Como forma de iniciar este texto, ire valer-me de uma fala do professor Carlos Rodrigues Brandão presente em um dos seus escritos e que melhor poderia introduzir o que de fato buscamos, a partir desse momento, refletir: “se você parar por um momento e se dispuser a lembrar um dia em suas semanas; uma semana em um mês; alguns momentos de meses ao longo de um ano, vários momentos ao longo dos anos de sua vida, por certo recordará que entre tempos dos dias e da vida dedicados a realizar ações práticas, como tomar banho, escovar os dentes, trabalhar de segunda a sexta, ajudar os filhos nos deveres escolares e podar a grama do jardim, você viveu e vive ainda (espero) inúmeros outros momentos que misturam a ação prática com algo que, dentro dela, antes ou depois dela, fora dela, ou conta ela, acrescenta o símbolo, o rito, o ritual, a comemoração, a homenagem, a lembrança, a celebração à sua vida. É por isto também ela afinal “valha apena”. Não lembro qual poeta ou filósofo grego, pré-socrático, terá escrito séculos atrás: “a vida sem festas é uma longa viagem sem hospedarias”” (BRANDÃO, 2015, p. 27-28, grifo nosso).
A assertiva do professor Brandão é emblemática pois ilustra o que observamos como de essencial nas festas: algo que se identifica como sendo uma cisão, uma verdadeira ruptura do cotidiano. Se seguirmos ao pé da letra a observância de nossos dias, meses e anos, chegaremos à conclusão que as festas estão entremeadas no nosso fazer e pensar cotidianos. Mesmo que soe fútil, ou algo de uma natureza cândida, as festas, ou a festa – uma vez que estamos analisando a dimensão representacional desta essência fulcral de nossa existência – é uma representação de nossas relações sociais, aspectos de nossas tradições, valores, crenças e elementos culturais. Talvez por não ter havido tempo para pesquisar, o professor Brandão não conseguira identificar que o filósofo que cita como autor da frase “a vida sem festas é uma longa viagem sem hospedarias”, seja Demócrito, aquele que não dispensava os prazeres e as festas (SANTORO, 2007, grifo nosso).
A frase do filósofo grego também é emblemática. Por certo, ela mostra outra dimensão essencial das festas: a do prazer e a do lúdico. Isso significa que, no cotidiano, as festas possuem uma considerável importância como momento que interrompe, mesmo que momentaneamente, a monotonia dos deveres e afazeres do dia a dia. Mesmo que por algumas horas, dias, semanas ou anos, nos motivamos e nos empenhamos para fazer deste momento, um momento único, peculiar e marcante na memória. São instantes em que nos dispomos de outras roupas, comidas, lugares, comportamentos, pessoas, personagens, diálogos, celebrações, gestos e valores. Desse modo, o que caracteriza a festa em si é sua especial capacidade de romper com a rotina da vida cotidiana, “uma ruptura que em diferentes situações coloca as pessoas, as instituições e a própria vida social diante do espelho fiel ou invertido do que elas são, quando não são a festa” (BRANDÃO, 2015, p. 33, grifo nosso).
Sejam elas (as festas), tradicionais, populares e/ou devocionais, ou mesmo seculares, ou “profanas”, todas, independentemente da sua estirpe, de sua característica, possuem outro fator de importante relevância: a capacidade dimensional da interação social. Independentemente de sua duração e/ou organização, estrutura e intenção, as festas representam o momento do encontro de pessoas, grupos e classes sociais. Como mecanismo de associação por meio da interação social, a festa faz-se valer de suas propriedades específicas: os símbolos, os ritos e rituais, os gestos, as celebrações, a comida e a comilança, entre outros, para impor-se como evento que, instantaneamente, congrega indivíduos e segmentos sociais que, no cotidiano, rivalizam-se e se opõem. Talvez aqui possamos ir além e afirmar que certas festividades tendem para certa “democratização” dos espaços e relações sociais.
