Ao ler textos sobre memória(s) de outrem, seja de caráter acadêmico, ou por meio de outras leituras, sempre fico com a impressão que as minhas memórias, aquelas que, de acordo com Ecléa Bosi (1994), permanecem por uma série de motivos, não são memórias que possuem o mesmo nível de relevância se comparada com as que se fazem presente nos textos, ou mesmo nas histórias contadas por sujeitos do cotidiano.
Pode ser que na prática, a representação do parágrafo, acima, seja apenas impressão, e quando eu desatar os fios que tecem a minha memória talvez seja possível que quem esteja ouvindo, ou lendo, se interesse pelas histórias apresentadas. É provável que a relação de proximidade se constituíra muito mais com as pessoas que, de alguma forma, estabeleceram relação, quando poderão se identificar com à memória resgatada, porque, afinal, como afirma Halbwachs(2003), nossa memória é coletiva.
Nesse sentido, quando me deparei com a questão dissertativa, tendo como proposta resgatar uma lembrança de vida, confesso que fiquei desnorteado, sendo possível perceber, minimamente, o estágio que fiquei diante do relato, sincero, do primeiro parágrafo. Diante do embaraço, consultei minha esposa sobre algumas lembranças que ela tinha do nosso passado para ver se eu tinha condições de construir uma “boa” lembrança. Os fatos lembrados, por ela, são importantes, mas me pareciam que faltavam algo. É possível que, para eu, o algo que estava faltando, ou melhor, está faltando são os acontecimentos épicos, histórias que envolvam o leitor/a e o ouvinte na teia da narrativa, porque uma coisa é a história, e outra é a lembrança construída dessa história, como assevera Amado (1995).
Diante do embaraço, e tendo a consciência que eu não sou um Fernandes, personagem central do artigo de Amado (1995), tomei a decisão de colocar à disposição algumas lembranças, para diante dessa exposição selecionar, se não um acontecimento épico, mas um fato que ficou marcado na minha memória, proposta central da questão dissertativa.
O tempo da memória, escolhida, é o ano de 2012, e o espaço é a cidade de Itapuranga, localizada no Vale do São Patrício, distante 160 quilômetros da cidade de Goiânia. Nesse contexto eu me encontrava com 23 anos de idade, recém-formado no curso de História, ainda convicto que tinha condições de transformar o mundo em um local mais justo e igualitário. Hoje, esse ideal, se não está tão presente, porém não posso afirmar que esteja ausente, mas, infelizmente, se depara com algo árduo para os “utopistas”, a saber, a dura realidade.
No entanto, deixo minha utopia de jovem para outro momento. Voltando mais diretamente para o contexto da lembrança, quando nesse período eu me encontrava como alguém recém-aprovado em Processo Seletivo, esperando a convocação para iniciar as aulas como Professor de Brasil III na Universidade Estadual de Goiás, Câmpus Itapuranga.
Minha condição de trabalho não seria nada favorável, porque meu regime de trabalho era temporário, como brincávamos na época, tendo uma leve suspeita que a qualquer momento chegaria um decreto do governo do estado, me exonerando, antes mesmo de começar. No entanto, me lembro de que não pensava muito na questão da exoneração, só de vez em quando é que a ideia aparecia, principalmente perante a situação difícil que me encontrava financeiramente, jovem, casado, recentemente pai, e outras demandas inerentes que acometia eu, e minha esposa. (Se alguém, algum dia for fazer pesquisa dessa memória registrada, algo improvável, com certeza deterá sua atenção na pausa que fiz anteriormente, quando falava das dificuldades financeiras e, repentinamente, encerrei a questão).
Há um silêncio proposital, primeiro porque remete há tempos muitos difíceis no campo econômico, a denominada memória “afetiva”, e segundo porque se for enveredar pelas dificuldades financeiras às lembranças tomarão outro rumo. Deixando a memória afetiva para outra oportunidade, lembro-me da expectativa que eu estava para iniciar as aulas. O cenário não era estranho, porque o processo de graduação havia sido feito no Câmpus, e agora esperava, ansiosamente, o dia de pisar na sala, não mais, pelo menos, oficialmente, como aluno, mas como professor.
A empolgação era tamanha que ficava contando os dias. Acredito ser importante mencionar o motivo da ansiedade. Quando saiu o resultado do processo seletivo, final de março, esperando para iniciar como docente, havia alguns tramites burocráticos que eram necessários serem cumpridos. O mais significativo, e por isso angustiante, era o tempo de espera referente ao envio da documentação e aprovação junto aos órgãos competentes da Universidade.
Nesse contexto, o coordenador do curso de História me procurou para tranquilizar com relação ao tramite, e também me passou valiosos textos para ajudar à compreender melhor as principais vertentes historiográficas e “correntes teóricas” que marcavam, na época, e de acordo com a concepção do professor, às discussões que envolviam Brasil III. Entre os inúmeros textos fornecidos um me chamou atenção, principalmente pelo título, a saber, Estrangeiro em sua própria terra (1998), de autoria de Márcia Naxara.
Diante do trâmite burocrático, me recordo que esperava ansiosamente o dia para iniciar às aulas, ou melhor, o primeiro dia de aula. Minha angústia, nervosismo, expectativa, empolgação, era tamanha que, na época, resolvi concentrar esforços somente na primeira aula, me valendo daquela máxima que a primeira impressão é a que fica. Procurando causar uma boa impressão na turma, concentrei todos os meus esforços no livro da Naxara, no intuito de dominar todos os meandros e teses que o livro apresenta(va).
