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Um vírus da geopolítica: por que o novo coronavírus causa tanto alarde?


O Covid-19, mais conhecido como novo coronavírus, é um vírus da globalização. Revela a expressividade das redes, as conexões mundiais e os fluxos da economia globalizada. Foi identificado pela primeira vez na cidade chinesa de Wuhan, em dezembro de 2019. Dois meses depois, o vírus já havia se espalhado por vários países do mundo, como mostram as manchetes de periódicos de distintas nacionalidades.


Na mídia regional não é diferente. Seja nas rádios, TV’s, jornais impressos ou digitais, o alarde acompanha os resumos das maiores agências de notícias globais. No último dia 13 de março, o governo dos Estados Unidos declarou estado de emergência no país e anunciou medida que permite o executivo utilizar 50 bilhões de dólares para combater o vírus.


Essa mobilização em escala mundial contra o que a Organização Mundial da Saúde (OMS) já considera como pandemia, suscita uma análise que passa por três questões fundamentais. A primeira diz respeito à natureza biológica do vírus. A segunda, ao modo como o Covid-19 é divulgado e assimilado no contexto social. A terceira possui um caráter geopolítico – ou seja, ao modo como o vírus e sua repercussão são utilizados pelas corporações para tramar estratégias de poder e alcançar objetivos econômicos.


Estudos já comprovam que a mutação do vírus ocorre mais lentamente do que seus similares identificados em 2002 também na China, quando ficaram conhecidos como vírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars). Naquela ocasião, contudo, apenas 38% da população chinesa vivia em cidades. Atualmente passou de 60% (BANCO MUNDIAL, 2020).


Em 2002, o PIB chinês, conforme dados do Banco Mundial (2020), era de 1,4 trilhão de dólares e representava pouco mais de 4% da economia mundial. Em 2019 o país registrou PIB de 14 trilhões e sua participação na economia mundial saltou para 18,7% (CASTRO, 2019).


O fluxo de pessoas, negócios, produtos e decisões entre a China e o mundo, aumentou de maneira significativa nos últimos dezoito anos. Trata-se de um novo contexto da economia mundial, o que torna o Covid-19 um vírus urbano e global.


Apesar da rápida expansão, a taxa de mortalidade desse agente, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), é baixa, uma vez que corresponde a apenas 3,4% dos infectados. Pessoas idosas, especialmente com idade acima de 80 anos – além daquelas com outras complicações de saúde, estão mais vulneráveis. Entretanto, conforme estudo assinado por Fauci, Lane e Redfield (2020), se se presume que o número de casos assintomáticos ou que apresentam sintomas mínimos é consideravelmente maior que o número de casos relatados, a taxa de mortalidade tende a ser menor.


À vista disso, por que o Covid-19 tem causado tanto alarde? Obviamente que trata-se de uma epidemia que merece atenção de toda sociedade e uma eficiente resposta dos sistemas de saúde. Mas o pânico generalizado guarda relação com a segunda questão mencionada anteriormente: o modo como o vírus é divulgado e assimilado no contexto social. A repercussão do problema tem sido “contaminada” pela desinformação programada, pelas fake news e pelo pânico generalizado – o que desemboca em teorias da conspiração e traz sérios prejuízos às estratégias de contenção e de quebra da rede de transmissão do vírus. A loucura da informação, por um lado, tende a alimentar um colapso nos sistemas de saúde. Por outro, termina por naturalizar um discurso que salvaguarda o apoio aos mercados em detrimento de ações efetivas voltadas aos grupos mais vulneráveis.


Outro ponto a ser considerado é o fato do coronavírus não poupar os ricos. Em muitos países, aliás, o Covid-19 chegou de avião, hospedado em viajantes (muitos sendo executivos) que contraíram o vírus no exterior. Nos Estados Unidos, a emergência só foi declarada depois que políticos e famosos foram infectados. Se o vírus da globalização revela a fluidez das redes, revela também o sentido de classe das medidas governistas. Não há registro, por exemplo, de medidas similares para conter doenças que se restringem aos pobres. A fome é um caso ilustrativo porque, apesar de matar milhares de crianças em todo o mundo, não sensibiliza as agências de notícia e muito menos as autoridades nacionais.


Conforme relatório da FAO (2018), uma a cada nove pessoas no planeta foi vítima da fome nos últimos anos. O relatório também mostra que aumentou o número de pessoas nessa condição, saltando de 815 milhões em 2016 para 821 milhões em 2017. No Brasil, mais de 6 mil pessoas morrem ao ano por complicações decorrentes de desnutrição (CAMBRICOLI, 2019). Essa realidade, contudo, não motiva medidas de emergência porque não alcança os palácios. A fome não é um vírus, é uma política – aquela que estoca, que lucra, que manipula, que controla.


No que tange ao coronavírus no Brasil, as medidas anunciadas pelo governo demonstram preocupação muito mais voltada ao regime econômico do país do que ao princípio da saúde coletiva, ainda que existam importantes instituições de pesquisa e um sistema de saúde universalizado. Também não há, até o momento, uma ação efetiva (e preventiva) para atender os grupos mais vulneráveis.


Por fim, a terceira questão diz respeito ao caráter geopolítico ou ao modo como as corporações se apropriam da epidemia (ou do que ela causa na economia) para forjar rearranjos. Nesse ponto, o alarde tem um fim específico, bastando imaginar o montante de recursos públicos que serão destinados às indústrias farmacêuticas e aos laboratórios privados – mesmo que pesquisas para produção de vacinas ou prescrição de tratamentos sejam feitas em boa medida por instituições públicas.


Mas os recursos também serão despejados nos bancos, nas companhias aéreas e noutros setores “afetados” pela crise do vírus. Há, portanto, uma geopolítica que se rearranja com a queda na taxa de lucro geral e se estende a outros ramos da economia, a exemplo das fontes energéticas, do capital rentista e do mercado cambial. Essa geopolítica se retroalimenta de ativos públicos e deixa os Estados ainda mais reféns da trama corporativa. A justificativa para os repasses estará no ar, nas mentes e no pânico. Nesse ponto, nenhuma novidade. Afinal, se o vírus da hipocrisia revela o sentido de classe dos governos, o vírus da geopolítica revela a perversidade da ordem global, a dissimulação das grandes agências de notícias e o verdadeiro sistema de pilhagem praticado pelas corporações, custe o que custar.


Referências:


FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura. El estado de la seguridad alimentaria y la nutrición en el mundo. Fomentando la resiliencia climática en aras de la seguridad alimentaria y la nutrición. Roma: FAO, 2018. Disponível em http://www.fao.org/3/I9553ES/i9553es.pdf (acesso: 14 mar. 2020).


CASTRO, José Roberto. Como está a participação nacional no PIB mundial. Nexo, 26 abr. 2019. Disponível em: https://bit.ly/39Qsyoz (acesso: 14 mar. 2020).


BANCO MUNDIAL. China. Disponível em: https://data.worldbank.org/country/china (acesso: 14 mar. 2020.


FAUCI, Antony; LANE, H. Clifford; REDFIELD, Robert R. Covid-19 – Navigating the Uncharted. The New England Journal of Medicine, 28 fev. 2020. Disponível em https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMe2002387query=recirc_curatedRelated_article (acesso: 14 mar. 2020).


CAMBRICOLI, Fabiana. Apesar de descrença de Bolsonaro sobre fome, País tem 6 mil mortes por ano por desnutrição. O Estado de S. Paulo, 19 jul. 2019. Disponível em https://bit.ly/2QvWD5d (acesso: 14 mar. 2020).


*Denis Castilho é doutor em geografia e professor do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás.


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