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SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: O AUTOCONTROLE E A AUTOVIGILÂNCIA COMO PRODUTOS DA VIRTUALIZAÇÃO*

Foto do escritor: Jean CarlosJean Carlos


A sociedade contemporânea é marcada por um acelerado processo de transformação e mudança, não somente no aspecto da materialidade (coisas, objetos, redes técnicas, fluxos, capital etc.), mas, também, no aspecto da imaterialidade (comportamento, hábitos, ideias, conduta, pensamento, etc.). Esse acelerado movimento de mudança, vem alterando drasticamente o modelo pelo qual nos posicionamos no mundo, assim como o percebemos, o concebemos e o vivemos (para fazer referência ao tripé nietzschiano).


Quando nos referimos a mudança e transformação, queremos dizer que nem tudo muda de forma absoluta e tão pouco por completo ou de modo unívoco. Estamos querendo dizer que, de maneira muito diversa e complexa, a sociedade contemporânea tem apresentado um processo de intensa simbiose de elementos de tempos passados (referências espaciais, temporais, questões de classe, etc.) e elementos recentes (alto nível tecnológico, virtualização da vida cotidiana, etc.). Esse princípio de mudança-transformação, marca registrada de nosso tempo, é objeto de debate entre aqueles que defendem a permanência absoluta de valores da modernidade (razão, técnica, centralidades/referências, mundo fixo, estático, etc.) e aqueles que defendem um mundo pós-moderno (sem referências, fluído, dissolvido, híbrido, dissipado, etc.). É bem verdade que também existem aqueles que preferem ficar com um “meio-termo” (entre a modernidade e a pós-modernidade), reforçando sempre que o mundo e o tempo vivido são resultados de processos e elementos oriundos das duas percepções.

Neste texto, defendemos uma ideia de uma simbiose entre aspectos da modernidade e pós-modernidade, conforme alguns autores, como Bauman (1999), Deleuze (1992), Haesbaert (2006), Negri e Hardt (2001), Lévy (1999), entre outros. Para tanto, traremos para a discussão um tema que é sintoma característico do modelo da modernidade, tanto quanto da pós-modernidade, a saber, a sociedade disciplinar e a sociedade de controle. Destacaremos como hoje, na vida cotidiana, somos controlados e disciplinados por toda a materialidade e imaterialidade da tecnologia (virtualização) e também como somos “adestrados” (de forma camuflada e sutil) por um controle que se torna ulterior, interno e até mesmo introjetado de modo subjetivo. Elementos que são, em última instância, essência de um capitalismo que se molda às conjunturas e às estruturas do tempo-espaço, com novas estratégias de reprodução e acumulação.


Segundo o filósofo Gilles Deleuze (1992), a sociedade contemporânea tem sido dominada e “controlada” cada vez mais pela “marca” e pelo “número”. Ele enfatiza que, para além da “marca” e do “número” (referências quantitativas e valorativas), o que realmente importa agora são as “senhas”, isto é, a linguagem numérica do controle é feita de cifras (códigos) que marcam o acesso à informação, ou a rejeição. Em outras palavras, o binômio massa-indivíduo é substituído por amostras, dados, pelo mercado, pelos bancos, etc. Isto é, cada vez mais, a sociedade contemporânea tem apresentado suas referências na virtualização da vida cotidiana, tendo como valor absoluto e relativo a sua quantificação.


Para Michel Foucault (1991), a sociedade moderna é uma sociedade disciplinar por oposição às sociedades propriamente penais, anteriormente dominantes, consolidando assim “a idade do controle social”. A mencionada sociedade disciplinar, cujo processo de instauração se efetivou no transcurso do século XIX para o século XX, segundo Foucault, individualizava a vigilância, o “confinamento” e a própria punição. A introspecção do controle e do estado de vigia foi resultado das reformas liberais que marcaram as rupturas com o Antigo Regime e consolidou um Estado-Nação, assentado no princípio da igualdade civil e dos direitos individuais (são exemplos desse processo as revoluções inglesa e francesa, respectivamente).


