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Notas gerais sobre alguns contos da lieratura brasileira


Este texto é fruto das leituras e discussões de um grupo de estudos que se estruturou a partir de conversas informais entre amigos. Inicialmente começamos a conversar por meio de um grupo de aplicativo de mensagens. Logo, decidimos sistematizar o que discutíamos sobre textos diversos, livros e autores por meio de encontros que são marcados esporadicamente. A cada encontro, debatemos e expomos nossos pontos de vista sobre algum texto previamente definido para leitura. O grupo é basicamente constituído por estudantes e acadêmicos universitários. A motivação para a formatação do grupo ocorreu em virtude de haver uma forte anuência entre os assuntos acordados nas conversas que realizamos.


Para fins deste texto, realizamos a leitura e o exame de algumas obras de autores de alto renome da literatura brasileira. Em primeiro lugar, discorreremos sobre o conto Negrinha (1920), do escritor paulistano Monteiro Lobato. Em seguida, discutiremos os contos A Cartomante (1884), O Caso da Vara (1891) e Missa do Galo (1899), de autoria do escritor carioca Machado de Assis. Por último, debateremos o conto A Terceira Margem do Rio (1962), do escritor mineiro João Guimarães Rosa. Vale ressaltar que as análises aqui expostas foram construídas a partir das leituras que cada componente do grupo pôde assimilar, sendo suas impressões e perspectivas aqui expostas em conjunto. Sendo assim, não nos detivemos em buscar construir um referencial crítico literário como suporte dos comentários alocados no texto. Tão somente procuramos expor, de modo claro, objetivo e direto, nossas primeiras impressões apresentadas nos encontros do grupo.


Publicado em 1920, o conto Negrinha descreve a história de uma menina mulata de sete anos de idade que vivia jogada aos cantos de uma enorme Casa Grande. Filha de uma escrava, possivelmente uma concubina, seu destino logo lhe causara grandes sofrimentos com a morte precoce do único amparo que tinha, a mãe. Agora, vivia sob a sombra e os “cocres” de D. Inácia, uma viúva autoritária. A menina mulata vivia às agruras que sua condição de órfã e escrava lhe imputavam. De saúde precária, malvestida, mal alimentada, sozinha e desconfiada, circulava pela casa de acordo silenciosa para não incomodar D. Inácia. Esta, por sua vez, não podia ouvir um espirro da menina que já lhe aplicava um castigo como que de um carrasco. Aliás, parecia à D. Inácia um prazer quase luxuriante aporrinhar de todos os modos a pobre menina, que nada podia fazer a contento.


A narrativa segue expondo as imputações violentas e autoritárias de D. Inácia e o sofrimento torturante de negrinha. Ao se deparar com as sobrinhas da velha Inácia que se achegaram muito recentemente, a menina se encanta, desconfiada, com a formosura daquelas meninas brancas, e também, com seus brinquedos de branco. Negrinha se extasia com uma boneca de uma das sobrinhas, que logo se vê a brincar com ela. Por fim, a pobre órfã se vê adoentada, acometida de bubônica. Morre rapidamente. Na lembrança das sobrinhas, apenas uma peculiar negrinha que se encantara tão inocentemente com uma simples boneca. Nas memórias da grande e devotada D. Inácia, uma negrinha tão boa para um “cocre”.


Como se percebe, resumidamente, o contexto ao qual o conto nos remete aduz ao processo de adaptação da elite rural à abolição da escravidão em 1888. D. Inácia, uma viúva proprietária de uma Casa Grande e de um engenho, vez ou outra se vê ressentida por ter que conviver com negros libertos que antes eram seus cativos. Vê, no acolhimento de negrinha, uma boa obra de “caridade”, algo que de uma boa devota católica. Além do mais, o conto é permeado de elementos que evidenciam as características e peculiaridades de uma sociedade patriarcal, rural, ainda escravocrata (apesar do fim da escravidão) e, acima de tudo, patrimonialista. Ademais, o conto possibilita uma abordagem reflexiva, no tocante à formação da sociedade brasileira, revelando traços sociológicos e antropológicos do cotidiano social daquele período (ex. a questão da miscigenação, sendo que negrinha, era mestiça, que pode ser associada à questão da prática do concubinato, entre outros).


Na leitura e análise conjunta do conto, notamos muita semelhança, principalmente no que concerne a elementos que evidenciam as relações sociais entre senhores e escravos, por meio de um viés antropológico e sociológico, com a esplêndida obra de Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala (1933). Essa obra se tornou um clássico da, não só historiografia brasileira, mas também da sociologia e da antropologia, pois perscruta sobre traços da nossa formação social, cultural, linguística, musical, artística, etc. A obra de Freyre, enfatiza as relações entre senhores e escravos em uma perspectiva mais branda, amena e lasciva. Isto é, longe das interpretações e análises sobre a questão escravocrata que quase sempre tendem para o determinismo econômico e da violência sempre praticada na relação senhor e escravo, Gilberto Freyre busca desmistificar o engessamento dessas interpretações, confluindo para questões do cotidiano, das relações íntimas, das práticas sexuais, das formas e expressões da linguagem, entre outros.


