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O desconforto da leitura: O que aprendi com Djamila Ribeiro e Silvio Almeida



Em certas rodas de conversas e círculos de amizades, onde discutimos e debatemos diferentes assuntos e temas, costumo dizer que leitura boa é aquela que nos tira do lugar comum, que causa impacto, incomoda e provoca no leitor certo desconforto. Dentre textos e artigos que leio, estão aqueles que vão além dos temas propriamente alinhados com minha atuação profissional e área do conhecimento, qual seja, o campo da História. O que quero dizer é que não leio apenas livros História, mas procuro sempre outras referências e temáticas que possam, de alguma maneira, contribuir para o enriquecimento de meu vocabulário e capacidade argumentativa.


Mesmo quando a leitura não é agradável, ou mesmo quando lemos gêneros e temas que não nos são familiares, sempre aprendemos alguma coisa. É sempre bom lembrar, como faço com alguns amigos e colegas, nem que seja uma notícia de jornal, um rótulo de um medicamento, a receita de um bolo, leia. De alguma forma, em alguma medida, nós sempre iremos tirar proveito e aprenderemos algo com o que lemos, seja o conteúdo dessa leitura bom ou ruim, prazeroso ou não. Existem textos e autores que possuem uma capacidade inexplicável de “capturar” o leitor, de enreda-lo em suas palavras, linhas e parágrafos. Seja um romance, um poema, uma crônica, um texto de História ou de Filosofia. Alguns textos, em especial, ficam como que registrados em nossa memória como aqueles textos – e, consequentemente, os autores destes textos – que trouxeram algo novo, uma perspectiva nova, um olhar e uma visão diferenciados e que, de modo mais ou menos intenso, nos provoca a pensar: como eu não pensei nisso antes?


Desde a graduação em História, a leitura tem me proporcionado, para além do conhecimento teórico, a capacidade de me tornar um ser humano melhor. Tenho muitos livros, textos e autores que poderia citar como aqueles marcados em minha experiência de leitura, como quando li A Metamorfose de Franz Kafka, ou quando me deixei envolver por Cândido e o Otimismo de Voltaire. Quando lia estes e outros textos, aqueles que me provocavam e me tiravam do lugar comum, eu sempre parava e pensava: eu já fiz isso; eu já disse isso; eu já pensei dessa forma. Sempre me via em uma situação de constrangimento, mas ao mesmo tempo de aprendizado, e que a partir daquele momento tentaria mudar de perspectiva, de atitude. Dessa forma, inúmeros textos já me tiraram do lugar comum, me proporcionaram pensar e repensar atitudes, ideias, práticas e comportamentos.


Mais recentemente, um desses textos, em particular, foi o de Djamila Ribeiro intitulado Pequeno Manual Antirracista, publicado em 2019 pela editora Companhia das Letras. Ao findar o ano letivo (me refiro ao ano de 2020), me organizei para adquirir textos atuais que debatessem a questão do racismo, tema que é complexo por natureza e que está na ordem do dia. Meu interesse foi despertado não apenas pelos recentes e bárbaros acontecimentos relacionados à questão racial, como o assassinato covarde e brutal de George Floyd nos Estados Unidos e o de José Alberto em um supermercado (o Carrefour) na cidade de Porto Alegre. Para além desses atos terríveis e brutais, minha motivação veio justamente no intuito de conhecer mais sobre o que de fato é o racismo, como ele foi gestado, como ele se reproduz em nosso cotidiano e, sobretudo, como o racismo se opera em nossa sociedade.


Ademais, desde o período inicial da graduação em História o tema do racismo já era debatido e discutido em sala de aula. O conhecimento histórico acerca da escravidão, desde tempos imemoriais, me davam a clarividência de que o racismo era um problema social derivado da escravidão de homens por homens, justificada pela melanina e ideias de evolução, tanto biológica, quanto social e cultural. Ao longo de todo curso, fui me apropriando de conceitos e categorias que buscavam apreender a origem do racismo como uma prática historicamente constituída, composta por elementos políticos, econômicos, sociais e culturais. Foi aí que aprendi de fato o que era a prática da escravidão por dívida e por guerra na antiguidade, bem como os mais variados tipos de escravidão, como a étnica e a doméstica, praticadas, principalmente, em algumas regiões da África e Ásia. Mas foi onde aprendi, também, como historiador, que não existia racismo naquele tempo, uma vez que o racismo é uma construção social derivada dessa historicidade que a pouco citei, mas resultado de um adensamento das atividades mercantis a partir do século XVI, com a expansão marítima e o Colonialismo das Américas. Neste contexto, surge outro conceito importante: o de Coisificação.