A grande questão é que, com o avanço da tecnologia, o advento da rede mundial de computadores (internet) e a consolidação do ciberespaço no contexto da dita pós-modernidade (conceito caro a alguns), o controle social passou a ser exercido não mais pelo princípio panóptico (de ver sem ser visto), e sim pelo princípio sinóptico (de muitos vigiando poucos). No lugar da torre de vigilância em que os detentos não conseguem ver o vigia, mas têm a sensação de estarem sendo vigiados, temos agora a profusão do controle vinculada à parafernália tecnológica, quer seja pelo antigo princípio de poucos vigiando muitos (substituindo-se até mesmo a figura do vigia ou do “guarda” pelos computadores), por meio de câmeras onipresentes que nunca sabemos exatamente onde estão.


Para Bauman (1999), que defende uma sociedade dita “pós-moderna”, caracterizada pela sua liquidez nas relações sociais, da política, da economia, do estado e das instituições, o ato de vigiar desprende o vigilante de sua localidade, pois transporta-o ao ciberespaço, no qual não mais importa a distância, ainda que fisicamente permanecem no lugar. Onde quer que esteja e onde quer que vá – o vigilante – está agora imergido na rede extraterritorial que faz muitos vigiarem poucos. Isto quer dizer que o sinóptico (processo de controle social pelo aparato tecnológico) não precisa de coerção, justamente porque ele seduz as pessoas à vigilância e, no limite, à autovigilância.


Dessa forma, as imagens que são geradas através das câmeras de segurança, filmando regularmente os indivíduos (“sorria, você está sendo filmado”), têm por objetivo “mapear” e, assim, controlar os espaços de circulação. E no interior desse controle subjetivo, dissimulado e sutil, conforme ressalta Haesbaert (2006), o objetivo último é sempre controlar corpos e mentes, os quais não existem sem o elo indissociável entre materialidade e imaterialidade. É neste contexto que surge a “biopolítica” foucaultiana, um poder ou tecnologia soberano e regulador da vida e das massas que se sobrepõe ao poder ou tecnologia disciplinar dos corpos. Nesse sentido, conforme ficou explícito, o controle e a disciplina se moveram, muito sutilmente, do indivíduo (do homem-corpo) para a massa/população (homem-vivo, homem-espécie). Não por acaso, Foucault passou em revista a concepção de “corpos-dóceis”, no seu sentido individual. Agora, o que se percebe muito explicitamente é uma sociedade regida por uma nova tecnologia que se dirige à multiplicidade dos homens, mas na medida em que ela forma (ao contrário da ideia de controle dos corpos-indivíduos), uma massa global afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença etc. Ou seja, uma “biopolítica” da espécie humana.


De acordo com Negri e Hardt (2001), os comportamentos de integração social e de exclusão próprios do mando são cada vez mais interiorizados nos próprios súditos (leia-se: indivíduo/massa). O poder, em seus diferentes níveis, agora é exercido mediante máquinas que organizam diretamente o cérebro (em sistemas de comunicação, redes de informação etc.) e os corpos (em sistemas de bem-estar, atividades monitoradas etc.). O objetivo dessa “máquina” de controle social é a implementação constante de um estado de alienação independente do sentido da vida e do desejo de criatividade. Para tanto, a indústria cultural, os meios de comunicação de massa, as mídias digitais, os sistemas financeiros informatizados, a inteligência artificial, são alguns exemplos de coerções e controles do indivíduo/massa que determina comportamentos e molda nossas relações cotidianas.


Na definição de Lévy (1999) o ciberespaço – que ele também denomina de “rede” – é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. Na acepção do autor, o termo especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também a constelação de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam essa constelação. Ao determinar o ciberespaço, o autor chega a evocar outro conceito, o de “virtualização”, produto que seria desse mundo cada vez mais dominado pelos “sistemas”, “programas” e “códigos”. Para ele, uma das principais modalidades da virtualização é, assim, o despreendimento do aqui e agora, ou seja, o virtual, com frequência, não está presente, o que provoca constantes confusões entre o virtual e “irreal”.


É importante ressaltar que Lévy (1999) não dissocia ou impõe uma oposição que fosse binária entre o “virtual” e o “real”. O autor, inclusive, critica quem lança mão desse princípio, que segundo ele, nega o movimento pendular do virtual e do real, e vice-versa. Dessa forma, a virtualização, assevera o autor, não é (e nem deve ser) considerada uma “desrealização”, mas uma mutação de identidade, um deslocamento do centro de gravidade ontológico do objeto e do real. A virtualização é um dos principais vetores da criação de realidade.


