O dia 20 de novembro é conhecido nacionalmente como o “dia da consciência negra”, um dia importantíssimo para a formação de uma consciência social e para a superação de antigos preconceitos enraizados em nossa sociedade. Em uma conversa recente entre amigos, um jovem de classe média afirmou que não concordava com dias como esse, afirmando que: “Só existe racismo no Brasil porque as pessoas ainda insistem em falar sobre isso.” Ora meu amigo, se você se incomoda com a existência deste dia de debates diálogos importantíssimos, e ignora o abismo social existente, sinto muito lhe informar, mas existe um “monstrinho” dentro de você chamado racismo. E é justamente para combatê-lo que este dia existe.
Mesmo sendo um país de maioria negra (53,6% segundo o IBGE em 2014) e também o país com maior número de negros fora do continente africano, o Brasil ainda é um país profundamente racista, porém, o racismo no Brasil é (na maioria das vezes) silencioso e velado, se você fizer uma pesquisa entre 100 pessoas fazendo a seguinte pergunta: “Você se considera racista?” certamente 100% dos entrevistados dirão NÃO como resposta. O resultado será o mesmo se perguntar em um presidio quem se considera culpado. Então a partir de sua pesquisa poderia chegar à conclusão de que não existe racismo no Brasil, mas certamente não é verdade, o racismo está ali mais presente do que você imagina no cotidiano de todos nós, nos mais diversos lugares.
Por falar em lugar é na distribuição espacial que o racismo mais se manifesta, não é difícil identificar a forma como a população é distribuída nas áreas urbanas, basta observar os shoppings, clubes e condomínios fechados e a forma como estes se contrastam com as periferias, favelas e prisões, para perceber que existe uma demarcação do lugar do negro e um lugar do branco no Brasil. Mesmo que não declarado há um “apartheid” a moda brasileira, que silenciosamente produz obstáculos de acesso aos lugares, obstáculos estes resultantes de quase três séculos de escravidão, e séculos seguintes de exclusão, descaso e violência, que ainda hoje deixam marcas e traz consigo ranços de uma forma de pensamento elitista e conservador que produz espaços segregados.
Os espaços segregados também se manifestam nos postos de trabalho, onde é facilmente perceptível, assim como na imagem que ilustra este texto, quem ocupa as funções privilegiadas com um maior status na sociedade e a quem é oferecido os trabalhos mais penosos e menos valorizados. Há uma evidente delimitação de lugares e funções, sendo delegado aos negros ainda o trabalho de servir aos brancos, mesmo quase 200 anos após a escravidão, ainda é predominante a presença de negros nas funções de domésticas, atendentes de lanchonetes, departamentos de limpeza, motoristas entre outros serviços precarizados. Sim são trabalhos dignos, considerando o valor humano daqueles que desempenham essas funções, pessoas trabalhadoras, que lutam diariamente pelo seu sustento, mas não devemos confundir a dignidade das pessoas (trabalhadoras) com falta de dignidade daqueles que as exploram e que através da precarização extrema das condições de trabalho, retiram dessas pessoas a possibilidade de viverem dignamente com saúde, moradia, alimentação e educação de qualidade. Mas não apenas isso, essa segregação de funções e espaços retiram dessas pessoas “importância” dentro de uma sociedade onde o status social define o nível de respeito que as pessoas merecem.
Mesmo quando as barreiras estruturais são transpostas e os negros começam a frequentar os espaços e as funções antes pertencentes somente aos brancos o racismo se manifesta, pois, mesmo ocupando os mesmos cargos e possuindo a mesma formação a atribuição salarial oferecida a população negra ainda é 46% menor que a oferecida aos brancos segundo pesquisa do ministério do Trabalho em 2014. Então para aqueles que ainda acreditam em uma “meritocracia”, não se trata apenas de mérito, ou capacidade de chegar a cargos de maior status e importância, mas sim de puro racismo, praticado escancaradamente nas empresas que ainda não aceitaram a presença dos negros nestes espaços. Segundo pesquisa da instituição OXFAM Brasil intitulada “A distância que nos une” considerando o abismo socioeconômico a diferença de renda entre negros e brancos só serão equiparadas em 2089.
