
Ana Carolina de Oliveira Marques
A temática do trabalho, sobretudo do trabalho hiperprecarizado (para utilizar uma expressão de Marcelo Lopes de Souza ao contrapor-se ao conceito de “precarização”, a esse autor mais adequado às realidades europeia e norteamericana onde se têm um Estado de bem estar social em processo de deterioração) impõe-se hoje em todas as dimensões da nossa existência. Para o geógrafo autonomista, a hiperprecarização se caracteriza, sobretudo, pelo aumento da informalidade.
A deterioração das condições de trabalho, que não é algo novo, evidencia o paradoxo entre o desenvolvimento tecnológico – e a ampliação, na esfera técnica, das possibilidades de trabalho decente – e o aumento da exploração do trabalho, do desemprego, da informalidade, da miséria, do adoecimento e da morte no e pelo trabalho. Vivenciamos o desmonte da narrativa que preconiza a técnica como criação humana, necessariamente, a serviço da vida.
Ao contrário disso, nos campos, nas cidades, nas fábricas, nas ruas, nos sinaleiros, nas rodovias, nos restaurantes, nas praias, nos shoppings, nos aeroportos, nas escolas: o trabalho sangra.
O trabalhador e a trabalhadora sangram. Sangram os corpos mutilados, acidentados e assassinados no trabalho. Segundo dados da Organização Internacional do trabalho, a cada 5 minutos 20 pessoas morrem em acidentes de trabalho em todo mundo e 300 milhões ficam feridas, lembrando que parte considerável desses acidentes são subnotificados.
Os trabalhadores envelhecem ou almejam envelhecer. Se pudessem, muitos antecipariam a velhice, tempo de “não-trabalho”, ao menos desse tipo de trabalho sanguinário. Mas a realidade é que os corpos dos velhos na América Latina sangram. Nesse território, 49% dos adultos com mais de 65 anos não recebem aposentadoria. Destes, cerca de 15% vivem com um salário mínimo e 33% não têm renda alguma. Sabemos que a seguridade social é um fator chave no combate à pobreza e à desigualdade social, também na afirmação do trabalho como fundamento da existência.
SEM-SALÁRIO e SEM-APOSENTADORIA sobrevivem 47% das mulheres acima dos 65 anos na América Latina. Para os homens, este percentual se reduz a 17%. Um adendo: falamos de uma porção do planeta em processo demográfico de envelhecimento. Está proibido, todavia, envelhecer, sendo tal proibição mais severa com as mulheres. Se afunilarmos ainda mais a análise, veremos que entre as mulheres proibidas de envelhecer, à margem da seguridade social, destacam-se as trabalhadoras autônomas, empregadas domésticas e mulheres ocupadas com o cuidado não remunerado de doentes, crianças e idosos.
Isso mesmo, ocupar-se com o CUIDADO DO OUTRO está também proibido, e quem se atreve é punido, ou melhor, punida, afinal dados da OIT revelam que “as mulheres realizam 76,2% do total de horas de trabalho de cuidado não remunerado, mais que o triplo dos homens”. A Economia do Cuidado é, assim, setor preponderante para a promoção da igualdade de gênero no mundo do trabalho, e começa em casa, na desconstrução do mito do “homem-provedor”, estendendo-se às políticas de ampliação do quadro de profissionais do cuidado e de instituições de assistência social, educação e saúde públicas.
Poderia aqui estender a lista de proibições, como a reprodução social das trabalhadoras: mulheres proibidas de serem mães, num cenário onde 47.6% das mães com filhos menores de 6 anos estão desempregadas. Só em 2018, ainda segundo a OIT, “606 milhões de mulheres em idade ativa disseram que não conseguiam trabalhar por causa do trabalho de cuidado não remunerado. Apenas 41 milhões de homens alegaram o mesmo motivo”.
Sangram os estômagos dos 13 milhões de brasileiros e brasileiras desempregados (o número de desocupados e em situações ultra precárias é bem maior), dos quais a grande maioria não pode, como nos lembrava Paul Singer, se “dar ao luxo de ficar desempregada”. Os trabalhadores mudam de ocupação, de bairro e, se necessário, e cada vez mais o é, mudam de região. Esses migrantes caem na informalidade e engrossam o hiperprecariado de um país que conseguiu em 2018 ascender no rancking dos países mais desiguais do mundo. Chegamos à 9ª posição.
Sem querer me delongar nos temas que hoje circulam nos debates acerca do mundo do trabalho (a nova morfologia da classe trabalhadora, a terceirização, o trabalho individualizado, des-sociabilizado, o proletariado de serviços, a urberização, a pejotização, a robotização, o mito do fim do trabalho etc.), também no debate acerca dos ajustes estruturais, da desindustrialização, das transformações no modo de regulação e no regime de acumulação, da desregulamentação dos direitos trabalhistas (vejam só a carteira verde e amarelo) entre outros mecanismos que desinvestem o trabalho de sentido existencial, finalizo este texto com palavras de esperança, palavras que reivindicam o trabalho, não como máquina mortífera, mas como “ponte” do sujeito ao mundo, como operador de vidas:
“Não há representação do ser ou devir ontológico que não tenho o trabalho como essência material de causação da vida. Há trabalho em cada respiro, suspiro, sonho, pesadelo, vida, morte. Negar o trabalho como categoria central da vida é negar a vida. [...] Na minúscula ampulheta da aventura humana, frente à imensidão do tempo que dura o mistério, o trabalho é o antes e o plano, o durante e os instrumentos; o depois e os usufrutos, que fazem do chão o trigo o pão a mesa e o seu sabor. É o que faz, pela mão do homem, do chão, além do trigo, o abrigo para o frio, como faria uma margem para acolher o rio, qualquer que seja o rio.” (CHAVEIRO e FADEL, 2018, p. 34-35).
Referências:
CHAVEIRO, Eguimar F.; VASCONCELLOS, Luiz C. F. (organizadores). Uma ponte ao mundo. - Cartografias existenciais da pessoa com deficiência e o trabalho. - 1ª edição, Goiânia: / Kelps, 2018.
OIT. Organização Internacional do Trabalho. Disponível em: https://www.ilo.org.
*Texto oriundo da participação de uma mesa redonda promovida pelo Grupo Dona Alzira (Espaço, Sujeito e Existência - CNPq), IESA/UFG, no dia 8 de dezembro de 2018.
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