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Uma crítica às críticas de Ciro Gomes


Os próximos passos políticos no Brasil, e tudo que o conceito engloba, dependem diretamente de como a esquerda partidária conseguirá entender o fenômeno do embrutecimento social, neofascismo, criando condições para enfrentá-lo. É isso, a esquerda ainda não conseguiu compreender o que se passa no país, principalmente porque entende o fenômeno como algo exclusivo do Brasil, desconsiderando o “mundo ocidental”, também envolto com projetos políticos parecidos. Para ficar em poucos exemplos, Erdogan e o seu poder na Turquia, Orbán representando o movimento ultradireitista na Hungria, Salvini ainda é uma força considerável na Itália, Trump e a xenofobia nos Estados Unidos, Piñera e o neoliberalismo autoritário no Chile, Bolívia e o golpe de estado contra Evo Morales, apego ao poder e miséria social na Venezuela ocasionada pelo péssimo governo de Maduro, assim como tantos outros exemplos.


A intenção não é adentrar nas especificidades de cada modelo de governo elencando acima, mas somente o fato de atestarmos a existência desses e de tantos outros evidencia o seguinte; Bolsonaro, e tudo que representa, dificilmente será entendido, enfrentado e derrotado se observado como fenômeno isolado. No entanto, perceber a sintonia do governo brasileiro com outros governos neofascistas não significa compreender o fenômeno nacional como semelhante aos demais. Porém é importante entender que o “mundo ocidental” flerta com o autoritarismo/neofascista de maneira muito intensa como há tempos não fazia. Existe, indubitavelmente, uma crise das democracias liberais, e o neofascismo surge como uma alternativa ao modelo democrata/liberal, no entanto, sem nenhuma condição de solucionar os problemas, mas com potencial para intensifica-los.


Guardadas todas as proporções, mas existe um fator mais preponderante, diferenciando Bolsonaro das outras lideranças neofascistas mencionadas, a saber, o fato de o presidente brasileiro ser ao mesmo tempo conservador nos costumes e neoliberal no aspecto econômico, diferenciando-se dos demais que possuem como forma de governo um caráter mais “nacionalista”. Bolsonaro, abraçado com o neoliberalismo, representado por Paulo Guedes, entrega todo o patrimônio público para as multinacionais, de preferência para as multinacionais norte-americanas.


Ao acompanhar o modus operandi do governo Bolsonaro, tenho mais condições de compreender a tese levantada por Ellem Wood, quando destaca que democracia e capitalismo são dois conceitos incompatíveis. Na prática, Bolsonaro reforça a tese de Ellen Wood. O neoliberalismo, como defende a filósofa Marilena Chauí no importante artigo publicado no A Terra é Redonda, é o novo modelo de autoritarismo em vigência no país, cooptando o estado para atender os interesses de grupos econômicos, quando esses grupos estão representados no Brasil pelo famigerado mercado financeiro. Nesse sentido, dificilmente conseguiremos avançar na crítica ao neofascismo sem compreender que o fenômeno autoritário está associado como o modelo econômico em vigência no país, e esse modelo atende pelo nome de neoliberalismo.


De forma mais direta, o que interessa para o modelo neoliberal? Lucro, somente isso, vidas não são importantes. A imposição do modelo ostensivo do neoliberalismo já apresenta seus resultados, quando estudos como o publicado recentemente no El País demonstra que mais de 50% da população brasileira sobrevive em média com 413 reais mensais, porém os bancos Itaú, Bradesco, Santander, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal lucram como nunca diante da miséria social. Diante dessa evidência é inegável que há grupos lucrando e muito com a imposição da crise, e esses grupos estão representadas pelo mercado financeiro, que impõe, sem nenhum peso de consciência, a sua agenda neoliberal.


Bolsonaro e Paulo Guedes seguem impondo o modelo econômico destrutivo, beneficiando os bancos e retirando direitos e dignidade da população. Nesse cenário, diferentes atores sociais com condições de compreensão devem se colocar como alternativa para enfrentar e derrotar o embrutecimento social rentista. Um dos atores que tem se colocado como alternativa ao contexto social, representação da esquerda partidária é, indubitavelmente, o pedetista Ciro Gomes.


