A sociedade contemporânea tem se caracterizado nas últimas décadas pela vertiginosa expansão das mídias digitais, da tecnologia da informação e do intercâmbio de grandes fluxos de dados e algoritmos. Alguns especialistas tem definido este momento histórico como a Era da Informação Digital, onde o poder político e econômico tem sido cada vez mais influenciado e, até certo ponto, determinado pelas grandes empresas do ramo da tecnologia digital. Não resta dúvida: no mundo em que vivemos, o monopólio da tecnologia digital e o controle do fluxo de dados e informações é a grande marca indelével da disputa pelo poder global.
Nesse sentido, as redes sociais e mídias digitais são a expressão dessa marca indelével de disputa de poder em um espaço que se tornou arena de conflitos exasperados e disseminação de ódio e violência, bem como de informações falsas (fake news). Consequentemente, o produto dessa disputa de poder se reveste de intencionalidades políticas e ideológicas, com base em sentimentos tencionados entre grupos antagônicos, em que a eliminação e o extermínio digital e narrativo é marca registrada dessa “nova” constelação de relações sociais no âmbito do mundo cibernético.
O dilema das redes e do mundo digital também imprime a reprodução de certos estereótipos e paradigmas historicamente determinados. O que antes fora perpetuado em livros, cartas, relatórios, textos oficiais e mesmo na literatura, passa agora a se reproduzir nos espaços digitais e das redes sociais. E aqui nos proporemos a refletir sobre um desses estereótipos tão antigo quanto a História do Brasil.
Dentre o volume gigantesco de imbecilidades e idiotices que o mundo digital e das redes sociais tem disseminado dia após dia, constata-se o paradigma da colonização, tendo como fundamento básico a dicotomia litoral-interior/sertão. Não raro tem se notado certas postagens no sentido de indicar que as regiões centrais do Brasil, e, consequentemente, sua gente, ocupariam um lugar de inferioridade intelectual e social, comparando-se com as regiões litorâneas, supostamente mais desenvolvidas e marcadas pela centralidade política, econômica e intelectiva.
A referida dicotomia não é uma mera inflexão da superficialidade das redes sociais. Ela é, sobretudo, fruto de um processo histórico que remonta ao processo de colonização do Brasil. Como se sabe, é no litoral brasileiro que o projeto colonial português se consolida na América. Primeiro no Nordeste com a extração do Pau-Brasil e com o açúcar, mas também o tabaco, algodão e a pecuária. Logo adiante, a exploração colonial se estende ao sul do litoral, chegando às regiões que hoje conhecemos por Sudeste e Sul. Para maximizar a exploração econômica do territorial a partir do litoral, institui-se o sistema de Capitanias Hereditárias, grandes porções territoriais cedidas a um donatário, indivíduo da confiança do rei. Há também o transplante do Sistema de Sesmarias que já era uma prática em Portugal, para a colônia. Em síntese, as Sesmarias eram porções de terras menores concedidas mediante requerimento régio a particulares (indivíduos que apresentassem condições financeiras para empreender algum tipo de cultura ou lavoura agrícola). A concessão dessas porções de terra era diretamente fornecida pelo rei de Portugal, com intermediação do donatário.
Dessa forma, a vida colonial brasileira se estabelece como se nota, a partir do litoral. As primeiras vilas e arraias são ali fundados. Os centros políticos, administrativos e econômicos são ali consolidados. Constitui-se uma classe de senhores de engenho, de terra e escravos, uma aristocracia rural/colonial. O litoral brasileiro passa a ser a extensão do reino português na América. Em contrapartida, o interior é concebido como o lugar ermo, desconhecido e hostil, inóspito e selvagem.
Em condições às quais já está clara a oposição, o litoral corresponderia geograficamente e intelectualmente ao lugar da cultura, da erudição e da civilização. O interior, por sua vez, seria o espaço da selvageria, de índios antropofágicos, hostis e selvagens. No litoral pulsa a vida econômica e política da Colônia. No interior, os obstáculos geográficos, as intempéries climáticas e a hostilidade nativa são atenuantes de visões e concepções preconceituosas e estigmatizadas. Não raro, viajantes europeus embebidos de um eurocentrismo patente, reproduziram e retroalimentaram o paradigma civilização-barbárie relegada à dicotomia litoral-interior/sertão.
