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NOTAS DE LEITURA


Prezados (as) colegas, amigos (as) e companheiros (as).


É um enorme prazer poder estar retornando ao grupo de estudos coordenado pelo professor e amigo Lucas Pires Ribeiro. Nos tempos áureos da graduação, participava com grande entusiasmo das leituras e debates promovidos pelo grupo e tive a oportunidade de apreender e trocar experiências com todos e todas ali inseridos. Por razões de cunho profissional, tive que adiar a sequência dos nossos encontros, leituras e debates. Retorno agora com o sentimento de gratidão pelo conhecimento adquirido, pelos textos lidos, pelas amizades e trocas de experiências construídas ao longo desse período. O meu maior desejo era poder estar com vocês neste dia, para debatermos e comentarmos o texto que fora selecionado para este momento de reflexão. Entretanto, no momento em que vocês se encontram, estou em sala de aula, cumprindo com o compromisso profissional. Vou à sala de aula com medo, medo não só do vírus, mas do negacionismo, do preconceito, do ódio, da necropolítica. Infelizmente esta é a realidade nua e crua da classe trabalhadora brasileira, que sem poder escolher entre trabalhar para comer ou ficar em casa para se proteger do vírus, fica exposta à morte e à fome. Evidentemente, não há como escapar dessa tragédia.


A leitura do texto A Cruel Pedagogia do Vírus, do professor Boaventura de Sousa Santos, me trouxe algumas humildes reflexões que gostaria de compartilhar com vocês. Em primeiro lugar, o fato de que a disseminação do vírus pandêmico decorreu, não de uma variável natural ou espontânea, como muitos afirmam. Mas, principalmente, pelo via do capital e do neoliberalismo. Inicialmente, o maior vetor de propagação do vírus foi o avião. Explico: as constantes viagens de executivos, empresários, investidores, políticos, agentes do mercado financeiro e magnatas, acabou contribuíndo para a difusão do coronavírus, na medida em que as transições e os fluxos dessa elite endinheirada e, também, de parte da classe média alta, resultaram, em diferentes proporções, na atomização da propagação do vírus. Se formos analisar, no início do ano de 2020, os primeiros picos de contaminação do coronavírus ocorreram nos grandes centros urbanos, nas grandes capitais e nos centros do capital mundial. Somente mais tarde é que o vírus atingiu as regiões metropolitanas e o interior. Acredito que está possa ser uma primeira reflexão.


Em um segundo momento, pudemos ter a clarevidência de que a mais dramática e trágica “pedagogia” do vírus encontra-se no fato de que ele teve um destinatário específico: os pobres. E essa reflexão encontra eco na convicção de que a pandemia escancarou as desigualdades sociais, aumentou ainda mais a concentração de renda, ampliou a miséria social, disseminou a pobreza extrema, reforçou o racismo estrutural, e potencializou o autoritarismo, a intolerância religiosa, os preconceitos, o ódio e a violência. Essa é uma segunda reflexão.


Como bem observou o professor Boaventura, os grupos que mais sofreram (e ainda sofrem) com as mazelas e as desigualdades provocadas pela pandemia são aqueles que ele denomina do “Sul”. São os idosos, as mulheres, os negros, os pobres, os trabalhadores informais, os moradores de rua, entre tantos outros. Estes foram lançados à própria sorte, expostos ao vírus e à morte. Foram (e continuam sendo) aqueles e aquelas que mais se infectam. São aqueles e aquelas que mais morrem pelo vírus. Em tais circunstâncias, não me parece justo ter que escolher entre trabalhar para comer ou ficar em casa e se proteger do vírus. É como escolher como morrer.


Tenho dito para pessoas próximas que o verdadeiro vírus não é o agente patológico em si, mas o negacionismo, a necropolítica, a fome, o racismo estrutural, as desigualdades, o ódio, a intolerância e a violência. Nossos problemas, que são problemas históricos, sociais, políticos, econômicos, tiveram alvo certo: o povo pobre e trabalhador deste país. Todos estes problemas, que já existiam, foram atomizados pela pandemia. Mostrou a todos nós que os ricos ficaram mais ricos, e os pobres mais pobres, quando vivos.


Em uma pandemia, não ter renda mínima básica para os pobres poderem comprar comida e ter o mínimo de higiene é o mesmo que empurra-los do precipício. E não estou falando aqui de míseros 250 ou 400 reais. Não vejo conveniência e sensatez dizer para um pobre ficar em casa e cuidar da higiene quando a maioria não tem sequer sabão ou acesso a água para a higienização básica. O que estamos presenciando é nada menos que um genocídio deliberado. Outra “trágica transparência do vírus” (parafraseando nosso autor) seja a perda de legitimidade do científico. E isso tem-se dado não apenas por questões político-ideológicas referendadas pela a ascensão de uma ultradireita ignorante e negacionista. Isso tem chegado à ponta. Tem chegado no bar da esquina, na pelada do final de semana, nas “resenhas” de amigos, no almoço ou churrasco de domingo. E o mais grave, tem chegado em espaços onde deveria ser refutado, desconstruído, posto à margem do conhecimento e do saber científico. Vou dar um exemplo claro: neste retorno para a sala de aula, tenho percebido um número muito grande de alunos que me perguntam coisas do tipo: “professor, a Terra é plana mesmo?” “Professor, a vacina da covid altera o DNA?” “Professor, o homem foi mesmo ao espaço?” Veja a que ponto chegamos. Como professor, ter que explicar o óbvio para meus alunos é o mesmo que navegar em um rio mil vezes. Hoje, em sala de aula, enfrento um adversário muito poderoso: as fake news. Elas produzem e disseminam informações falsas, deturpando o conhecimento teórico, colocando em descrétido a ciência e promovendo a ignorância generaizada. Temos muito trabalho.


Não se trata de uma questão de dúvida de conteúdo ou de um assunto específico. São questões já postas historicamente e de notório saber coletivo. O que vejo de grave é que tais questionamentos dúbios partem de uma concepção de que o científico não mais importa, o que tem levado muitas pessoas a desacreditarem, por exemplo, de vacinas, de tratamentos médicos, dos próprios médicos, etc. Pesquisas recentes tem mostrado que muitas pessoas deixaram de se vacinar contra doenças que já haviam sido erradicadas, em virtude da vacinação em massa, como é o caso do sarampo, por exemplo. E não fica apenas na desconfiança e na radical decisão de não tomar vacina. Isso chega a atingir em cheio professores, pesquisadores e cientistas. Tenho dito que, apesar de todos os percalços, a responsabilidade que tenho como professor aumentou ainda mais. Isso porque tenho a missão de lutar contra essa ode de ignorância deliberada, fruto de um ataque à ciência, ao conhecimento crítico, às universidades públicas, aos cientistas, etc.


Os tempos são difíceis. Mas exigem de nós coragem e esforço para resistirmos a isso tudo. Não basta derrotarmos o vírus, é preciso derrotar o capitalismo e o neoliberalismo. Buscar uma outra sociedade possível.


Obrigado a todos e todas!

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