Apesar da importância, Ciro parece ser o político do campo da esquerda com mais dificuldade para compreender o que está acontecendo no país. Desde a eleição de Bolsonaro, Ciro Gomes tem percorrido várias regiões do país se colocando como voz ativa em oposição ao presidente da extrema-direita, apresentando o seu projeto político/partidário para o país. Mesmo os mais críticos não podem negar que o pedetista tem condições intelectuais para refletir sobre os principais problemas da sociedade brasileira, quando se destacam o aumento da pobreza e a precarização do trabalho.


Ao tocar nesses pontos centrais para qualquer economia, ainda mais para um país tão desigual como é o Brasil, existe uma tendência natural para que Ciro adquira cada vez mais relevância perante uma parcela ampla da sociedade, inclusive junto aos setores que apostaram no projeto neoliberal de Bolsonaro, mas estão diante de uma realidade perversa, de empobrecimento sem restrições, atingindo setores da esquerda, da direita e da extrema direita.


Lula também tem se pronunciando, tecendo inúmeras críticas ao modelo neoliberal autoritário conduzido por Bolsonaro e Paulo Guedes. No dia que conquistou a liberdade, 08 de novembro, ainda nos arredores da sede da Polícia Federal em Curitiba, o ex-presidente falou sobre a precarização do trabalho, enfatizando sobre o enorme contingente de brasileiros/as que estão sobrevivendo de trabalhos informais, sem nenhuma garantia, sem nenhum direito. O fenômeno da informalidade, a pessoa se vira para sobreviver, é entendido por sociólogos pesquisadores das relações de trabalho, com destaque para Ruy Braga e Ricardo Antunes, como característica do novo modelo de trabalho do neoliberalismo, quando não existe mais o trabalhador com direitos, o trabalhador foi substituído pelo precarariado, intensificando pelo fenômeno da uberização.


Tanto Ciro, quanto Lula, tem tocado nessas questões, no entanto, diferentemente de Lula, Ciro Gomes não carrega consigo o antipetismo. Por não ter o antipetismo por perto, o pronunciamento do pedetista circula com mais intensidade junto a diferentes seguimentos sociais que não estão, unicamente, vinculados ao campo da esquerda, algo que não acontece, nesse momento, com Lula.


Na recente entrevista concedida ao El País, Ciro afirmou que o Brasil possui três grupos sociais. O primeiro, em torno de 25%, encontra-se representado pelo bolsonarismo, outros 25% pelo petismo, evidenciando os extremos, e, por último, 50% da sociedade não se identifica com nenhum dos seguimentos políticos. Não deixa de ser interessante observar, mas Ciro faz a leitura de que os simpatizantes do Partido dos Trabalhadores se aproximam de um seguimento social parecido com o bolsonarismo. Assim, independentemente do que aconteça, ou venha acontecer, os simpatizantes estarão do lado das suas lideranças, não tendo condições de fazer a famigerada autocrítica.


Diante desse fenômeno de “polarização”, metade da população estaria esperando por uma voz sensata com condições para apresentar e projetar um projeto para o país que não esteja vinculado ao bolsonarismo e tampouco ao petismo. A voz sensata que conseguiria dialogar com metade da população, na perspectiva de Ciro, atende por um nome, a saber, Ciro Gomes. Quem adotou uma estratégia muito parecida após o processo eleitoral de 2014 foi Marina Silva. Depois de apoiar Aécio Neves na disputa do segundo turno, Marina concedeu inúmeras entrevistas criticando a “polarização do país” e se colocando como uma voz além dessa disputa ideológica.


Não resta dúvida, Marina continua como uma voz importante para a sociedade brasileira, porém a pretensa neutralidade, em vez de beneficiá-la, fez com que perdesse consideravelmente o seu capital político. Por exemplo, nas eleições de 2014 Marina Silva obteve 21% das intenções de voto, e na última eleição presidencial teve somente 1% dos votos válidos. É necessário problematizar para compreender quais os fatores que fizeram com que Marina perdesse tanto capital político ao longo de quatro anos, porém é inegável que um desses fatores está atrelado a ideia de neutralidade, culminando na tendência antipetista que acompanhou intensamente Marina diante dos últimos acontecimentos políticos do país. Como exemplo, é possível identificar o posicionamento favorável ao processo de impeachment/golpe parlamentar da ex-presidenta Dilma Rousseff, afastando com isso muitos eleitores/as ligados à esquerda.