Passado alguns dias de espera, o secretário acadêmico me ligou e disse que os documentos que haviam sido envidados para Anápolis haviam sido aprovados, e que eu poderia me organizar para iniciar às aulas na próxima semana, mais precisamente na segunda-feira. O dia marcado para o início da primeira aula foi 16 de abril de 2012. O final de semana antecedente foi de releitura do livro da Naxara, procura de artigos que ajudavam a compreender questões que, naquele momento, não tinha condições de entender e, evidentemente, muito ensaio da aula em si.
Eis que surgiu o grande problema, presente, também, nos dias anteriores, mas de forma muito mais intensa na segunda-feira, dia da aula. Assim, na medida em que as horas se aproximavam, marcada para as 19 horas, os minutos de duração da aula ensaiada diminuíam consideravelmente. Lembro-me que esse fato me deixou muito preocupado, porque a minha intenção, como dito anteriormente, era deixar uma primeira impressão impecável na turma.
Depois do almoço procurei ensaiar minha aula mais uma, duas, três vezes, mas acabei desistindo na segunda tentativa, porque na primeira vez à discussão que havia preparado não durou 20 minutos e a repetição de (é, é, é, é, é) parecia interminável). A duração da aula era de três horas, porque era o primeiro e segundo horário, e eu, depois de ter lido o livro algumas vezes, ter lido alguns artigos relacionados com o tema inicial da aula, pensar o caipira nacional no início do século XX, depois de ensaios iniciais que ultrapassavam, tranquilamente, mais de uma hora de aula direta, só conseguia falar 20 minutos sobre o tema.
O desespero, a ansiedade, e sem ser contraditório, a vontade que o momento chegasse logo foi tomando conta, quando percebi que o meu cérebro já estava entrando em parafuso. Diante da ansiedade, no período vespertino, resolvi tirar um cochilo, para ver se a ansiedade diminuía. Por incrível que pareça o cochilo se tornou algumas horas de sono profundo. Quando acordei, faltava pouco menos de uma hora para iniciar a aula. Tomei um bom banho, arrumei as “coisas”, peguei a mochila, montei na bike e fui para a UEG. O meu nervosismo era tamanho que os colegas professores/as que vieram me felicitar, e desejar “boa sorte” com a aula, perceberam o nervosismo, e das inúmeras conversas que tivemos só consigo lembrar de: “calma, calma, calma”.
Pronto, não tinha mais jeito, o relógio era implacável, o ponteiro maior se aproximava do número 12, e o menor do número 7, agora não tinha como, era me direcionar para a sala e me deparar com a turma. Fui, literalmente, engolido pelos poucos metros que me separavam da sala dos/as professores/as à sala do, na época, quarto ano de História. Quando me situei, já estava na sala, dando boa noite para a turma.
Sinceramente, não lembro da apresentação inicial, até porque todos/as me conheciam e o meu currículo tinha somente um artigo que havia sido aceito por uma revista, mas sem previsão para ser publicado. Ou seja, naquele contexto, mais do que hoje, era melhor não falar de currículo. Diante do nervosismo eu poderia ter recorrido ao plano de ensino da disciplina, mas isso nem sequer passou pela cabeça. Acredito que fui apresentar o plano de ensino depois de um bom tempo, entenda meses, que já havia começado a ministrar as aulas.
Enquanto os discentes se organizavam, peguei o fichamento e passei rapidamente os olhos no que havia preparado, sempre lembrando dos 20 minutos, concomitante com o assunto inicial para iniciar a aula. Quando lancei o primeiro problema, não deu outra, logo alguns discentes/as já se colocaram a pensar algumas questões que o texto apresentava, fazendo perguntas, colocações, intervenções. Ah, esqueci de mencionar, nesse interim de espera para iniciar a atividade docente, eu havia deixado o texto da Naxara na xérox, o que fez com que a maioria da turma tivesse lido o texto e, com isso, propiciado à importante interação. No momento não consegui compreender muito a atitude da turma, porque esperava-os “testando” o professor, mas hoje, quase completando sete anos do acontecido, não tenho dúvida que a turma estava e sempre esteve disposta a me ajudar.
E, de fato, foi isso que aconteceu, os diálogos sobre o texto foram tão intensos que às três horas de duração da aula não foram suficientes para “esgotar” o texto em si, quando tivemos que recorrer mais um pedacinho da outra segunda para finalizarmos com as questões propostas. Quando cheguei em casa, lembro-me que conversei com a minha esposa sobre a experiência que tinha sido a primeira aula, da interação e disposição da turma e, diante da empolgação, provavelmente valorizei mais do que devia a minha capacidade de mediação. De forma sincera, naquela noite de 16 de abril de 2012 eu dormi como cidadão, se não o mais feliz do mundo, porém empatado com o primeiro lugar.
Referências
AMADO, Janaína. O Grande Mentiroso: Tradição, Veracidade e Imaginação em História Oral. Revista História, São Paulo, 14, p. 125-136. 1995.
BOSI, Éclea. Memória e Sociedade: lembranças dos velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Traduçaõ de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2003.
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Estrangeiro em sua própria terra: representações do brasileiro, 1870/1920. São Paulo: Annablume, 1998.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Tradução de Dora Rocha Flaksman. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol 2, nº 3, p. 3-15. 1989.
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