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Negacionismo e ataque às universidades: reflexo do ódio da classe média



Muitas pessoas olham para o Brasil, independentemente de nacionalidade, procurando compreender o que está acontecendo com o “povo brasileiro”. Em muitas ocasiões a tentativa de entendimento têm levado pessoas a terem inúmeros problemas de saúde, com destaque para princípios de depressão. Está distante de ser exceção se deparar com relatos de indivíduos afirmando que estão enfrentando problemas para se alimentar, concentrar, angústia, perda de sono, revolta e tantos outros sintomas que possuem uma única causa, a saber, o ressentimento bruto do país.


A escritora e colunista Eline Brum, do jornal El País, entende que estamos doentes de Brasil, ou seja, estamos doentes de tudo que nos cerca, principalmente quando voltamos à atenção para a esfera pública e observamos os gestos, as falas, as ações e o modelo de governo do representante máximo da política brasileira que possui, em suas mãos, uma Caneta Bic que parece que nunca acaba a tinta, tamanho a retirada de direitos e precarização da vida intensificada por um presidente que governa na contramão dos interesses da população mais pobre. No entanto, Bolsonaro é representante de um fenômeno social que pode ser entendido, nesse momento, como fenômeno do embrutecimento.


O embrutecimento é sinônimo de patologia, mas os que estão contaminados por essa doença aprenderam a conviver com ela porque a trazem de longa data, naturalizando-a em seu cotidiano. Poderíamos enveredar por uma série de exemplos de embrutecimento social, mas gostaria de destacar um em especial, a saber, o fenômeno do negacionismo que assola os saberes produzidos pela Universidade.


A negação de fatos históricos como, por exemplo, a comumente negação da existência da Ditadura Militar se apresenta como reflexo de uma sociedade que já estava doente há muito tempo, entretanto, nós estávamos com dificuldade para perceber a doença coletiva, ou melhor, talvez não desejássemos reconhecer, mas, ao vê-la desnudar orgulhosamente em nossa frente, nós também estamos adoecendo.


Por exemplo, negar fatos históricos atestados pela experiência, relatos de sobreviventes do período da Ditadura e que, também, são assegurados pelo conhecimento científico, vasta produção acadêmica e audiovisual sobre o período, somente reflete o nível de patologia que nos encontramos. É importante ressaltar que a negação dos fatos históricos não tem nenhuma relação com o necessário revisionismo da história. O revisionismo é uma perspectiva de análise que procura apresentar novas teses diante das teses já consagradas pela historiografia, fazendo com que às verdades dentro da história sejam, sempre, percebidas por meio da pluralidade, mantendo uma vivacidade do conhecimento histórico e, consequentemente, assegurando a sua importância junto à sociedade.


Totalmente oposto ao revisionismo é o negacionismo. Mas qual a relação do negacionismo com a nossa realidade? Vejamos, o negacionismo é um movimento antiacadêmico que não procura revisar as teses levantadas pela academia, não apresenta novos dados, novos documentos históricos, tampouco levanta hipóteses coerentes que levam ao debate e que poderiam ser colocadas em comparação com as teses já existentes, contribuindo para a circulação de saberes. Nada disso, o negacionismo parte de uma negação que vai muito além do saber produzido pela academia, configurando-se como uma recusa da própria academia em si, se apegando ao achismo e as meras opiniões sem fundamento.


Quando a simples negação é colocada em um patamar de análise crítica, os negacionistas procuram se defender afirmando que é necessário respeitar a opinião. De fato, é isso que o negacionismo é, ou seja, não passa de mera opinião, que não possui nenhuma relevância histórica, que não pode ser atestado no sentido das verdades científicas. Diante da pouca, para não dizer nenhuma relevância, os negacionistas se voltam contra a academia porque acreditam que atacando quem nunca lhe concedeu importância, justamente por não terem importância, conseguem alcançar o que tanto desejam, a saber, prestígio e reconhecimento intelectual.


É evidente que prestígio intelectual dificilmente poderão ter, porque é incompatível com a intelectualidade reconhecer o valor da ignorância. Diante da recusa acadêmica, os negacionistas se voltam com muita atenção para uma parcela da sociedade que, infelizmente, não teve oportunidade de passar pelo processo de formação acadêmica, ou passaram e não tiveram nenhuma relevância social e científica, foram estudantes ou são professores/as medíocres no sentido mais literal da palavra. Por meio da mediocridade se juntaram para angariar forças em defesa do culto da ignorância e do preconceito social.