Não obstante, acontece um imperativo econômico que forçará, mais cedo ou mais tarde, a expansão para o interior. A crise do açúcar no litoral e as recentes descobertas de minas de ouro nas regiões centrais do territorial colonial, levará, quase que automaticamente, ao empreendimento bandeirante, com vistas à exploração aurífera e apressamento dos nativos. Mesmo diante das condições decorridas da exploração do ouro, o interior continuará a ser concebido como lugar ermo e selvagem. Todavia, um aspecto ideológico se insere aqui. Quando levados pela sede de ouro ao desbravamento dos sertões, os colonos brasileiros e os portugueses, dotados que seriam da cultura, erudição e aspectos civilizatórios, inserem a necessidade de ocupar e povoar as áreas centrais, objetivando levar o progresso, o desenvolvimento e os conhecimentos técnicos e científicos necessários para tal empreendimento.
Legitima-se, portanto, que as regiões centrais, ou seja, as regiões onde se concentravam a exploração aurífera, seja agora objeto de transformação de lugar da barbárie, em espaço de possiblidades do progresso econômico e social. Mais isso não se concretiza de fato. Mesmo que tenham-se gestados mercados internos e núcleos urbanos relativamente importantes, o escrutínio paradigmático litoral-sertão jamais deixaria de ser uma constante em nossa história. Ao período de decadência da economia aurífera ocasionada em grande parte pelo esgotamento das minas e de técnicas rudimentares na extração do ouro, aparecem, mesmo que timidamente, a pecuária e a agricultura como potenciais substitutivos ao metal amplamente cobiçado.
Da produção aurífera e mesmo da posterior constituição de uma pecuária e agricultura nas partes centrais do território brasileiro, emergem representações de figuras como o sertanejo, o caipira e o jeca-tatu. Personagens produtos das visões de viajantes europeus e de literatos brasileiros, que pintaram essas gentes como síntese do processo de expansão interior adentro, como dialeticamente constituídos na constelações de relações complexas e diametralmente opostas entre litoral-interior/sertão.
Tais personagens (sertanejo, caipira e o jeca-tatu), que de fato possuem modos de vida afeitos às regiões centrais e interioranas, foram (e continuam sendo) moldados à forma do paradigma da colonização, cingidos por visões românticas a serviço do nacionalismo que se constrói a partir do rompimento do Brasil com Portugal em 1822. Tais sujeitos constituíram o produto dessa simbiose provocada pelo binarismo civilização/litoral-barbárie/interior, a cabo de serem definidos a partir de hábitos, comportamentos e gestos peculiares. São concebidos não pelo que pensam, produzem ou mesmo defendem e acreditam. São concebidos em paralelismos, que os colocam em constante comparação com o homem do litoral, do sudeste e do sul.
Não é estranho notar que para muitas pessoas que vivem nas regiões Sudeste e Sul do Brasil, as regiões Centro-Oeste e Norte são concebidas como grandes fazendas, onde só tem boi e mato. Nas redes sociais e nos espaços midiáticos, tem-se reproduzido intensamente e velozmente a ideia de que nas regiões Centro-Oeste e Norte não se produz ciência, não se produz intelectuais, que certas discussões e debates não estariam a certo nível ao alcance de quem vive nestas regiões. Ou mesmo que se estivessem, não estariam ao nível e qualidade de tudo que é produzido cientificamente e intelectualmente no Sudeste e no Sul. É mais ou menos como que um determinismo geográfico-epistêmico.
Certo é que essa ideia e visão deriva do que neste texto denominei de paradigma da colonização. O estigma historicamente determinado – que não deixa de ser também resultado de um determinismo geográfico e epistemológico – de que litoral é sinônimo de progresso e civilização, enquanto que o interior/sertão é sinônimo de atraso e barbárie, ainda continuam sendo reproduzidos e disseminados, só que agora mais velozmente em espaços midiáticos e em redes sociais.
É papel daqueles que possuem esclarecimento e conhecimento do tema, de utilizar o mesmo espaço das redes sociais como instrumento e ferramenta de conscientização e desconstrução desse e de tantos outros paradigmas.
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