Há certas práticas prejudiciais que ocorrem cotidianamente a ponto de se tornam invisíveis aos olhos desatentos, reforçadas por gerações através de incessantes repetições adquirem o caráter de normalidade, e com o apoio de instituições fundamentais a reprodução da consciência popular, família, religião, grupos sociais, consolidam a formação da aceitação coletiva ganhando um aspecto cultural.
Em maio de 2016 (21/05/2016) foi levantada a questão da chamada “cultura do estupro”, debate despertado após o terrível estupro coletivo a uma jovem de 16 anos, praticado por nada mais nada menos que 33 homens, e infelizmente tragédias semelhantes continuam a se repetir em nosso país. Como quase tudo nesse país tem ganhado um caráter de polarização, por incrível que pareça ainda existem pessoas que culpabilizam as vítimas. Se diante de uma situação tão degradante como o estupro ainda existem pessoas que relativizam a violência como uma consequência das ações da vítima é porque há uma aceitação da prática justificada por um machismo intrínseco de nossa sociedade que atribui normalidade a prática. Diante de uma condescendência de nossa sociedade hipócrita que contribui para a continuidade e “normalidade” deste absurdo se faz necessário tecer algumas considerações.
Em primeiro lugar, quando uma normalidade é questionada as falácias conservadoras afloram em defesa do que está conveniente a determinados grupos. Se o estupro fosse algo tão anormal em nossa sociedade, certamente não encontraria defensores quando ocorresse, nem se cogitaria de maneira nenhuma a possibilidade da vítima ter alguma culpa pelo ato. Se isso acontece é por que de alguma forma determinado grupo da sociedade considera isso como uma prática aceitável e até recomendável em determinados casos como quando essas pessoas defendem a absurda ideia de que a homossexualidade feminina e o feminismo é “falta de homem”, ou quando país reproduzem a absurda ideia de que mães de meninas devem segurar suas filhas por que os seus filhos estão “soltos” por ai. Por aqui se constrói a deturpada cultura de que é a mulher que deve evitar ser estuprada, e não que o homem não pode estuprar.
Sendo assim se ainda hoje esta prática repulsiva continua sendo realizada é uma consequência de séculos de uma consolidada cultura patriarcal, machista, misógina e sexista, que por muito tempo tem colocado a mulher em um estado de inferioridade em relação ao homem, e que ainda hoje atribuí uma objetificação a mulher e do seu corpo como prêmio, o que hoje só não é pior graças a inúmeras lutas de mulheres por seus direitos civis e por respeito.
O ato do estupro é topo de um Iceberg, e a base se constrói em pequenos detalhes que se iniciam nas casas de pessoas normais, de bem e que jamais ensinariam isso aos seus filhos, mas ensinam que há coisas que meninos podem e que meninas não podem, instituindo privilégios, como a distinção de idade para começar a sair, ou namorar. Mais tarde na adolescência a sociedade cobra do jovem menino a postura de “pegador” como se o ato de ter relações sexuais com o máximo de mulheres possível fosse um atestado de masculinidade, enquanto da moça se pede recato virgindade e prudência com o que usa e onde vai. Ora, aí está configurado o safári, o conflito de uma construção social que produz o caçador e a caça. E que em algum momento para o caçador com a constante necessidade de provar sua virilidade deixará de ser relevante o consentimento da caça.
A normalidade faz com que pequenas violações de espaço e do corpo, se tornem corriqueiros, assim passa a fazer parte do dia-a-dia da mulher conviver com cantadas inconvenientes em todo tipo de ambiente, assovios, esfregões propositais em ônibus e metrôs, bebidas sorrateiramente adulteradas, assédios morais em ambientes de trabalho, violência doméstica (psicológica e física), piadinhas machistas, e difamações. Tudo isso acontece com a mais completa aceitação ou omissão popular.
A TV, a grande formadora de opinião de uma país de educação precária, cumpre seu papel em construir a objetificação da mulher, quando usa como estratégia a exposição de uma mulher quase nua para se vender cervejas, ou qualquer outro produto, quando quase em via de regra utiliza dançarinas novamente seminuas servindo de fundo para programas de entretenimento, onde os programas de fofoca dedicam grande parte de seu tempo em conseguir flagras de partes intimas de famosas, enquanto as revistas ou estão mostrando a nudez de corpos femininos que atendem ao padrão de beleza de nosso tempo ou estão ensinando as mulheres a bordar, se maquiar, cuidar da casa e do marido, se anulando intelectualmente, sendo uma perfeita bela, recatada e do lar, mas tudo isso passa desapercebido no inebriante véu da normalidade cotidiana dos brasileiros.
Até mesmo a ideia de justiça passa pela aceitação deturpada do estupro, quando os cidadãos revoltados se alegram em saber que o criminoso preso será estuprado na prisão como punição, o discurso de ódio proferido é ainda pior quando reproduzem os dizeres “Esse ai vai se tornar a mulherzinha na prisão”, frase que consciente ou inconscientemente aceita a ideia de que é permitido estuprar a mulher.
Bom se ainda depois de tudo isso ainda resta dúvida sobre o caráter cultural do estupro e ainda se atribuem a prática a uma doença ou patologia, então talvez essa doença seja um caso grave de contágio, ao ponto de atingir 33 homens de uma só vez em um mesmo ambiente, realizando uma das práticas mais desprezíveis da humanidade e ainda filmando como se fosse uma festa. Será mesmo que naquele lugar não tinha ninguém são para impedir tal atrocidade.
Por fim romper com um traço cultural tão prejudicial é algo que demanda enfrentamento, pois muitos se beneficiam da situação tal como ela está. Nesse choque se encontram de um lado os que comungam com a normalidade da prática do estupro e promovem a culpabilização da vítima, veem como saída apenas a punição após o ato praticado (coisa que não funciona muito bem em um país de tanta impunidade). De outro lado estão aqueles que apoiam a luta feminista por uma dignidade da mulher e que lutam para que através da educação se construa uma consciência pautada no respeito e na dignidade humana. Prevenir é sempre melhor que remediar, não fico do lado dessa turma que defende a violência de punições severas, acredito que a melhor alternativa é e sempre será a educação como o meio mais eficiente de se conseguir uma verdadeira mudança nesta nossa triste realidade, desconstruindo a violência do machismo e construindo uma nova cultura de respeito dignidade e igualdade.
Boa semana amigos!
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