A ideia de escravo e o próprio processo de escravização se tornam elementos adensados pela ideia de lucro e acumulação de riquezas. Homens, mulheres e crianças, seres humanos são, agora, “coisificados”, tidos como objetos, mercadorias, algo que se compra e se vende. Perdem sua condição humana, se tornando “coisa”. Toda essa categorização e conceituação havia aprendido na graduação a partir de textos e autores que havia lido, o que de maneira alguma está errado, muito pelo contrário. A minha perspectiva sobre o racismo era (e continua sendo) a de um historiador, como em outros temas geralmente tem sido sempre. Contudo, a própria História como disciplina e como processo se modifica e se transforma em diferentes ritmos e condições. Nesse sentido, o conteúdo e a própria discussão do racismo foi se alterando, ganhando novas perspectivas, abordagens e interpretações.


Foi essa “algo a mais” que me fez procurar os textos mais atuais que discutiam a temática do racismo. Muito em particular, acompanhava debates e reflexões em certas mídias sociais, em certos programas de TV a partir de certos pensadores, autores e especialistas do tema. Foi ai então que me deparei com uma coleção de textos recentes e de autores recentes que estavam se notabilizando no cenário nacional e internacional, como de Djamila Ribeiro e Silvio Almeida. Imbuído pelo desejo de ampliar meu ainda incipiente conhecimento sobre o tema do racismo, procurei adquirir os livros dos mencionados autores: o já citado Pequeno Manual Antirracista e Lugar de Fala (Ed. Jandaíra, 2020) de Djamila Ribeiro e Racismo Estrutural (Ed. Jandaíra, 2020) de Silvio Almeida. Os livros são convidativos, pensados e organizados para se tornarem referências nessa temática. O conteúdo e a discussão são didáticas, não deixando de serem, de modo algum, competentes teórica e cientificamente. Em formato de “bolso”, os livros estão a preços acessíveis, o que é importante para que mais pessoas possam ter acesso.


De modo prático, comecei a leitura assim que o período de recesso escolar se iniciou. O tempo para leitura, ainda mais leitura dessa magnitude, foi crucial. Como afirmei no início deste texto, fui logo impactado pelas afirmações e frases de efeito, que não figuravam apenas como estéticas textuais e discursivas. Muito do que eu pouco sabia sobre o racismo (o pleonasmo é intencional) foi sendo desconstruído, ampliado, sofisticado e reformado. Ao ler Racismo Estrutural, observei que o que eu tinha em mente do que pensava ser o racismo não era suficiente. A incompletude de minha noção de racismo veio a ser de fato um desconforto terrível quando Silvio Almeida afirma ser o racismo um sistema que estrutura nossa sociedade, que molda nossas relações sociais, nossos comportamentos, hábitos, costumes, linguagens, símbolos, escrita etc. Ao compreender a dimensão estrutural do racismo, pude notar que não se trata apenas de um sistema que discrimina pessoas pela cor da pele, mas que, para além de suas raízes históricas estarem assentadas na escravidão, o racismo está presente no cotidiano, nas instituições, na política, na economia, na escola, no trabalho, nos espaços de lazer, na cultura, nos espaços e lugares de poder. O racismo, assim como outras formas de discriminação e preconceito, hierarquizam nossas relações, estruturam e configuram nossas ideias, sistemas de pensamento e discursos, determinam nossas ações e classificam nossas práticas sociais.


O desconforto de perceber essa nuance estrutural do racismo me causou, como disse anteriormente, um grande incômodo. Desconforto e incômodo não pela capacidade intelectual e competência interpretativa do autor, mas porque foi justamente aquilo que eu não sabia, ou sabia de menos, que me instigou a esse sentimento de inconformidade. Pensava: poxa vida! Como eu não percebera isso antes? Como não havia pensado dessa forma? Quantas vezes eu acabei reproduzindo esse discurso, essa ideia errada e equivocada? Desconcertante.


Ao ler Lugar de Fala e Pequeno Manuel Antirracista¸ entendi porque eu nunca devo dizer que não sou racista, afirmação, aliás, que já proferi tantas e tantas vezes. Quando me deparei com essa afirmação tão direta e impactante, me questionei: Por que não devo declarar que não sou um racista? Se não me considero um racista, qual o problema de dizê-lo abertamente? Aquilo me inquietava. Comecei a ler e a ler. Logo, encontrei a resposta para a minha inquietude: eu não devo dizer que não sou um racista porque o racismo não é uma convicção pessoal, algo subjetivo, individual; o racismo é um problema estrutural, histórico, conjuntural, fruto de um sistema heteronormativo, sectário, desigual, portanto, coletivo. Quantas e quantas vezes em discussões, debates e conversas informais afirmava eu não ser racista. Eu estava errado? Sim. Mas não por me colocar numa posição contrária à discriminação de pessoas pela cor da pele, ou por qualquer outra forma de discriminação. Mas, sim, por faltar aquilo que Djamila reverbera logo em seu primeiro capítulo de Pequeno Manuel Antirracista: o conhecimento.


