top of page

Todo dia é dia de Índio



O título do texto é uma (re)apropriação da belíssima música “Todo dia era dia de índio”, interpretada por Baby Consuelo. A letra faz uma crítica ao pensamento social voltado aos indígenas, quando pensam as vivências das etnias somente no dia 19 de abril, considerado no calendário nacional/americano como dia do índio.


Particularmente acredito ser importante ter pelo menos um dia, no âmbito nacional, para à reflexão em torno das situações de vivência e convivência das minorias desassistidas do estado, e da sociedade brasileira. O ideal, evidentemente, é que todo dia fosse dia de índio, mas infelizmente essa não é a realidade do país em que vivemos.


A trajetória dos povos indígenas é marcada pela violência, opressão, segregação, genocídio e preconceito de todas as vertentes. Mas as diferentes trajetórias podem ser entendidas por meio da resistência. Sobre as situações de violência é importante entende-la como algo construído, representado e praticado por parte das camadas dirigentes.


Talvez o leitor/a possa entender que a construção da trajetória se refira ao passado. Se assim for, não está de todo equivocado/a, no entanto, não somente ao pretérito que à descrição se refere, mas também ao tempo presente. Nesse sentido, as comunidades indígenas continuam enfrentando dificuldades para sobrevivência, reconhecimento de identidade, e garantia de direitos.


Diante das dificuldades enfrentadas ontem e hoje, ter uma data, não comemorativa, mas reflexiva para retratar as diferentes trajetórias é fundamental. Porém, “mais um dia do índio” se passa, e perdemos, enquanto sociedade, à oportunidade para fazer a necessária reflexão, principalmente nos espaços escolares. Assim, o que poderia ser um momento único de análise, e consequentemente de aprendizagem, foi utilizado, mais uma vez, para reforçar os estereótipos, relativizando e naturalizando o cotidiano das comunidades indígenas no Brasil.


Tive à oportunidade de acompanhar inúmeras fotos pelas redes sociais de variados espaços escolares pintando os rostos das crianças, enfeitando-as com “apetrechos” entendidos como “característicos” dos indígenas. Quando se pinta rostos, coloca pena na cabeça e outros adereços, transmite-se a mensagem de que aquele é o padrão correto do indígena, seu espaço natural, seu modo de vida, sua vestimenta padrão, e que todos os valores distantes dessa categorização estão errados.


Na prática, o que essa forma de representação significa? Antes de responder, é importante ressaltar que toda representação é, por si só, opressora, como apresenta Roger Chartier (2002). Assim, a tentativa de reproduzir, o que acreditam ser a “vestimenta” dos indígenas é crucial para construir no imaginário das crianças a ideia da padronização, ou seja, reforçando a leitura de que “índio é tudo igual”.


A padronização por meio das vestimentas, além de negar as diferenças socioculturais, idealiza e reproduz o senso comum que interpreta as comunidades indígenas como pertencentes somente ao passado. Diante da força das representações, principalmente no universo infantil, a criança terá dificuldade para respeitar as identidades indígenas fora do padrão que está sendo ensinado para ela. Não é fortuito o fato de indígenas terem muitas dificuldades para afirmarem suas identidades fora dos “padrões” estabelecidos pela sociedade.


Por exemplo, em Goiás sobrevivem três etnias indígenas, Os Tapuios do Carretão, ocupando o território entre a cidade de Morro Agudo e Rubiataba, os Karajá, etnia localizada nas proximidades do Rio Araguaia no município de Aruanã, e também a comunidade dos Avá Canoeiro, localizada entre os municípios de Uruaçu, Minaçu e Colinas do Norte. As três etnias possuem elementos culturais comuns, mas também historicidades únicas, com valores, crenças, manifestações culturais e simbólicas específicas de cada comunidade.


A padronização endereçada aos indígenas trouxe inúmeras dificuldades para Os Tapuios do Carretão, quando foram interpretados até poucas décadas atrás como não indígenas. O não reconhecimento, tanto oficial, quanto social, veio da leitura distorcida, embora carregada de interesses, de que os Tapuios, por se distanciarem dos padrões idealizados de indígenas, com destaque para a vestimenta, não eram índios. Diante da dificuldade, a etnia teve que resistir para conseguir afirmar sua identidade indígena. Os exemplos nefastos da padronização estão muito próximos.


No “dia do índio”, em detrimento da reprodução dos estereótipos, seria muito mais salutar se às escolas fizessem convites para representantes indígenas comunicarem com os estudantes, quando poderiam falar de seus valores culturais, da historicidade de seu povo, das dificuldades enfrentadas no cotidiano, das alegrias, festas, simbologias, do processo de resistência, das ressignificações socioculturais e outras questões pertencentes a etnia. Assim, os espaços escolares contribuiriam para a diminuição das dificuldades, dos preconceitos e estereótipos que as comunidades indígenas enfrentam cotidianamente.


É provável que a intenção das escolas seja aproximar às crianças dos valores culturais dos indígenas. Diante dessa intenção, adornam os jovens estudantes com apetrechos que consideram típicos. No entanto, em vez de contribuírem para o reconhecimento e respeito às diferenças, parte das escolas acabam reforçando e legitimando as diferentes formas de opressão.


A violência se manifesta de várias maneiras, e a relativização, concomitantemente com a negação, intencional ou não, das diferenças, continua produzindo e reproduzindo a violência simbólica que, ao longo do processo histórico, tem ceifado inúmeros valores culturais presentes no Brasil. As escolas ao tentarem aproximar às crianças das comunidades indígenas acabam, infelizmente, afastando-as. Somente se aproxima quando se conhece, reconhece e respeita as diferenças.


Nesse quesito, parte das escolas brasileiras, em vez de construírem novos conceitos, optam pela valorização dos preconceitos.


Abraço e boa semana para vocês!.

72 visualizações

コメント


bottom of page