No nosso entendimento, vemos com grande simetria as abordagens de Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala (1933) com o conto de Machado de Assis. Isso porque Negrinha constitui um elemento central na formação da família patriarcal brasileira, ou seja, a relação afetiva e sexual entre senhores e escravas, entre filhos e filhas de escravas e filhos e filhas dos senhores e sinhás. O conto expõe que as relações sociais no tempo da escravidão se davam não apenas pela violência física e imposição desta como instrumento fechado de dominação. Haviam espaços de sociabilidades entre senhores e escravos que propiciavam uma assimilação dos valores tradicionais, sentimentais, linguísticos, cultuarias, religiosos, etc., de ambos.


O conto A Cartomante (1884) revela a genialidade enredística e envolvente de Machado de Assis. Para quem não conhece o conto, este versa sobre um triangulo amoroso entre Camilo, Villela e Rita. Rita é mulher de Villela. Camilo é amigo de Villela. Camilo se encanta por Rita, no que é correspondido. Durante algum tempo, Camilo e Rita vivem um caso às escondidas. Logo, surgem cartas direcionadas a Camilo cujo conteúdo indicam que alguém conhece o romance proibido com Rita. Todavia, Camilo não consegue identificar o autor das cartas, onde fica extremamente preocupado. Muito angustiado, Camilo procura uma cartomante, que tenta acalmá-lo. Diz a ele que não há necessidade de se preocupar e que poderia procurar Villela para conversar, pois já tinha tido com ele antes. Camilo, mais calmo e tranquilo, vai até a casa de Villela, onde encontra Rita morta. Villela, assim que Camilo identifica Rita morta na casa do amigo, tira a vida de Camilo com tiro.


Trata-se de uma história com final trágico, pois aos personagens envolvidos na trama, o resultado dos fatos e ações por eles praticados caracterizam-se por um desfecho de decepções, desilusões e mortes. Para Rita e Camilo (a primeira mulher de Villela e o segundo seu amigo a tempos), couberam pagar com a vida o preço de uma paixão ardente. A Villela, coube encerrar com tal paixão, sinônimo de sua decepção e desgosto, dando cabo e acerto de contas aos aleivosos. No que se refere à Cartomante, chegamos a levantar a hipótese de que a sua principal função na narrativa fosse a de nos revelar que, mesmo tentando controlar o tempo e o futuro, estes se demonstram imprevisíveis, incontroláveis e contingente. Além do que, supomos que as cartas enviadas para o personagem Camilo - cujo conteúdo versava sobre o caso que Camilo tinha com Rita - eram enviadas pela própria Cartomante, por razões supostamente desconhecidas.


O conto O Caso da Vara (1891) narra as agruras de Damião, um jovem seminarista que não suportava mais os ensinamentos clericais e que acaba fugindo de seu local de estudos. A partir daí, procura Sinhá Rita, uma senhora de considerável influência na sociedade. Dentre os argumentos que utiliza em sua defesa para justificar a fuga do seminário para Sinhá Rita, a enfadonha rotina e exagerada disciplina de clérigo, e a falta de tino para vigário, eram entonados com muita eloquência. A velha senhora insiste para que o atormentado Damião vá procurar e ter com seu pai. Damião teme que o pai, homem que afirma ser enérgico e autoritário, o repreenda e o mande retornar para o seminário. De muito insistir, Damião consegue ferir o orgulho de Sinhá Rita, e esta passa a advogar em favor do convicto jovem. Sinhá Rita pede que um conhecido, o Sr. João Carneiro vá interceder por Damião junto ao pai do jovem, em nome dela. O Sr. João Carneiro tenta argumentar contra a ideia, mas acaba cedendo às pressões impositivas de Sinhá Rita. Damião fica um pouco mais confortável. Surge na trama, Lucrécia, uma negrinha, cria de Sinhá Rita. Damião logo apadrinha a pobre criança. Ao desembocar para o fim, a narrativa culmina em uma situação em que Lucrécia perpassa às agruras com Sinhá Rita, ao qual prestes a utilizar uma vara como punição à menina. Damião – que havia apadrinhado a criança – acaba entregando à Sinhá Rita o objeto de medo e temor da pobre Lucrécia, ou seja, a vara. Certamente, para não desagradar a Sinhá Rita, que advogava em sua causa junto ao pai, Damião abrira mão do vínculo moral estabelecido com Lucrécia, ao passo que imputou à menina o instrumento de sua punição e possíveis sofrimentos.


Acreditamos que o sentido do conto esteja relacionado com uma discussão que envolva a ética e a moral. Isto é, Damião, valendo-se da influência e da personalidade forte de Sinhá Rita, ao final da narrativa, concebe a "vara" como sendo um instrumento de obtenção daquilo que mais desejava, no caso, sua libertação sumária do então tedioso e agonizante seminário. Mesmo que para isso, tenha tido que passar por cima do apadrinhamento que estabelecera com a negrinha escrava de dona Sinhá Rita, Lucrécia. É possível, então, depreender uma lição de ética dessa narrativa, pois nos questiona a que ponto estamos dispostos a criar meios e elaborar mecanismos para atingir nossos interesses particulares; até onde vamos com objetivo de atingir certos resultados particulares em detrimento de ações que a coletividade, por meio de consensos e dissensos, estabelecerá como condição e condutas éticas de convivência.


