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Que corpo é esse?

Foto do escritor: Swelington FonsecaSwelington Fonseca


Esse texto bem que poderia ter como título "Um senhor chamado rentismo parte 2", pois estaremos partindo exatamente de onde parou o texto da semana passada. Mas, apesar de partirmos da discussão do rentismo a reflexão de hoje busca discutir em essência os sujeitos que fazem parte desta nova fase do capitalismo. Sujeitos que se manifestam com novas características, novas demandas e novas formas de atuação, se materializam na forma de corpo em um mundo de intensa individualização.


Como já mencionamos no texto anterior, o capitalismo é um sistema que aprendeu ao longo de sua história a conviver com as crises e a superá-las sempre buscando sua própria reprodução. Sendo assim, a cada momento da história o capitalismo soube identificar os obstáculos que surgiam na estrada do lucro, e através de suas estratégias souberam enfraquecer e subjugar estes obstáculos. Ao longo da história, o capitalismo enfrentou como o principal empecilho em sua caminhada a oposição dos movimentos operários. Foram as greves, as ações sindicalistas e a força do coletivo de trabalhadores que impediram os sempre devoradores avanços do lucro sobre a exploração da mão de obra. Assim, em sua fase avançada o capitalismo rentista, percebeu que a união dos trabalhadores era um empecilho a ser eliminado do caminho. A coletividade precisaria ser desfeita, e em seu lugar se fez necessário construir uma individualização, baseada na competitividade.


A nova divisão internacional do trabalho fragmentou o processo produtivo fisicamente, buscando alavancar os lucros, buscou os espaços onde fosse encontrada a matéria prima e a mão de obra mais barata possível, e também o melhor escoamento da produção para os mercados mais rentáveis. Em vários lugares do planeta o trabalho se precariza a níveis análogos a escravidão, o desemprego se expande e atinge uma grande parcela da população em quase todos os países, fazendo com que a busca de um emprego se torne também uma luta por sobrevivência. Tudo isso cria as condições necessárias para a fragmentação ideológica dos trabalhadores, junta-se a escassez de emprego, a demanda de uma exigência cada vez maior por qualificação para as vagas disponíveis e a exigência social de um padrão de sucesso baseado no consumo, para construir uma rivalidade intensa entre trabalhadores.


A ideologia de classe dos tempos das primeiras revoluções industriais se dissolve, e o trabalhador passa a ver o outro como concorrente, um rival que a qualquer momento pode se transformar em uma ameaça ao seu posto. O acúmulo de dividas advindas dos financiamentos e créditos de consumo comprometem o salário a longo prazo aumentando ainda mais a dependência do trabalhador em relação a manutenção de seu cargo. A ideologia corporativista surge como a cereja do bolo da ruptura das relações de trabalho, induz a uma falsa percepção de que os interesses da empresa são os mesmos interesses do trabalhador. Para manter seu emprego ou almejar uma ascensão na hierarquia da empresa o trabalhador se transforma em um fiscal das ações de seus colegas. Assim, o potencial de união, manifestação e greves se extinguem quase por completo.


A urbanização também trouxe novos elementos que colaboraram para a individualização dos sujeitos, a metropolização dos grandes centros e o encurtamento do tempo, achatado entre horas de trabalho, trânsito, e cursos de aperfeiçoamento, reduziram o tempo das relações pessoais, a pressa e o que rege as interações nesta nova estrutura, não e de se espantar que nossa sociedade atual tenha tanta dificuldade para ouvir e entender o outro. Com a metropolização emerge também a nova forma de expressão social, a saber a ostentação do consumo como prioridade principal das relações humanas. "A metropolização é o chão dessa emergência, o horizonte que abre para a ideologização dessa vez do consumo e fonte constante da colisão entre novos sujeitos e rentismo. Metrópole, convertida num grande templo de mercado" (MOREIRA, 2016 p. 127).


Neste quadro, a metrópole promove a diversificação dos sujeitos estimulando a manifestação de diferentes estilos, e grupos que possuem diferentes demandas. Porém essa é uma via de mão dupla, por um lado a diversificação e afirmação dos sujeitos promove a expressão das singularidades pessoais, dando voz a grupos que antes eram esquecidos, como mulheres, negros, lgbts e etc, por outro lado o rentismo se aproveita das singularidades como estratégia de expansão do consumo, produzindo mercadorias que que agrade a cada uma das singularidades, onde tudo é movido pelo comércio e pelo o endividamento, há roupas, músicas, comidas e lugares para todos os gostos. Mas essa via de mão dupla é um risco calculado para o rentismo, pois, sabendo que a metrópole possibilitou uma emancipação dos sujeitos dando a eles poderes de atuação social e política, o rentismo provoca um entorpecimento dessa percepção coletiva de cidadania política, substituindo-a pela cidadania do "cidadão consumidor, abrigado no direito econômico, mas desabrigado no direito político (Santos, 2007).


O despertar dessa consciência política dos sujeitos, talvez se apresente a nós como uma nova força de resistência às ações do rentismo. O antigo movimento operário já não possui mais forças como antes, os sindicatos se transformaram em sindicatos corporativistas que pouco atuam na defesa dos direitos, todos esses movimentos também ao longo dos anos pouco se atentaram a resolver as demandas dos grupos minoritários. O novo espaço urbano juntamente com as novas tecnologias da informação tem proporcionado a essas minorias o poder de expressão jamais visto até então, mesmo com o enfraquecimento das instituições enrijecidas e ultrapassadas, os indivíduos tem se levantado e se manifestado na forma de corpos políticos atuantes. 


As mulheres são um grande exemplo dessa nova forma de atuação política corpórea individual, mesmo não pertencentes a nenhum movimento institucionalizado é crescente o número de mulheres que se auto afirmam como feministas, e que através de sua atuação pessoal, seja na forma de vestir, na superação de tabus sexuais, na luta pelo mercado de trabalho ou na desconstrução de discursos machistas, essas mulheres tem provocado significativas mudanças nas estruturas de nossa sociedade.  São uma força poderosa de mudança, assumindo o discurso que por muitos anos foi ignorado por instituições, governos e empresas. Provocando mudanças reais em nosso cotidiano no enfrentamento ao machismo.


A emancipação dos indivíduos aos poucos tem despertado questões importantíssimas e transformado vários cenários nos campos de gênero, etnia, trabalho e outros. Hoje questões como racismo, homofobia, religiosidade e machismo, são discutidas por pessoas em todos os cantos das cidades, em meio a uma multidão de entorpecidos os corpos conscientes se levantam e gritam: "Hey, estamos aqui e queremos ser ouvidos! Somos gente!" E isso é muito poderoso! 


A estratégia do rentismo ao tentar dividir os movimentos de oposição ao seu desejo por lucros, funcionou, conseguiu nos lançar em uma condição de submissão e de impotência enquanto instituições, mas também nos abriu a possibilidade de um contra golpe, nos deu a oportunidade de perceber nossas diferenças, de nos identificarmos enquanto sujeitos e corpos em um mundo plural. Cabe a nós dar o passo seguinte, e perceber que as nossas diferentes demandas também podem ser nosso elo de união na construção de uma cidadania realmente coletiva e democrática. Somos todos corpos diferentes, mas também somos todos um só corpo "...pedindo o encontro equivalente do sujeito universal, o sujeito que para emancipar-se a condição é emancipar consigo todos os demais segmentos de dominados, num tempo urbano diferenciado de sujeitos" (MOREIRA, 2016). E respondendo a pergunta do título, que corpo é esse? É aquele que ainda resiste.


Boa semana meus amigos!

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