O que fica evidente, a partir dos pressupostos de Lévy (1999), é que não podemos cair na armadilha de desconsiderar (ou mesmo negar) a realidade concreta (e tudo que ela implica, como questões estruturais e conjunturais) e elevar o virtual como valor absoluto, simplesmente porque nossa sociedade se encontra cada vez mais imergida no ciberespaço. Depreende-se, contudo, que é preciso levar em consideração o aspecto simbiótico dessa relação pendular entre “virtual-real” e “real-virtual”, onde um influencia o outro, em constante frenesi.


Um dos exemplos mais contundentes dessas novas formas de sedução à vigilância nas ditas sociedades de controle, é aquele proporcionado por meio do teletrabalho[1] (ou também conhecido por Home Office). Nele, o controle do trabalhador, que pode desenvolver suas tarefas na própria residência[2] e a qualquer hora, insere-se na substituição do estrito controle do seu tempo-espaço (marca registrada das sociedades disciplinares, conforme Foucault), pela introjeção da autovigilância, uma espécie de “autocontrole” definido simplesmente em função dos resultados ou metas estipuladas pela empresa. Em outras palavras, “autocontrole” e “autovigilância” como mecanismos velados de conformação dos corpos (“corpos dóceis”), de coerção sutil na forma de autoprodutividade e autopunição.


Verifica-se, portanto, a simbiose a que Lévy (1999) se refere entre o ciberespaço (que “virtualiza” nossas relações, mas também recria o real sob novas bases) e a realidade. No exemplo do teletrabalho, temos um trabalhador que corporifica e reintrojeta em si mesmo o controle, a disciplina e a vigilância. Mesmo sem estar no espaço físico da empresa, sem estar sob os olhos do chefe, do supervisor ou do gerente (e do constrangimento que esse olhar-vigilante causa, com objetivo de “adestrar” o corpo-indivíduo-massa), estando ele no conforto de sua residência, a sua atividade (que é uma atividade precarizada, digamos honestamente) passa a ser uma lógica uterina e introspectiva[3]. É como se a figura coercitiva e adestradora do chefe, do gerente e do supervisor (para ficarmos apenas nestes exemplos) estivesse agora introjetadas e ressignificadas no trabalhador, que internaliza a vigilância e o controle (que antes eram extemporâneos), para externalizar produtividade.


Na esteira desse raciocínio, a produtividade é um dos aspectos mais importantes para entendermos a “psicologia” do capital. Ao entronizar a vigilância e o controle de si, o indivíduo-massa reproduz o ciclo de acumulação de capital proveniente da mais-valia, uma vez que passa agora a se tornar, ele próprio, chefe, gerente, supervisor e trabalhador a um só tempo. Ao tornar “flexíveis” e descentralizadas as posições de poder e as hierarquias dos indivíduos no seio da produção/reprodução do capital, ao torná-las cada vez mais dissimuladas e veladas, o capital cria e recria (em um movimento, como já o dissemos, pendular) elementos psicóticos (para brincar com as palavras) que exercem sob o indivíduo-massa uma pressão (que não deixa de ser uma coerção, em sentido estrito) no que se refere às suas atividades, tarefas, comportamentos e hábitos. E como se ele (o indivíduo-massa), imaginando estar “livre” das referências fixas de vigilância e controle, que Marx brilhantemente analisou no século XIX, pudesse obter determinada autonomia, o que não é verdade, já que a única condição que mudou foi o espaço físico (e transitório) e as ditas referências que se diluíram no interior da acumulação de capital.


No limite, não se pode esquecer do fato de que a autovigilância e o autocontrole só se reproduzem e se tornam parte de nossa maneira de agir no mundo de hoje, por meio da Indústria Cultural (jornais, revistas, programas de TV, cinema, rádio, redes sociais, etc.). Diríamos mais. Sem a influência no comportamento e nas formas de pensar difundidas pela Indústria Cultural, em uma sociedade como a nossa, a produção/reprodução subjetiva da vigilância e do controle não teriam efeito direto e exitoso. Isso não significa dizer que as referências e os pontos “fixos” da acumulação de capital tenham desaparecidos. Apenas estão, no mundo de hoje, cada vez mais descentrados e velados, dissolvidos em um espaço-tempo marcado por novas referências e territorialidades, como define Haesbaert (2006).


