta do estado de natureza e barbárie, é resultado da conformação de anseios (expectativas) e de fracassos (frustração). No bojo da concepção filosófica, a expectativa é entendida como uma potência de vontade. Isto é, a expectativa é uma esperança. E essa esperança é entendida como a mais violenta e sofisticada vontade humana de se obter aquilo que se deseja. Já em situação oposta, o fracasso é concebido como a não satisfação ou a não realização de um determinado desejo. Isto é, o fracasso, como frustração, é a ausência de potência derivada da esperança (expectativa) que fora gerada (CORTELLA; FILHO, 2016).


Essa dimensão potencial da relação expectativa-frustração, como ficou demonstrado, está contida na essencialidade humana. Ela não é algo exterior nem mesmo resultado tão somente de aspectos puramente sentimentais. É de tal modo ontológica, uma vez que sugere e afirma sua dimensão formativa do homem enquanto ser social. Ora, o pensamento heraclitiano já validava essa proposição. O vir a ser atesta que o ser humano é determinado por aquilo que acredita que irá se tornar um dia, ou mesmo possuir. Esse axioma filosófico atesta ainda a validade da expectativa e da frustração em consonância com o entendimento de que o homem nunca permanece o mesmo, pois está em constante procura por algo que ainda não tem ou não vivenciou. Seria de fácil entendimento se interligássemos essa propositiva de Heráclito, quando utiliza da metáfora do rio (um rio nunca é o mesmo) para explicar o vir a ser, e os desdobramentos disso na vida e na experiência humana.


Sendo uma condição ontológica, seria impossível blindar a esperança da frustração. Além disso, a expectativa, estando no campo das possibilidades, convergindo para a utopia e a esperança, necessita da frustração. É um processo que desponta para as emancipações sociais, pois quando se deseja e se frustra, ao mesmo tempo, novos desejos e novas expectativas são elaboradas e novas frustrações e novos fracassos são concebidos, e assim sucessivamente (SANTOS, 2008). Desta feita, se consideramos que a expectativa e a frustração são partes essencialmente ontológicas do homem, também são partes de grandes desastres humanos. A negatividade das catástrofes humanas (guerras, fome, miséria, degradação do meio ambiente, epidemias, depressão, suicídios, homicídios etc.) decorrem exatamente da conexão dessas duas categorias. A gestação de uma dada esperança gera, automaticamente, uma enorme frustração, caso ocorra o fracasso. E isto imputa em condicionantes negativas ao convívio social e humano.


Para Moura (2008), a frustração envolve duas esferas. A primeira compreende a frustração como sendo um conceito impeditivo da realização de algo, de uma vontade que exterior ao indivíduo. Ou seja, neste ponto de vista, a frustração é uma negação em si mesma, pois decorre em um obstáculo e uma interferência na prospecção de uma dada necessidade. A segunda concepção de frustração abarca a dimensão emotiva e sentimental negativa à realização de um dado evento ou de uma dada necessidade. Trata-se de uma questão que envolve a parte interior do indivíduo, seus valores morais, éticos, sociais, culturais, religiosos, entre outros.


Fica claro que tanto a expectativa quanto a frustração são condicionantes ontológicas. E não se trata de uma elaboração sistêmica do pensamento, em que facilmente seria possível sobrepujar desejos e enterrar fracassos. Se trata de experiência vivenciada desde os tempos de existência do homem na terra, como no início do texto procurei evidenciar. Negar este fato tão claro e tão evidente é negar a si mesmo. Como diria Henri Lefebvre, “todo pensamento é utópico”, e utopia só existe porque existe expectativa e frustração.



Referências

CORTELLA, Mário Sérgio; FILHO, Clóvis de Barros. Ética e vergonha na cara. São Paulo: Papirus, 2016.

FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. São Paulo: Graal, 1984.

MOURA, Cristiane Faiad de. Reação à frustração: construção e validação da medida e proposta de um perfil de reação. 2008. 169 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília, 2008. Disponível em: <https://core.ac.uk/download/pdf/33531406.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2019.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. 2002. Revista Crítica de Ciências Sociais. Disponível em: <https://journals.openedition.org/rccs/1285#tocto1n1>. Acesso em: 04 jun. 2019.

11 visualizações

Comments


bottom of page