Merlí é um seriado de produção catalã (Espanha) de origem da empresa Netflix, atuante no ramo de streaming. A série teve seu lançamento no ano de 2015 e é uma criação de Héctor Lozano, escritor espanhol de reconhecimento nacional e internacional. O texto não intenta por ser uma crítica especializada, uma análise do campo cinematográfico. Pretendemos destacar algumas percepções sobre o mencionado seriado na ótica tão somente pessoal, enfatizando aspectos que podem ser assimilados e elevados ao patamar da reflexão e da análise em nosso cotidiano. Acredita-se que o seriado proporciona a quebra de certos paradigmas sociais, pedagógicos, filosóficos e contemporâneos. Além disso, alude ao conhecimento filosófico como sendo capaz de cativar o senso crítico e a liberdade de pensamento e ações do sujeito.
O ponto de destaque do seriado é Merlí Bergeron (Francesc Orella), um professor de filosofia do Ensino Médio do Instituto de Ensino Angél Guimera, o qual se desenvolve maior parte da trama da série. Merlí, longe de ser um professor daqueles convencionais, ortodoxos e conservadores, é de personalidade forte, egocêntrica e irônica. As suas marcas pessoais são o essencial de todas as três temporadas, sendo, o que de fato, eleva a série a não perder sua imprevisibilidade. Em grande medida, a personalidade de Merlí é fruto de sua experiência e formação em filosofia. Por vezes, Merlí parece ser a personificação da própria forma de ser da filosofia, ou seja, sem amarras, questionadora, crítica e irônica quase sempre.
Um dos aspectos que chamam a atenção no seriado é, sem sombra de dúvidas, o conflito entre a ortodoxia do Instituto Angél Guimera e a perspectiva metodológica libertária e, porque não dizer, revolucionária de Merlí. Sua maneira de lecionar e se relacionar com seus alunos, pais de alunos e colegas professores, por vezes invoca certos questionamentos e reflexões. Até que ponto um professor pode ou não intervir, interferir na vida pessoal, se envolver a fundo e a finco nas relações emotivas e afetivas de seus alunos? Isto é positivo ou negativo? Quais são os limites? O que fica claro, ao menos de nossa parte, é que o envolvimento de Merlí na vida pessoal e particular dos sujeitos da trama, ou seja, seus alunos, pais de alunos e colegas professores, faz parte da dramatização necessária a qualquer produção cinematográfica, se distanciando, talvez, um pouco, da realidade das interações entre os profissionais das escolas e instituições de ensino e seus alunos.
Ao longo de sua trajetória no Instituto de Ensino, Merlí se depara com pedagogias e estruturas curriculares arcaicas, conservadoras, além de métodos nada democráticos. No decurso de toda série, observam-se conflitos entre o professor de filosofia, querendo implementar o que acha necessário, de acordo com suas próprias convicções e o sistema de ensino. Talvez, a maior “revolução” que Merlí proporciona no Instituto, seja na maneira pouco ou quase nada ortodoxa de ensinar e conduzir as aulas. Em primeiro, porque o professor simplesmente não segue à risca a ementa da disciplina que leciona estruturada pelo Instituto, por acreditar que seja linear demais, e muito pouco produtiva, no sentido do pensamento crítico. Em segundo, as aulas de Merlí são sempre envolventes, partindo-se de reflexões pontuais, de determinados pensadores e filósofos, com questionamentos sociais, políticos e econômicos. É o levar à crítica e análise por conta própria que interessa em Merlí. O que lhe mais importa é que seus alunos questionem tudo, que pensem por si mesmos. Em alguns episódios, ficavam no ar perguntas feitas pelo professor, que deixavam os alunos inquietos em tentar procurar a possível resposta, elemento este visivelmente essência da filosofia.
Sobre este tema de ortodoxias pedagógicas, o seriado é, por si mesmo, uma crítica contundente e inteligente aos paradigmas que ainda resistem no ensino público e privado, de diversas instituições, a respeito de métodos e metodologias do processo de ensino-aprendizagem. A literatura é farta e adverte, quase sempre, a necessidade, de nós, professores, nos reinventarmos cotidianamente. O que Merlí Bergeron faz e nos propicia é inquietante, ao mesmo tempo, pois nos indaga qual ou quais são nossas metodologias de ensino, nossos meios de potencializar o pensamento crítico e analítico em nossos alunos, se estamos ou não no caminho certo. Isto é, independentemente da disciplina ou da matéria.
Um bom exemplo da ação reveladora e insurgente de Merlí, são suas aulas para além da sala de aula. Ele debate filosofia com seus alunos pelos espaços dos corredores do Instituto, pela cozinha, no pátio. Utiliza exemplos do cotidiano para ilustrar que a filosofia não é tão somente reflexão, pura e abstrata. Mostra, ademais, que a filosofia não é um saber oriundo de conhecimentos parcelares, mas, sim, uma ferramenta muito potente de compreensão e entendimento do mundo, dos homens e da sociedade. Tal afirmação pode ser verificada nas entrelinhas do enredo do seriado, o que nos chama maior atenção ainda. A cada episódio, a trama se entrecruza com as reflexões filosóficas tematizadas, sempre voltadas para um determinado pensador e filósofo. É como se Merlí já soubesse antecipadamente das ânsias e angustias de seus alunos, de seus questionamentos pessoais.
Em outro ponto, Merlí é uma crítica tenaz a determinados paradigmas sociais. Aos padrões vigentes da beleza, do machismo, da ideia de deus, entre outros, Merlí provoca, por meio da filosofia, todos eles. Assim, pouco a pouco, seus alunos vão sendo “perturbados” pelas inquietações e comportamentos de Merlí. As reações, como não poderiam deixar de ser, foram, no início, de estranhamento. Ao longo dos episódios e das três temporadas, a concepção e visão de mundo de seus alunos e outros que o cercam, vão se modificando. Talvez um dos exemplos mais dignos de nota, seja o de Bruno Bergeron (personagem de David Solans), o próprio filho de Merlí. Homossexual, Bruno nunca tinha tido coragem para se auto-afirmar. Isto ocorre com a chegada do pai ao Instituto, o qual, não sem conflitos pessoais, assume ser o que realmente é. Este fato, para a série, foi um importante espaço de abertura para reflexões a respeito da diversidade de pensamentos, desejos, anseios, modos de vida e concepção de mundo que permeiam nossas instituições e escolas. A escola nada mais é do que o reflexo da sociedade. Nela estão e se encontram ainda os paradigmas dominantes, eles se reproduzem no aparelho de ensino escolar. Merlí é um dos que questiona tal estrutura. Porque devemos seguir o que os outros dizem, pensam, vestem, sentem, comam...Porque não sermos nós mesmos, como realmente queremos e desejamos?
Eis o norte essencial de Merlí: devemos ser, nós mesmos, donos de nossas vidas e convicções. Questionadores da realidade dada. Críticos e seres pensantes que promovam a dúvida constantemente. Por essas e outras razões, que por falta de maior sensibilidade ou mero esquecimento, o seriado Merlí é uma ótima opção de aprendizado sobre a vida e os modos como nos relacionamos com o mundo e as pessoas. Não se trata apenas de filosofia, mas, sim, de pormo-nos em contato com a reflexão, com a crítica social tão necessária em tempos como estes. A recomendação fica para aqueles que lerem este texto. Merlí vale a pena. Sejamos peripatéticos.
Boa semana para todos e todas!
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