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O estado da barbárie



Aos leitores e ledoras desse texto, uma ressalva, o texto que segue trata de algo obvio. No entanto, no Brasil do século XXI, dizer o obvio diz muito do seu posicionamento político e social. Um exemplo, a Terra é Redonda!. A tese que permeará a construção desse ensaio procura fazer a seguinte defesa; o que vivemos é a mais nítida expressão da barbárie.


A barbárie está aqui, se manifesta no agora, e, para o nosso desespero, a barbárie estará presente no amanhã. Não se trata de futurologia, mas de análise histórica, por mais contraditório que possa ser nesse momento. Não será pequenos acenos, alguns manifestos de repúdio que conseguirão irromper com o contexto crítico, violento, que persegue e promove à morte de centena de milhares de pessoas, isso porque o problema da barbárie é estrutural. Somente o luto coletivo tem condições de irromper com tudo que está aqui.


A barbárie sempre esteve presente entre nós, o ovo da serpente nunca deixou de ser chocado. Ponto. No entanto, houve a predileção para acreditar no poder da conciliação, não percebendo, ou optando por não perceber, que os problemas sociais no Brasil são problemas de caráter estrutural, estão enraizados, fazem parte de todo um processo gestado e consolidado através da longa duração. Nesse sentido, alguns exemplos desnudam o caráter que violenta e cria os meios de morte de parte significativa da sociedade, com destaque para o racismo estrutural, conceito tão bem documentado por Sílvio Luis de Almeida, se efetivando na perseguição e na morte de determinados segmentos da sociedade.


Essa leitura tem sua importância, possibilitando perceber dois momentos históricos que, indubitavelmente, estabelecem uma linha tênue. Por exemplo, com a abolição da escravatura no final do Oitocentos, não houve nenhum tipo de política efetiva por parte do estado, e tampouco mobilização da sociedade para criar condições de vida digna para a população negra recém “liberta”. Não se pode falar em liberdade se não existe igualdade.


Para que a barbárie se efetive um fenômeno deve acompanhá-la e, consequentemente, abrir os caminhos para que o extermínio de determinado segmento tenha condições de se efetivar. O fenômeno encontra-se representado pela naturalização. Não existe barbárie, pulsão de morte, se não tiver uma maioria da sociedade que relativize à barbárie, que naturalize à morte conduzida pelo estado, seja pelas forças de repressão, ou pela ausência desse mesmo estado. A barbárie se manifesta no endossamento das teses dos grupos que sequestram o estado para atender os interesses do capital. No Brasil contemporâneo, o estado está sequestrado pelo capitalismo neoliberal. A defesa das reformas neoliberais é, ao mesmo tempo, a defesa do estado da barbárie, isso porque o neoliberalismo promove à morte quando retira investimento da vida das pessoas, saúde, educação, moradia, direito, dignidade, para destinar ao capital especulativo.


Voltando à condição do negro do final do Oitocentos e início do século XX, não houve indignação social por sua situação degradante. Não houve revolta popular quando o negro se encontrava nas regiões periféricas, vivendo à margem da sociedade, porque essa mesma conjuntura sempre olhou o negro com os olhos da escravidão, no sentido da coisificação, no lidar com o ser humano como se fosse objeto, no ver o corpo do negro como um corpo matável, suscetível a todo o tipo de violência. O racismo como sinônimo mais bem acabado do Brasil do início do século passado.


Uma sociedade que não se indigna, que não promove um levante popular com a morte do seu semelhante, está disposta a naturalizar todo e qualquer tipo de barbárie. Não é demasiado reiterar, não existe barbárie se não tiver um estado de naturalização dessa barbárie. Esse fenômeno acometeu a sociedade brasileira do início do século XX e se faz muito presente atualmente. A barbárie é aqui.


No dia 29 de agosto mais de 120.000 mil pessoas já haviam perdido suas vidas em decorrência da pandemia de coronavírus e de tudo que envolve o cenário atual. Se fosse uma vida, deveríamos parar para refletir os motivos pelo qual aquela vida foi perdida. Uma vida, como dizem os poetas populares, é uma vida. O Brasil não consegue cuidar do seu povo, todos os esforços, até o presente momento, têm sido para negar os efeitos da pandemia, relativizá-los e, por último, naturalizá-los. A naturalização vai muito além da doença, é a naturalização da morte, é a naturalização das vidas perdidas. Se as vidas não importam, se não há indignação coletiva, luto coletivo, não tem como fugir da constatação. A barbárie é aqui.


Nesse momento, o país deveria estar de luto, um sentimento de revolta controlando as ações das pessoas, retirando, pela revolta popular, o gestor da morte e tudo o que representa do seu posto, não aceitando a presença de tantos governadores, prefeitos e deputados/as que têm adotado uma postura idêntica ao gestor da morte, somando esforços não para impedir que as pessoas morram, mas para naturalizar a morte dessas pessoas. São a morte dos corpos matáveis.


Mas porque a vida de tantas milhares de pessoas não ocasiona indignação? Por que o Brasil não vive um luto coletivo? Por que não conseguimos produzir uma revolta popular? Embora problemas estruturais sejam complexos, nesse caso as respostas são relativamente fáceis, para não dizer obvias. O país não vive um luto coletivo porque quem está morrendo de Brasil, de pandemia, é a população pobre, negra e periférica. São os descendentes dos homens e das mulheres negras que foram empurrados para viverem à margem da sociedade no início do século XX. Fica nítido que existe uma naturalização da violência contra o negro no Brasil, e essa naturalização é histórica, reflexo do racismo estrutural.


Na contemporaneidade, o racismo estrutural se manifesta pela violência da Política Militar, pelos programas televisivos que fazem da violência contra o negro um espetáculo de entretenimento, pelo encarceramento em massa, pelas reformas neoliberais, pela segregação social e, evidentemente, pela pandemia. Os negros e negras têm sido violentados e mortos ao longo do processo histórico e, quando diferentes estudos têm apontado para o maior índice de mortandade da população negra pela covid-19, o Brasil é incapaz de produzir um luto coletivo, um luto efetivamente com possibilidade de transformação. O Brasil não faz nada, deixa os negros e pobres morrerem porque sempre foi isso que fez, naturalizou à barbárie, naturalizou a morte dos vulneráveis.


Não existe barbárie se não tiver, antes, durante e depois, o fenômeno da naturalização. Enquanto os negros e pobres morrem de Brasil, vítimas da pandemia, o país continua, “simples assim”. Reproduzindo os dizeres de Belchior: “Minha dor é perceber, que apesar de termos feito tudo, tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”. A barbárie, senhoras e senhores, é aqui.

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