No tocante à esfera do “sagrado” e do “profano”, concordamos em haver genuína combinação de aspectos da devoção e religiosidade, com elementos do que podemos denominar de “secular” e “mundano” nas festas. Diferentemente do que defende Rosendahl (1996, p. 31, grifo nosso), quando este autor afirma que “o sagrado e o profano se opõem e, ao mesmo tempo, se atraem; porém jamais se misturam”, acreditamos que as festas são, em especial, momentos que se definem por amalgamar dimensões do sagrado e do profano sem, muitas das vezes, conseguirmos diferenciá-las. Dependendo da festa em si, os rituais podem até demonstrar certa sistematização e separação de campos do sagrado e do profano. Porém e mesmo assim, tudo isso, inclusive o próprio ritual sistematizado, se mistura com as práticas ditas mundanas.
A festa também é um reflexo da sociedade. Além de ser apropriada pelo capital (exploração pelo comércio, turismo e etc.), a festa é um espaço de representação do status quo, uma oportunidade momentânea para certos grupos e instituições exibirem suas posições políticas, econômicas e ideológicas. Tal exposição se reflete na indumentária, nos gestos, nos objetos, na estrutura, nos financiamentos particulares, nas posições de destaque e privilégios concedidos. Se por um lado a festa denota uma realidade social estratificada e verticalizada, por outro caracteriza-se pela resistência popular, por meio da participação, direta e/ou indireta, das classes subalternas – para nos valer do termo de Gramsci – nas festividades. Desse modo, a festa é em si mesma uma representação das relações de poder existentes na sociedade.
Desde os tempos coloniais, as festas eram idealizadas e organizadas com envolvimento tácito de diferentes segmentos sociais. Nesse sentido, “as festas, além de misturar estilos, sons e particulares, misturavam também os corpos. Embora a maioria dos narradores destaque a presença de “nobres de armas, chefes dos militares, embaixadores, arcebispos, bispos, prelados, com capas velhas e carmesins (...) damas e dueñas”, tradicionais suportes do Estado absolutista, são também unânimes em destacar a presença do povo” (DEL PRIORE, 1994, p. 19, grifo nosso). Isso significa uma multiplicidade de pessoas e grupos, logo de interesses e posições sociais em um mesmo espaço, celebrando e comemorando individual e coletivamente.
Além da dimensão política e econômica a festa representa a oportunidade, em primeira instância, para compreender a natureza do espaço territorial. Capacidade também de produzir, em segundo, os símbolos territoriais que fixam e qualificam os lugares, as paisagens, os edifícios, os monumentos, como culturais, tradicionais e de significações identitárias. Nessa confluência de sentidos físico-territoriais e simbólicos-culturais, determinam-se modos e expressões de vida, bem como de relações socioespaciais coletivas e individuais. É relação intrínseca entre homem-meio / meio-homem que define o sentido objetivo e subjetivo da festa.
A diversidade de interesses e motivações, sejam territoriais, culturais, políticas, econômicas, simbólicas, tradicionais ou religiosas, ou todos esses juntos, determina a essencialidade, assim como fornece sentido e conteúdo ao que se pode denominar por festas. Assim, por exemplo, o sentido da festa para um jovem difere, de modo geral, do empregado pelos mais “velhos”. Para os primeiros, a festa representa o ponto de encontro, onde se pode observar e ser observado; espaço para divertimento, que envolve conversas, bebedeiras, flertes e namoros. Para os segundos, a dimensão tomada para com o conteúdo da festa alcança o íntimo da tradição, do sagrado, da memória e da esperança que se renova a cada ano (LIMA, 2015). Neste ponto, o “conflito de gerações” é um atenuante natural das festas, uma vez que a tradição não é estática, imóvel, mas, ao contrário, suscetível de mudança e transformações das mais variadas possíveis e nos mais diferentes tempos históricos (GUIDDENS, 2005).