Além disso, a mediocridade que fazem questão de demonstrar esconde, também, um preconceito social acumulado e direcionado àqueles/as que passaram a ocupar, nos últimos anos, um espaço na sociedade que lhes pertence de direito. É inegável que as políticas públicas que foram implementadas durante os anos que o Partido dos Trabalhadores esteve à frente da política nacional modificaram drasticamente a cara da Universidade.


A Universidade, que no início dos anos 2000 era majoritariamente branca, frequentada por alunos da classe média alta e da elite dominante, passou a ser ocupada e conviver, em decorrência das reivindicações sociais que estão representadas pelas políticas públicas, destacando o sistema de cotas, com a pluralidade étnica e cultural que pode ser evidenciada pela presença da população pobre, negra, periférica, indígena, feminina, pertencente à comunidade LGBTQ+, que passaram a sentar do lado dos privilegiados historicamente. Ao perceberem que os privilégios estavam sendo enfrentados, parte da classe média e da elite passou a se sentir ameaçada diante da transformação que estava ocorrendo, principalmente quando entenderam que o saber da vida pobre e sofrida, o saber originário da resistência, se amalgamou com o saber acadêmico.


Essa junção de conhecimentos, talvez esteja distante de ser o que Boaventura de Sousa Santos entende por ecologia de saberes, passou a fazer a diferença na sociedade brasileira. Quando uma senhora branca perguntou para Luana Tolentino, jovem negra, se ela fazia faxina e ela disse que fazia mestrado, a resposta foi demais para parte da classe média e representantes da elite dominante. A pergunta escancara o racismo estrutural e a resposta evidencia a ascensão da população negra. Porém, a resposta de afirmação ascendeu o sinal de alerta nos historicamente privilegiados, se organizando para derrubar o que provavelmente foi a mais significativa transformação feita pelos governos petistas, reiterando, oferecer oportunidades para que uma população sedenta por mudança modificasse a cara da universidade.


Nesse sentido, não pode ser entendido como fortuito o fato de que os ataques às universidades começaram a aparecer nos últimos anos, principalmente quando a classe média e a elite percebeu, de fato, que novos atores sociais estavam ingressando no denominado ensino superior. Percebam que antes do banco da universidade ser ocupado pela filha da empregada doméstica, pelo filho do pedreiro, pelo próprio pedreiro, pelo indígena, pelo quilombola, pelo gay, ou pela lésbica, não existiam leituras que denegriam as universidades e tampouco havia ataques sistemáticos aos professores/as dessas instituições, assim como o saber acadêmico era dificilmente questionado.


A universidade pública, no sentido pedagógico, dos anos 2000 não é muito diferente da universidade de 2019, às professoras e os professores que trabalham nessas instituições também não mudaram muito, mas os estudantes, esses sim, são muito diferentes. É justamente essa mudança no público que a universidade passou a atender que instigou a revolta de setores da classe média e da elite dominante, porque esses setores cresceram cultivando o ódio e tornando invisível a maioria da população brasileira.


No momento que o “invisível” sentou do lado daquele que fingia não vê-lo, a repulsa foi enorme porque agora não teria mais sentido as faixas pregadas nos prédios dizendo que o filho havia passado em medicina e que a filha seria médica veterinária. Passou a não ter mais sentido esfregar o privilégio social na cara da população pobre, porque a filha da empregada doméstica conseguiu uma vaga em engenharia em alguma instituição federal. Enfim, há um sentido simbólico no campo do poder que foi sendo esvaziado. Diante desse vazio, de não ter mais o gozo de esfregar a maldita faixa na nossa cara, não restou outro caminho a não ser denegrir o espaço que um dia já foi unicamente seu.


Os ataques às universidades trazem consigo a característica de uma sociedade que está doente, ou melhor, provavelmente sempre estivera. Doente de racismo estrutural, de misoginia, doente de homofobia, e contaminada pelo ódio aos pobres. Diante de uma sociedade conservadora e, sem ser reducionista, doente de conservadorismo, uma mínima mudança já se torna uma grande ameaça.


O ódio destinado às universidades públicas e gratuitas é o desejo insano de ter, novamente, exclusividade para pendurar orgulhosamente a faixa.

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