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NOVA MUTUM - MT: TRABALHO, MORADIA E A RESSIGNIFICAÇÃO DO ESCRAVO DE GANHO



Apesar da amplitude do conceito, podemos entender como escravo de ganho o negro cativo que era obrigado a sair para prestar diversos serviços, em diversas frentes de trabalho, e deveria, ao fim de um período determinado, entregar ao seu senhor uma certa quantia por ele determinada. Esta modalidade era bastante comum nas cidades brasileiras e, como afirma Luiz Carlos Soares (1988), foi bastante utilizada na cidade do Rio de Janeiro, na primeira metade do século XIX. Mas que, pelo visto, continua rendendo frutos aos senhores sulistas que se instalaram ao norte de Mato Grosso.


De certo que você deve estar se perguntado: mas a escravidão não acabou? A resposta é sim e não. Sim, porque legalmente, para tristeza e desespero de uma boa parcela do empresariado brasileiro, a escravidão é proibida no Brasil, embora a nova reforma trabalhista, de 2017, tenha se aproximado bastante de sua “relegalização”. E não, pois a estrutura exploratória do trabalhador ainda se mantém, sofrendo algumas ressignificações, o que hoje se chama de trabalho assalariado. Pois, a partir das ideias impostas pela lógica capitalista, não são mais necessárias as correntes físicas, já que conseguem nos manter cativos pelas ideias, na ilusão de ascensão social por meio do trabalho. Doce ilusão. Com tudo isso, pasmem, conseguiram também manter a figura do escravo de ganho, que, logicamente, precisou ser remodelada, tomando, cá, seus ares de legalidade.


A grande vantagem desta modalidade era o fato de que o senhor fazia um investimento inicial, na compra do cativo, e não precisava mais se preocupar com a manutenção deste, uma vez que o próprio negro era responsável pelo seu sustento, trazendo apenas os lucros. Como não é mais possível a compra de escravos, foi preciso uma reformulação na estrutura exploratória do trabalhador. Esta adaptação nas “cidades privadas” do norte mato-grossense passa necessariamente pela relação entre os salários pagos aos trabalhadores e os custos necessários para a sua permanência e a sobrevivência nestas localidades, criando, assim, um ciclo de dependência.


Em Nova Mutum, a ressignificação da figura do escravo de ganho está alicerçada no tripé terra, capital e poder. Onde a estrutura imobiliária implantada pelos colonizadores e posteriormente articulada com o poder público, majoritariamente composto por membros ligados ao ramo imobiliário, inflaciona o preço da terra, forçando uma supervalorização imobiliária fora do comum. Do outro lado, os salários pagos aos trabalhadores, sejam eles da indústria, comércio e poder público não seguem esta mesma lógica de valorização, gerando uma disparidade absurda entre os salários recebidos e os custos com moradia.


Danilo Volochko (2015) argumenta que “o desdobramento da colonização privada – que marca a historicidade monopolista desta cidade, dominada pela empresa Mutum Agropecuária S.A. articula-se a um grande controle e concentração da terra, do poder e do capital, reproduzidos atualmente pelo entrelaçamento entre o planejamento público municipal e os interesses fundiários privados ligados ao agronegócio e que atualizam a produção da cidade e do urbano como um negócio imobiliário.”


Esta articulação entre o poder público e privado tem como objetivo principal dificultar a aquisição de terrenos por parte da classe trabalhadora, formando, com isso, um exército de escravos do aluguel e, consequentemente, a manutenção de uma elite escravagista, que se sustenta pelo poder advindo da exploração do trabalhador, por meio do monopólio da terra. O capital formado por esta expropriação viabilizará a estes senhores a aquisição de novos imóveis, impossibilitando, com isso, a quebra do ciclo de exploração imobiliário. E isso não é por acaso, é um projeto minunciosamente articulado, que é, inclusive, refletido no Plano Diretor da cidade, o qual impõe diversas dificuldades a quem, caso consiga superar a máfia imobiliária, queira construir algum imóvel em solo mutuense.

Esta estrutura imobiliária, há quem prefira chamar de máfia imobiliária, é tão bem institucionalizada, que nem mesmo as grandes indústrias instaladas no município são capazes de romper com este modelo. Com isso, com o objetivo de viabilizar uma mão de obra com baixos salários, algo necessário para manter os preços de seus produtos competitivos no mercado internacional, fez-se necessária a criação de um sistema habitacional para seus empregados. Com isso, foram criadas as PROHABs, que são moradias pertencentes às indústrias – Sadia/Perdigão - e que são cedidas aos seus empregados, em formato de aluguel, a preços bem abaixo dos praticados pelas imobiliárias ou por particulares.


Além de servir a uma estratégia econômica industrial, o sistema de PROHAB vai de encontro a uma política higienista visivelmente estabelecida pelas elites locais. Esta ideia é materializada através da criação de diversas dificuldades para a manutenção de pessoas pobres na cidade, buscando deixar apenas uma quantidade necessária para manter a máfia imobiliária, a indústria funcionando e seus banheiros limpos. Qualquer pobre a mais que isso é estritamente inaceitável. O fornecimento de moradias condicionadas ao tempo de trabalho, juntamente com a desproporcional relação entre remuneração e custo de vida, principalmente habitação, garantem que “essa gente” (como é comum de se ouvir por lá) permaneça na cidade somente o tempo necessário, sendo empurrada para fora o mais rápido possível ao perder sua serventia.


Com tudo isso, pode-se dizer que o escravo de ganho mutuense é aquele trabalhador, em sua grande maioria negro, que é obrigado a sair para prestar diversos serviços, em diversas frentes de trabalho, e deve, ao fim de um período determinado, entregar ao seu senhorio uma certa quantia - o que, na maioria das vezes, equivale a quase totalidade do seu ganho - por ele determinada, em forma de aluguel. Como consequência, tem-se, muitas das vezes, a formação de verdadeiros aglomerados de famílias dividindo um mesmo espaço, condição extremante necessária para a superação dos altíssimos valores pagos para morar.


Neste contexto, a figura do escravo de ganho adquire uma nova conjuntura, não sendo mais pelo lucro sobre aquisição do sujeito, mas do lucro sobre a aquisição da terra, e posterior exploração do sujeito, por meio de aluguel. O morar torna-se a condição essencial do processo de escravização da pessoa. Parafraseando José de Souza Martins (2010), em seu livro O Cativeiro da terra, pode-se afirmar o seguinte: num sistema de terras livres, o trabalho deveria ser cativo; num sistema de trabalho livre, a terra deve ser cativa.



Referências:


SOARES, Luiz Carlos. Os escravos de ganho no Rio de Janeiro do século XIX. Revista Brasileira de História, v. 8, nº 16, 1988, pp. 107 a 142.


VOLOCHKO, Danilo. Terra, poder e capital em Nova Mutum – MT: elementos para o debate da produção do espaço nas ‘cidades do agronegócio’. GEOgraphia, Rio de Janeiro, v. 17, n. 35, p. 40-67, 2015.


MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Editora Contexto, 2010 (288p.)

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