Dimensionada por diferentes concepções, interesses e motivações, as festas podem ser vislumbradas por meio de um conjunto de práticas e representações cristalizadas e/ou reproduzidas no decorrer da vida cotidiana (MESSIAS, 2015, grifo nosso). Essa característica de fissura cotidiana das festas, é, pois, presença marcante desde o período colonial. De forma a ilustrar, o próprio “anúncio da festa revestia-se de características que enfatizavam o especial, o peculiar, da data. Vestimentas luxuosas, instrumentos musicais e máscaras tinham por objetivo sacudir a comodidade da modorra do seu cotidiano, por meio do barulho dos tambores e do espetáculo visual da promessa de divertimentos” (DEL PRIORE, 1994, p. 30, grifo nosso).
Por mais que haja circularidade e excessiva repetição, as festas, ou melhor, as práticas, os gestos, os ritos, os rituais, os símbolos e as celebrações que se operam nas festas, estas sim, se renovam, se reinventam, se reintroduzem em novos contextos, gerações, territórios, espaços, lugares, tradições, costumes e visões de mundo. Dessa forma, “a festa é capaz de criar e recriar os campos de sentido individual e coletivo, tornando-se uma organização social capaz de influenciar as relações cotidianas” (SILVA, 2015, p. 431, grifo nosso). Os instantes de preparação dos momentos festivos revestem-se de uma ritualística capaz de extrapolar o sentido material alcançando o sentido imaterial, simbólico e sagrado. Todas as atividades inscritas no cotidiano, como cozinhar, fazer compras, arrumar a casa, entre outros, se ressignificam a partir das inscrições festivas, pois se alteram calendários, criam-se expectativas, almejam-se objetivos.
A festividade envolve, além das dimensões políticas, sociais, econômicas, ideológicas, simbólicas e culturais, a dimensão ontológica. A festa não se reduz tão somente a um conjunto de pessoas, gestos, ritos e rituais reunidos(as). Ela se faz presente no próprio sujeito (Ser), que idealiza, concebe e realiza a festa. Portanto, a festa pode ser desde uma grande celebração coletiva, um almoço de família, um encontro de amigos para assistir a uma partida de futebol, até o deleite insólito de ouvir música clássica em casa sozinho. De tudo que foi descrito até aqui, o que mais nos importa, de fato reiterar, é que a festa, seja ela como for, traduz um sentido único e particular: a ruptura com o cotidiano.
Referências:
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. De um lado e do outro do mar: festas populares que uma origem aproxima e que um oceano e um cerrado separam. In: OLIVEIRA, Maria de Fátima et al. Festas, religiosidades e saberes do cerrado. Anápolis: Editora Ueg, 2015. Cap. 1. p. 25-73.
GUIDDENS, Anthony. O mundo em descontrole. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.
LIMA, Luana Nunes Martins de. O sagrado e o profano na Romaria Kalunga de N. Senhora Aparecida: diversidade de inserções em uma unidade de “visões de mundo”. In: OLIVEIRA, Maria de Fátima et al. Festas, religiosidades e saberes do cerrado. Anápolis: Editora Ueg, 2015. Cap. 11. p. 319-345.
PRIORE, Mary del. Festas e utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994.
SILVA, Mary Anne Vieira. As festas do Candomblé: tradição, identidade e poder. In: OLIVEIRA, Maria de Fátima et al. Festas, religiosidades e saberes do cerrado. Anápolis: Editora Ueg, 2015. Cap. 11. p. 319-345.
MESSIAS, Noeci Carvalho. Seguindo o cortejo: breves considerações sobre a morte de um imperador do Divino Espírito Santo, em Natividade, Tocantins. In: OLIVEIRA, Maria de Fátima et al. Festas, religiosidades e saberes do cerrado. Anápolis: Editora Ueg, 2015. Cap. 7. p. 201-235.
ROSENDAHL, Zeny. Espaço e religião: uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro: UERJ, NEPEC, 1996).
SANTORO, Fernando. Arqueologia dos prazeres. São Paulo: Objetiva, 2007.
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