Os referenciais do “chefe”, do “gerente” e do “supervisor” ainda continuam (e continuarão) a existir. O que queremos dizer é que esses referenciais estão hoje sob novas bases materiais e imateriais. Encontram-se hoje difundidos e entronizados na forma de um capitalismo flexível/informacional cada vez mais selvagem. O processo de virtualização, o qual já aludimos acima, vem se tornando[4] uma referência do processo de “mundialização” do capital, nos termos de Milton Santos (2003)[5].


De igual modo, em uma velocidade cada vez mais intensa e frenética, os processos de precarização do trabalho e desmonte de legislações trabalhistas tem se tornado a tônica dessa nova era (marcada pelo Neoliberalismo) que vivenciamos. Em uma sociedade como a nossa, o controle e o domínio dos meios de comunicação de massa, da Indústria Cultural e da tecnologia dão a tónica de quem exerce o poder político e econômico, em diferentes níveis e escalas. É claro que aí estão os agentes do capital, as grandes empresas e corporações multinacionais.


Ao nível de uma forma de poder exercido por meio da introjeção do controle e da vigilância no indivíduo-massa, o entendimento das novas bases em que este poder se estrutura é algo fundamental. Apesar de muitos terem afirmado que a História chegaria ao fim[6], a possibilidade de resistência, de fuga e transformação social perpassa à disputa pela democratização dos processos de virtualização, no qual o ciberespaço é ambiente e ferramenta imprescindíveis.





Referências


BAUMAN. Zigmunt. Globalização: as consequências humanas. São Paulo: Jorge Zahar, 1999.


HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 2ª ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2006.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete, 42. Ed, Petrópoles, RJ: Vozes, 2014.


LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.


LIMA FILHO, José Sarto Fulgêncio de; BRASIL, Ana Larissa da Silva. O conceito legal de teletrabalho e suas repercussões nos direitos do empregado. 2019. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/Rev-Juris-UNITOLEDO_v.4_n.1.08.pdf. Acesso em: 09 jul. 2022.


NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Império. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2001.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.



Notas:


[1] A origem do termo não é precisa. Silva e Brasil (2018) afirmam que a etimologia da palavra deriva do prefixo grego tele (que remete à ideia de “longe”, distante”) e do vocábulo trabalho, proveniente do latim tripalium (que remonta a uma peça de madeira usada para prender bois pelo pescoço e ligá-los a um arado). A respeito do significado, os autores enfatizam que o teletrabalho se caracterizada pela descentralização das atividades desenvolvidas na sede da empresa, independentemente de onde seja realizada. Os autores pontuam ainda para não confundirmos teletrabalho com “trabalho remoto”, “trabalho a distância”, entre outros. Vale lembrar que no caso do Brasil, o teletrabalho foi normatizado pela Lei nº 13.467 de 13 de Julho de 2017, no bojo da Reforma Trabalhista. [2] Nesse caso, as atividades laborais também podem ser realizadas em outro espaço físico que não o da residência (hotéis, pousadas, aeroportos, etc.) e, no limite, feito até mesmo em trânsito, como no avião, metrô etc. [3] É quase impossível não mencionar a literatura de autoajuda como a nova pedagogia do capital. Ela (a autoajuda) é um exemplo tácito dessa psicologia esquizofrênica que delega ao indivíduo/massa a responsabilidade por tudo que acontece (com você e comigo), mesmo sem levar em conta as contingências e o acaso que nos afetam. [4] Utilizamos a expressão “...vem se tornando...” por entender que o processo de virtualização não está encerrado, uma vez que ele (o processo de virtualização) se define por ser um movimento contínuo e que se refaz continuamente. [5] O autor utiliza a expressão “mundialização” que corresponde à globalização. [6] Faz-se alusão à obra de Francis Fukuyama O Fim da História e o último homem, publicado originalmente em 1992. Fukuyama afirmava que a História chegaria ao seu fim, uma vez que o Comunismo havia sido derrotado com o fim da União Soviética e, que, portanto, com o triunfo do Capitalismo (especialmente o norte-americano) os movimentos de contestação não mais representariam uma possibilidade de mudança social e política. Tese que, como vimos, não se concretizou.



Observação:


*O título original é: "SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: O AUTOCONTROLE E A AUTOVIGILÂNCIA COMO PRODUTOS DA VIRTUALIZAÇÃO DO INDIVÍDUO-MASSA"

O título não pôde ser transcrito na integra por limitações de caracteres para os títulos.


1 Comment


Claire Losterbien
Claire Losterbien
Jun 12, 2024

Leitura interessante! Djamila name

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