Em decorrência da forte aproximação entre Sinhá Rita e o Sr. João Carneiro (justamente pelo fato de os dois personagens se conhecerem de longa data), pensamos que, talvez, em algum momento, os dois personagens pudessem ter mantido algum tipo de relacionamento afetivo, o que demonstraria a forte influência de Sinhá Rita sobre o Sr. João Carneiro. Também imaginamos ser possível que Sinhá Rita fosse uma mulher preocupada com as moças solteiras que frequentavam sua casa durante o trabalho de costura. Essa preocupação, acreditamos, poderia estar relacionada com a chance de Damião conseguir se arranjar com alguma daquelas moças bem vivas.


O conto Missa do Galo (1899) discorre sobre as conversações de um jovem e uma mulher às vésperas de uma missa. Trata-se de uma celebração católica que antecede o Natal, por essa razão é denominada de Missa do Galo. Em um primeiro momento, tivemos a impressão de que a narrativa se enreda por sentimentos contraditórios de um jovem (Sr. Nogueira), que se encanta momentaneamente por uma mulher (Conceição) casada e mais experiente. e que vivia as agruras de um casamento sofrido pela traição e descaso do marido. A mulher perpassava às agruras de um casamento conturbado, sofrido, especialmente pelos atos de traição do marido. Percebemos também que, especialmente da parte do jovem, há um sentimento mais incisivo de desejos pela então mulher, mas que se apresentam retidos pelas circunstâncias em que ambos se encontravam.


Há uma perspectiva de sedução de parte de Conceição em relação aos Sr. Nogueira. E de parte do Sr. Nogueira há um momento de ruptura dos valores religiosos, pois ele se depara com a sedução e desejos de Conceição, como algo que o separava dos valores morais cristãos. Diante tal constatação, verifica-se que a narrativa nos leva a criar uma expectativa sobre os protagonistas, em especial atenção, para que ambos se entreguem aos desejos aflorados. Verificamos, em consenso, que ambos desejavam um ao outro, e que tais desejos foram sendo ligeiramente evidenciados por meio das falas, dos gestos e comportamentos dos personagens.


Por fim, tanto Conceição quando Sr. Nogueira, não se entregam aos desejos que ali afloravam. O conto termina com o Sr. Nogueira indo rapidamente à Igreja com receio de perder por completa a celebração religiosa, a missa.


A Terceira Margem do Rio (1962) é um conto que descreve a história de um homem, que sem explicar os motivos aos filhos e à mulher, decide sair de casa e habitar em uma pequena embarcação que construíra dentro de um rio. A atitude do homem logo preocupa a família, que tenta, sem sucesso, a convencê-lo a abandonar a ideia e retornar ao lar. Durante meses e anos o homem permanece na embarcação, no rio. Um de seus filhos (o narrador personagem) mantém todos os dias, para seu pai, os víveres necessários. Aliás, este filho é o que mais se dedica a procurar entender a atitude do pai, ao mesmo tempo em tentar fazer com que o mesmo retorne. A mulher e as filhas, com o passar do tempo, se mudam para outras localidades, sendo que uma das filhas se casa e vai viver separadamente. O filho permanece ao lado do pai. Ao final, o filho já se encontra velho, ao qual o pai, num gesto do filho, atende em acabar com aquele desatino.


Na leitura do texto, refletimos nas seguintes questões: a) um rio, só tem duas margens; qual seria a "terceira margem do rio"? Seria a morte, o tempo, a vida? b) será que Guimarães Rosa estaria tentando passar uma ideia de que a vida é comparável a um rio, com suas curvas (altos e baixos), com seus galhos, e restos de animais mortos (problemas e dificuldades), com certo tempo de correnteza tranquila, em outros agitada (momentos da vida em que vivenciamos tempos de paz, em outros de turbulência). Ou então o rio faz alusão ao tempo?


Depreende-se que o conto possui uma linguagem metafísica. O autor cria uma alegoria para expressar a dificuldade que temos para a construção de nossas identidades. O conto fornece elementos para supormos que temos dificuldades para lidarmos com as escolhas dos outros, principalmente pessoas próximas. Todos os personagens encontram a sua terceira margem, ou seja, como nos vemos no mundo e como lidamos com nossas escolhas. O rio estaria relacionado a vida, onde o pai se encontrou, à sua maneira, a seu modo. Ou seja, até quando ficamos presos a algo que nos impede de seguir a vida e buscarmos a nossas realizações e escolhas. Porque toda escolha pressupõe o abandono de outra. Nesse sentido, conclui-se que a vida é permeada de escolhas que nos condicionam em situações específicas.


Integrantes do grupo: Jean Carlos Ribeiro de Lima, Ramon Portilho, Elisama Cristina, Márcio Filho, Isadora Camilo Passos.


Redação do texto: Jean Carlos Ribeiro de Lima.

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