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Lembranças de minha infância



Acredito que as lembranças mais frescas em minha memória sejam da minha infância. São lembranças e memórias que por característica e essência apresentam elementos duais. Decorrem de vivencias cotidianas e de contextos específicos do momento em que meus pais ainda viviam sob o mesmo teto. Hoje, com vinte e cinco anos de idade, jamais pensei em realizar um exercício tão caro à minha memória, em que tenho que me esforçar para reconstruir momentos e fatos que estão cravados em meu inconsciente. Talvez até o fim deste relato, ou mesmo durante sua realização, haja interrupções e pausas espontâneas ou mesmo forçadas pelo fato de que quando se está “vasculhando” a memória, diversas são as possibilidades de sentimentos e emoções vivenciadas. Algo natural quando se lida com a memória.

Lembro-me que quando criança, ainda na pré-adolescência, gostava de jogar birosca ou bolinha de gude, para ser mais claro. Reuníamos logo pela manhã, na porta de casa ou na porta da casa de algum vizinho ou conhecido do Bairro. Ali jogávamos até a hora do almoço, com a “combina” de retornarmos após a refeição. Cada um de nós (geralmente quase sempre eu, meu irmão e nossos amigos e vizinhos) levávamos nossas bolinhas de gude tão preciosas em garrafas pet, aquelas de refrigerante. Interessante. Ali, naquele encontro para o jogo, existia uma perspectiva de status quo. Isto é, aquele que apresentava possuir a maior quantidade de bolinhas, logo, a mais robusta e suntuosa garrafa pet como o maior número de bolinhas de gude, era respeitado, temido e admirado pelos demais ali presentes. Deduzia-se que suas habilidades eram superiores, portanto, tidas com respeito e admiração pelos outros. Nesse sentido, já tive fases em que era respeitado e temido, outras, já nem tanto.


O sentido e a lógica do jogo estavam em conseguir ganhar do “adversário” as suas respectivas bolinhas de gude. As habilidades necessárias para o jogo em questão geralmente circunscreviam-se em: a) uma boa pontaria; b) uma boa estratégia (saber a hora certa de arriscar ou de “correr”); c) observar atentamente o terreno em que a “bolinha-alvo” ali estava; d) o tipo de bolinha utilizada para “matar” a outra (a tática era utilizar a maior bolinha). Em grande medida, cada jogada possuía suas estratégias, que variavam conforme o andamento do jogo.


Nada se comparava à sensação de acertar a bolinha do “adversário” e arrematá-la, exatamente naquele instante. Com toda convicção, tratava-se de uma profusão de sensações. Lembro-me que na grande maioria das vezes, jogávamos descalços, sentindo a terra (o chão, a poeira entre os dedos) que impregnava nos pés e os deixavam avermelhados por completo. Aliás, esse tipo de jogo só pode ser realizado de fato na terra bruta, de preferência, na terra “batida”.


Além da bolinha de gude, outra de minhas brincadeiras preferidas nos tempos de infância era, sem dúvida, o “jogo de bola” praticado na rua. Isso mesmo, bem no meio da rua (atualmente uma cena rara de se ver por aí). Via de regra formávamos times de oponentes com dois adversários de cada um dos lados. As traves dos gols eram improvisadas com nossos próprios chinelos, já consumidos pelo tempo e já encardidos de outras tantas épocas. A bola? O principal. Éramos premiados todo ano. No dia das crianças, a prefeitura doava bolas de futebol de um material muito leve, que naquele tempo denominávamos de “leite” (“bola de leite”). Tais bolas eram tão absurdamente cheias que necessitávamos murcha-las para podermos jogar razoavelmente bem. Como seu material era frágil, furavam ou rasgavam com frequência. Para nossa sorte, sempre tínhamos mais de uma delas guardada.


Como não me lembrar das quedas no asfalto, provenientes do contato físico natural do jogo. As quedas, deixavam suas marcas: nos joelhos, cotovelos, braços, pernas e assim por diante. Quantas vezes fui repreendido por um “eu avisei” de minha mãe por ter arrancado a “cabeça” do dedo no asfalto. Com certeza não foram poucas vezes. E com certeza recordo-me com “alegria” do mertiolate que ardia pavorosamente quanto entrava em contato com o machucado. Por incontáveis vezes a bola de “leite” resolvia extrapolar os limites que imaginávamos e ir de encontro com o telhado ou a janela dos vizinhos. Estes, por sua vez, a devolviam sempre que possível. A rua que fazíamos de campo não era muito movimentada. Quando surgia um veículo, parávamos a partida e aguardávamos a passagem do mesmo e recomeçávamos.


Um dia, soube que construiriam uma quadra no meu bairro. Construíram. Era de “cimento” liso, “queimado”. Possuía uma mureta de um metro de comprimento, e um alambrado de tela. Foi algo inovador. Passamos a jogar na “quadrinha”. Acordávamos cedo com inúmeras expectativas criadas, com o objetivo as vezes de jogarmos “valendo” uma Coca. Quantas vezes ali se reunia a molecada. O número era grande. Havia possibilidade pela quantidade de times ali formados de estendermos as partidas ao dia inteiro. Para diferenciar, um time jogava com “camisa” e o outro sem. Naquele momento, exercia-se a criatividade do drible, que as vezes resultava em uma grande euforia coletiva. Uns se destacavam. Estes, por sua vez, eram disputados na hora de “formar” as equipes. Haviam discordâncias. Uns achavam que determinado time tenha se fortalecido por selecionar os melhores. As apostas eram lançadas. Nem sempre os considerados superiores tecnicamente, venciam.


Enfim, ali, naquele lugar, pude vivenciar momentos inesquecíveis. Talvez porque me recordo das brincadeiras, como ficou nítido. No entanto, seja necessário confessar que se tratava dos vínculos com o ‘lugar’. A ideia de pertencimento ainda é latente quando a exemplo visito o antigo bairro, hoje na memória. Ali também vivenciei momentos difíceis, conturbados do ponto de vista familiar. Talvez aqui eu não consiga estender o relato. Creio que todos percebam a interrupção e o silêncio como respostas evidentes e claras. Daí se explica o que no início afirmei ser um relato dual.


Dentre incontáveis momentos, aqueles que seguramente estão vivos na memória possam ser entendidos como formativos do indivíduo, mas também de seu grupo social. Todos estes e tantos outros momentos que não conseguiria narrar aqui, poderiam compor o quadro de minha memória individual, também resultado de uma coletividade. São as relações sociais que moldam nossas vivências, experiências e memórias. Sem a dimensão relacional, a memória não existiria como recomposição de representações vivenciadas ao longo do tempo por homens e mulheres.

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