Parte do Brasil não existe mais a partir do dia 28 de junho de 2021. O dia ficará marcado pela desumanidade de uma parcela considerável da sociedade brasileira que foi às redes sociais celebrar a execução de um jovem negro por forças de segurança do estado de Goiás. É evidente que a pulsão de morte não foi inventada nos tempos atuais, essa pulsão existe desde que o ser humano começou a estabelecer relação com outro ser humano. No entanto, com a consolidação das redes sociais, a pulsão de morte, o gozo pela morte fica mais perceptível.
Não vou adentrar no conceito de Freud para pensar a ideia de pulsão de morte, mas, indubitavelmente, a melhor representação do gozo pela morte está na celebração da execução de Lázaro Barbosa pelas forças de segurando do estado de Goiás. De foguetes, danças ridículas, passando por CPF cancelado, o Brasil embrutecido revela, orgulhosamente, sua face. Face que explica muto de o porquê estamos nessa situação de crise humanitária e sanitária.
Face também de um Brasil profundo, de um Brasil histórico que, apesar da resistência dos negros escravizados, naturalizou à escravidão por quase quatro séculos. A celebração pela execução de Lázaro evidencia o quanto o racismo estrutural está presente na sociedade brasileira. Racismo que não se manifesta unicamente no corpo perfurado de balas. O corpo perfurado pelas balas das forças de segurança é o resultado último e mais violento do racismo.
O racismo esteve muito presente, também, na maneira como os grandes meios de comunicação fizeram toda a cobertura da situação. Nesse sentido, é importante ressaltar que houve todo um esforço por parte da grande mídia para construir a imagem de Lázaro Barbosa como se fosse um não humano, mas sim uma coisa, um objeto que, diante da desumanização, se tornava um corpo matável. A coisificação do negro não é nenhuma novidade, esteve presente no processo de longa duração da escravidão e permanece muito atuante nos tempos atuais. O corpo matável, em um país racista como o Brasil, é sempre o corpo preto, pobre e favelado. Nessa situação, o corpo era preto, pobre e residente do sertão goiano.
A desumanização de Lázaro Barbosa por parte dos grandes meios de comunicação esteve presente na forma como foi apresentada à operação policial. Lázaro não aparecia, guardada algumas exceções, como alguém que estava sendo procurado pelas forças de segurança, mas os termos utilizados pelos/as âncoras e repórteres de telejornais para se referir ao trabalho dos policiais eram: “Caçada à Lázaro. Lázaro será capturado? Lázaro está encurralado. Lázaro é arredio na mata”. Esses e tantos outros termos utilizados pela grande imprensa foram retirando, do imaginário social, a leitura de que Lázaro era um ser humano e transformando-o em bicho, em bicho do mato. A construção imagética em torno de bicho é muito diferente de animal. Animal é um ser que merece todo o respeito, carinho e proteção. No entanto, bicho é uma coisa sem identificação, significando muita coisa e nada ao mesmo tempo.
Para viabilizar a construção da ideia de que Lázaro não era humano, não foi necessário muito esforço, afinal, diante de uma sociedade que tem no racismo estrutural uma força atuante, um dia de cobertura já seria suficiente para reforçar à violência da imagem do negro pobre associando-o com a figura do criminoso. No entanto, não foi “somente” um dia, foram mais de vinte dias reforçando e legitimando o racismo estrutural, antecipando e naturalizando o que todes que, minimamente, conhecem a realidade do país tinham a certeza daquilo que iria acontecer. A famigerada narrativa da troca de tiros, que sempre aparece para “justificar” a morte dos negros pelas forças de segurança, nessa situação, nem precisaria ser utilizada, isso porque, Lázaro, diante do racismo estrutural, estava autorizado a morrer.
Seu corpo, perfurado por balas, não causa reflexão, no sentido de indagarmos o porquê de mais de duzentos policiais não conseguirem prender um suspeito. Pelo contrário, diante do racismo estrutural e da pulsão de morte, o corpo do pobre, do preto, perfurado de balas, faz com que parte da sociedade brasileira celebre à morte.
A música de Elza Soares, A Carne, nunca foi tão atual como nos tempos atuais. Elza tem toda a razão, a carne mais barata do mercado é a carne negra. Para constatar a afirmação é suficiente, apenas, abrir alguns grupos de WhatsApp e ver o corpo de Lázaro, exposto como mercadoria, ou melhor, como coisa/objeto, perfurado de balas.
Não foi somente o corpo do jovem negro, pobre e nordestino que foi executado nesse 28 de junho de 2021. Parte da humanidade da sociedade brasileira foi junto, não existe mais. Se é que um dia existiu.
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