Me faltava, então, conhecer mais sobre o racismo. E conhecer mais sobre o racismo na perspectiva de quem sofre as mazelas desse sistema que estrutura a sociedade, que é um sistema de opressão. Dessa forma, Djamila mostra que é impossível não ser racista em uma sociedade que é inteiramente racista, desde sua constituição histórica. Assim sendo, a primeira lição que me causara desconforto foi a de que eu sou um racista porque vivo em uma sociedade racista. A segunda lição é que sou racista porque meu lugar de fala (locus social) me coloca nessa posição: sou homem e, acima de tudo, homem branco. Então, mesmo que eu seja pessoalmente contrário ao racismo, minha posição de homem branco me condiciona, estruturalmente, a ser racista. Posição e lugar de fala que são, no meu caso, de privilégios e de privilegiado, historicamente e estruturalmente.


A terceira lição aprendida, que deriva das anteriores, é que o racismo é um sistema opressivo heteronormativo que estrutura nossa sociedade determinado a partir da branquitude, ou melhor dizendo, dos privilégios dessa branquitude. Portanto, aponta Djamila, para ser um antirracista, precisamos reconhecer os privilégios sociais, políticos, econômicos e culturais da branquitude, para, enfim, chegarmos ao conhecimento do que se entende por negritude. Negritude que é diversa, mas que precisa ser compreendida dentro de suas especificidades de luta, resistência e reinvindicações. Ao ter consciência da posição privilegiada ocupada pela branquitude, teremos mais chances de buscar ações e medidas que possam melhorar nossas relações étnico-raciais, principalmente diminuir os efeitos cotidianos do racismo. Para isso, Djamila sugere que leiamos autores negros, homens e mulheres que vivenciam na pele o racismo dia a dia. É uma forma de darmos voz a quem de fato deve falar, pois ocupam um lugar de fala subalternizado e que, historicamente e estruturalmente, foram silenciados.


Portanto, quando Djamila diz que devemos sermos todos antirracistas, ela conclama a todos nós, homens e mulheres, jovens e crianças, a lutar contra esse sistema que oprime, violenta e mata pessoas pela cor da pele. Ser antirracista é se informar sobre o racismo. Ser antirracista é enxergar a negritude e reconhecer os privilégios da branquitude. Ser antirracista é ter a capacidade de perceber o racismo internalizado em nós mesmos. Ser antirracista é apoiar as políticas educacionais afirmativas e procurar transforma espaços, lugares, corações e mentes no sentido de combater comportamentos, pensamentos e práticas racistas. Ser antirracista é questionar a cultura (que é uma cultura branca, eurocêntrica) que consumimos. Ser antirracista é lutar contra a violência e o ódio racial. Ser antirracista é, antes de mais nada, como aponta Djamila Ribeiro e Silvio Almeida, um ato cotidiano de transformação e mudança de ideias, comportamentos e atitudes.


Como havia dito no início deste texto, a leitura boa é aquela que causa desconforto, nos tira do lugar comum. Leitura boa é aquela que nos proporciona rever nossas atos, nossas ideias, nossos argumentos. Leitura boa é aquela que transforma mentes e corações. O racismo, como bem adverte Leandro Karnal, não é um tema que deriva de uma mera opinião. Opinião é subjetiva, pessoal, particular, é “achismo”. O racismo é tema sério, delicado, necessário de ser debatido. O racismo é assunto que deve ser discutido, debatido a partir de argumentos. Argumentos derivam de sistema de pensamentos, teorias, pesquisas cientificas, fundamentação.


Sejamos todos antirracistas.


Algumas indicações...


Leiam os textos de Djamila Ribeiro e de Silvio Almeida. Tenho certeza que serão textos que vão ajudar na compreensão do que é o racismo de fato. Na leitura destes textos, os próprios autores registram referências de autores negros que devem ser lidos para melhor compreensão do que é o racismo na ótica dos próprios sujeitos que sofrem esse tipo de violência e opressão.


Procure, também, ler sobre a escravidão. Existem inúmeros textos que abordam esse tema. Ele (o tema da escravidão) é importante para que se possa compreender melhor as nuances da constituição e adensamento do racismo em nossa sociedade. Inicialmente, sugeriria o texto de Jacob Gorender, Escravismo Colonial (Editora Ática, 1978). Sugiro, também, um texto publicado recentemente por Laurentino Gomes, Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares (Globo Livros, 2019).

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