O mais preocupante na construção dessa narrativa de polarização, acreditando ser possível encontrar o meio termo, o centro, como defende Fernando Henrique Cardoso, é que essa leitura impossibilita entender o fenômeno social do neofascismo/neoliberal à moda brasileira. O fenômeno traz consigo o embrutecimento social, a defesa da violência do estado para com as populações menos favorecidas, ataque constante às universidades, destruição ambiental, defesa do fechamento das instituições, apologia à tortura e ao torturador, defesa de um novo golpe militar e tantas outras atrocidades contrárias ao estado democrático de direito. Diante dessa constatação, cabe uma pergunta, qual seguimento defende abertamente essas e tantas outras práticas violentas? O Partido dos Trabalhadores defende? Não, definitivamente não. Se não defende, como entender e associar o petismo ao bolsonarismo? Há um projeto de poder violento defendido por Luta e pelo Partido dos Trabalhadores como há, nitidamente, por Bolsonaro e seus seguidores?


Em recente artigo publicado na Carta Capital, a cientista política Esther Solano afirma o óbvio, ou seja, é desonesto comparar Lula e Bolsonaro como se representassem o mesmo projeto de poder, porém com perspectivas opostas. Nesse sentido, me valendo do termo desonesto utilizado por Solano, Ciro Gomes atua de forma desonesta ao comparar os simpatizantes do PT com os indivíduos identificados com as ideias de Bolsonaro. Mais do que isso, Ciro parece embevecido de um discurso social, muito equivocado, que tem procurado compreender o fenômeno Bolsonaro como resultado do petismo.


Na mesma entrevista concedida ao El País, Ciro faz uma indagação, ao mesmo tempo, afirmativa: “Existira o bolsonarismo sem as escolhas do Lula?”. Tecer críticas às escolhas do Lula, ao próprio Lula, ao Partido dos Trabalhadores é fundamental, principalmente para o posicionamento da esquerda diante da ascensão do neofascismo. Nesse sentido, é necessário olhar criticamente às alianças escusas do PT, a conciliação que o partido adotou com o grande capital, o envolvimento de dirigentes e parlamentares com práticas corruptas, a construção de Belo Monte e tantas outras. No entanto, associar o surgimento do bolsonarismo com as escolhas do Lula é, no mínimo, desonesto.


A desonestidade pode ser atestada por alguns fatores e, talvez, nesse contexto o principal deles esteja presente na construção inicial desse artigo, quando apresento o fenômeno Bolsonaro como representação de outros movimentos neofascistas espalhados no “mundo ocidental”. Além de o neofascismo ter adquirindo cada vez mais notoriedade, muito distante de ser um fenômeno meramente nacional, é impossível entender Bolsonaro sem analisar a construção histórica do país. As bases sociais do Brasil sempre tiveram como contrato social o caráter da violência, historicamente representado pelo genocídio e escravidão das populações indígenas, escravidão negra, racismo, patriarcalismo, golpes militares e outros fatores sociais que moldaram a sociedade brasileira por meio da violência e opressão dos menos favorecidos.


Procurar compreender Bolsonaro como reflexo das ações do tempo recente pode ser entendido de duas formas. A primeira é o desconhecimento histórico, algo não atribuível a Ciro Gomes, principalmente pela sua notória capacidade intelectual, e o segundo fator é o da desonestidade intelectual. Nesse ponto, Ciro está sendo desonesto ao apresentar Bolsonaro como consequência das ações do Partido dos Trabalhadores e, em especial, de Lula, porque nega um fenômeno muito maior, além de não trazer para a discussão do dia a construção histórica do país.


A estratégia política de Ciro está evidente. Ao adotar um discurso muito crítico ao Partido dos Trabalhadores, atribuindo ao partido a responsabilidade pelas mazelas sociais e políticas do país, Ciro Gomes acredita ser a voz capaz de estabelecer ou reestabelecer a conciliação. No entanto, como defende Vladimir Safatle, o contexto do Brasil contemporâneo evidencia que não há mais conciliação possível.


Ciro Gomes tem totais condições para compreender o fenômeno neoliberal/neofascista que assola o Brasil e parte do mundo. No entanto, nesse momento, parece ser mais confortável para o pedetista não querer compreender.

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