O gesto de Marta: Um protesto
- Jean Carlos
- 23 de jul. de 2019
- 4 min de leitura

No último dia 23/06 (domingo) a Seleção Brasileira de Futebol Feminino foi eliminada da Copa do Mundo para a Seleção Francesa, em um jogo nitidamente tenso e bastante disputado. O selecionável feminino do Brasil saiu atrás do placar, conseguindo igualar o jogo com Thaisa, aos dezoito minutos do segundo tempo. Não restando mais tempo regulamentar, o jogo dirigiu-se para a prorrogação, onde, para infelicidade das meninas e da torcida brasileira, sofreram um gol que não deu chances de qualquer reação. Estavam fora da competição.
Apesar de toda infelicidade e frustração do selecionável feminino e da torcida brasileira em decorrência da eliminação no torneio mundial, a grande lição que pudemos observar não se restringe ao insucesso do time no campeonato. O genuíno aprendizado observável por meio da participação das meninas do Brasil na Capa do Mundo pôde ser representado por gestos e falas emblemáticos de algumas jogadoras. Chamo a atenção, em particular, para dois momentos sintomáticos de Marta, a principal e mais notória jogadora do time feminino brasileiro. Como todos sabem, Marta foi considerada por seis vezes a melhor jogadora de futebol feminino do mundo pela FIFA, entidade máxima do futebol. Além disso, Marta é a maior artilheira de todos os tempos da Copa do Mundo (entre homens e mulheres) com dezessete gols marcados. Os números falam por si.
Em referência aos dois momentos sintomáticos que mencionei protagonizados por Marta nesta edição da Copa do Mundo, em muito são importantes para compreendermos questões que vão além do futebol. O primeiro momento aconteceu em partida realizada contra o time da Itália, pela terceira rodada da fase de grupos. Marta, em cobrança de pênalti, marcou o único gol do jogo, derrotando, dessa forma, as italianas, classificando a seleção para as oitavas de final. Não obstante, no meu entendimento, a classificação não foi a principal conquista a se comemorar. Marta, ao marcar o gol de pênalti, fez um gesto durante a comemoração, apontando com o dedo indicador direito para a chuteira. De tão rápido, a atitude de Marta quase não fora percebida imediatamente, sendo necessário o replay das câmeras para visualizar o então mencionado gesto.
A grande questão é que Marta, ao apontar para a chuteira na comemoração do gol, deixou explicita sua indignação com a ausência de patrocínio pessoal. Ora, uma das primeiras indagações que me veio à mente foi justamente a de pensar que se Marta, a maior jogadora de futebol feminino de todos os tempos, tem dificuldades para conseguir patrocínio, então imaginemos outras jogadoras em condições técnicas inferiores. Nessa perspectiva, o gesto de Marta certamente mostrou não apenas as dificuldades em obter patrocínio no mundo do futebol e do esporte feminino, mas, também, em realçar as desigualdades de gênero que insistem em continuar se perpetuando em todos os campos sociais. Por mais que essa constatação seja óbvia para alguns (especialmente porque essa é uma discussão que felizmente tem ocupado e ganhado cada vez mais destaque) ainda existem pessoas que relutam em admitir a pertinência social e política que envolve a questão de gênero no tempo presente. Para estes, essa é uma discussão secundária e até mesmo negada quanto à sua importância e validade, escamoteando situações e condições desiguais entre mulheres e homens na sociedade.
Dessa forma, percebi que aquele gesto se tornara emblemático porque continha uma indignação social que deve ser tomada e levada a sério por todos nós, independentemente da condição social ou de gênero. Marta não só mostrou os percalços que as mulheres enfrentam no mundo do esporte, com dificuldade de apoio financeiro e estrutural, assédio e abusos sexuais, discriminação de gênero, entre tantos outros. Mas revelou, acima de tudo, o quanto estamos a paços largos de uma mínima condição de diminuição da gritante desigualdade entre homens e mulheres, assim como no caminho para construirmos uma sociedade mais justa e igualitária, em todos os sentidos que se possa imaginar.
Possivelmente, em mesmas condições às de Marta (e não nos esqueçamos, Marta é mulher), Messi, Cristiano Ronaldo e Neymar nunca tenham tido dificuldades em obter patrocínio ou algo do tipo, muito pelo contrário. E sabe por quê? Porque eles são homens. E isso não significa razoabilidade no argumento de que o futebol masculino sempre foi mais bem valorizado que o feminino, até porque isso é um fato concreto. O fato em si é que, mesmo Marta sendo a jogadora que é, em mesmas condições às dos grandes jogadores que mencionei a pouco, o apoio que recebe é visivelmente inferior, pelo simples fato de ser mulher. Marta é um exemplo entre tantos outros no esporte que revelam essa horrenda e assustadora desigualdade.
O segundo momento marcante e que completa a nossa observação quanto a este imenso vazio de direitos e igualdades de gênero, fora justamente após a eliminação da seleção para as francesas. Após o término da partida, Marta desabafou em entrevista: "A gente pede tanto apoio, mas também precisamos valorizar. É querer mais, treinar mais, estar pronta para jogar quantos minutos forem necessários. É isso que peço para as meninas. Não vai ter uma Formiga para sempre, uma Marta, uma Cristiane. O futebol
feminino depende de vocês para sobreviver. Chorem no começo para sorrir no fim". Visivelmente emocionada, a camisa dez da seleção brasileira endossou o gesto que fizera contra a Itália, na fase de grupos do torneio. Além do que, ao pedir para que outras jogadoras tenham força de vontade e empenho nos treinos e que valorizem cada momento da carreira, Marta não apenas expõe o lado motivacional que é comum ao ambiente esportivo. Deixa claro, implicitamente, que é preciso e cabe às mulheres (não só do futebol) continuar resistindo ao faraônico império do patriarcalismo, do machismo, do preconceito, da intolerância, da desigualdade. É genuinamente perceptível em seu desabafo a conclamação à luta feminina contra o que eu chamaria de instituição do patriarcalismo e do machismo.
Em muitos momentos, o que Marta deixou claro ainda é a necessidade de buscar enfrentar toda sorte de discriminação. A invisibilidade da mulher em ambientes, espaços e condições sociais, políticas, econômicas e culturais deve ser enfrentado como uma questão de problemática humana, e não ser confundida com ideologia ou disputa de gênero. Muitos me questionam, impressionados, como tenho conseguido discutir e defender a pauta feminina, mesmo sendo homem. Surpresos ficam quando digo que, só teremos uma sociedade mais justa e igualitária, em especial, na questão de gênero, quando, inclusive, nós homens nos conscientizarmos e começarmos a discutir e a debater equidade de direitos entre homens e mulheres. A luta das mulheres contra toda sorte de estereótipos, invisibilidades e preconceitos não pode e não deve ser uma luta somente das mulheres, mas de todos nós, incluindo todos os homens.
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