As universidades ao longo da história também foram sempre espaços frequentados majoritariamente pela população branca, e apesar de hoje existirem politicas públicas que facilitam o acesso através de cotas e programas de financiamento estudantil os negros ainda representam apenas 26% dos acadêmicos em universidades brasileiras, além de enfrentarem maiores obstáculos, como condições financeiras e conciliação do tempo dividido entre trabalho e estudos levando a uma maior evasão, de cada 100 formados apenas 2,66%, são pretos, pardos ou negros. Apesar de ainda muito inferior ao número de brancos na universidade, o acesso da população negra ao ensino superior aumentou 232% na comparação entre 2000 e 2010, mostrando que o espaço universitário aos poucos vem sendo conquistado pela população negra. Porém essa conquista gera um incômodo, um desconforto a uma população que sempre foi acostumada aos privilégios, e agora vendo este privilégio ameaçado, vendo seus espaços agora frequentados por pessoas diferentes resolvem atacar com todo o racismo e ódio as políticas de cotas. Acostumados a manipular a opinião pública, esse grupo de privilegiados conseguem até mesmo convencer a outros negros a lutarem contra as cotas, como Fernando Holiday que já mencionei em outro texto aqui.
No campo da política temos novamente uma sub-representação. Nunca tivemos um presidente negro, e o número de negros nas casas legislativas, executivas e judiciarias sempre foi inexpressivo. Na atual composição do congresso brasileiro dos 513 deputados federais menos de 10% são negros, dos 81 senadores apenas 2 são negros, entre os ministros do Supremo Tribunal Federal apenas 1 é negro, e entre os ministros do governo Temer (Fora Temer/ilegítimo, diga-se de passagem) não há nenhum negro. Diante de um número tão pequeno de representantes nem é preciso dizer que suas causas são sempre ignoradas, e suas pautas sofrem com a disparidade numérica de votos em momentos decisivos, demonstrando a existência de um abismo na disputa de poder nos espaços políticos.
Mas o racismo a moda brasileira não se manifesta apenas nas disputas de espaços físicos e de poder, mas também está no campo do imaginário e da estética, onde segundo a etnógrafa Yaba Blay “No contexto da supremacia branca, vemos que o poder funciona como hierarquia, onde o branco está no topo, associado ao belo, e a negritude, na base, associada ao que é bárbaro, negativo e feio”, O padrão de beleza vem também para delimitar espaços de representatividade e de aceitação, dificilmente você encontrará negros ocupando papeis de protagonismo em novelas e comerciais, mas com frequência os encontraram ocupando papeis de serviçais, de antagonistas ou de personagens cômicos, sendo quase sempre ridicularizados. O padrão de beleza trata de delimitar o socialmente aceitável e também o socialmente repulsivo, não à toa o imaginário popular (reforçado pela mídia) versa quase sempre em associar o negro a condutas criminosas, violentas ou de submissão. Trata também de provocar estranhamento e ódio aos negros quando estes ocupam espaços que antes não os pertencia, como ocorrido neste ano de 2017 com as frequentes manifestações de ódio e racismo na internet desferidos contra a filha adotiva do ator Bruno Galhiasso, e aos comentários raivosos e racistas desferidos contra a jovem negra eleita Miss Brasil 2017 Monalysa Alcantara. Tudo isso não acontece por acaso, o estabelecimento de um padrão de beleza que privilegia aos brancos é sobretudo uma questão política, friamente planejado para manter estruturas de privilégios sociais e estruturais.
Empurrados historicamente para a margem da sociedade, muitos recorrem a violência como única forma de sobrevivência possível. E também encontram na violência o fim de suas curtas vidas, segundo dados da Anistia Internacional com a campanha “Jovem Negro Vivo”: Em 2012, 56.000 pessoas foram assassinadas no Brasil. Destas, 30.000 são jovens entre 15 a 29 anos e, desse total, 77% são negros. A maioria dos homicídios é praticado por armas de fogo, e menos de 8% dos casos chegam a ser julgados. As favelas se transformaram em um verdadeiro “corredor da morte” do Brasil e o tráfico, as milícias e os policiais são a lei, o júri e os executores deste cenário caótico de guerra. Apesar de não permitido por lei, nas favelas a pena de morte já existe na prática há muito tempo. Mas para a mídia, o Estado e grande parte da opinião pública (influenciada pela mídia) estes fatos são naturalizados, e o descaso permanece, pois para eles não importa pois quem morre é “preto, pobre e favelado”.
Tudo isso é apenas uma pequena parcela das incontáveis manifestações de racismo que continua a acontecer em um país que insiste em dizer que o racismo acabou, infelizmente ainda estamos longe disto, e se negar a enxergar tudo isso é adiar ainda mais a possibilidade de superação desses nossos problemas prolongando o sofrimento daqueles que anseiam por uma justiça social. Se tudo que foi mencionado até aqui lhe parece injusto então estamos começando a formar uma consciência da real situação, e é exatamente para expormos essas feridas e procurarmos alternativas para saná-las que precisamos de mais dias como o dia da Consciência Negra.
Boa semana amigos! E vamos a luta...
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