Recentemente tive a oportunidade de ler um artigo escrito por Fernando Henrique Cardoso, intitulado E Agora?. (O artigo pode ser encontrado no site do jornal El País, na sua versão em português). O texto trata de muitas questões relevantes, como por exemplo, uma espécie de autocrítica ao desempenho do PSDB nas últimas eleições, governo Bolsonaro, distanciamento da sociedade com o núcleo político institucional, critica a ideia de que o atual governo é fascista, e no final tratou do que entende como prioridade, a saber, a Reforma da Previdência.
Nos últimos meses tenho procurado me aproximar de leituras que, não necessariamente, dialogam com a perspectiva de sociedade que acredito, e definitivamente o “mundo” idealizado por Fernando Henrique Cardoso não é o mesmo que tenho nos meus sonhos. Isso não significa que um “mundo” seja melhor do que o outro, mas perspectivas diferentes. Parece até démodé, mas dentro de um regime democrático as divergências se constituem como necessidade.
Pela primeira vez, desde que ocorreu o impeachment/golpe da Presidenta Dilma Rousseff, FHC parece querer reconhecer que ocorreu algo distante do funcionamento das instituições. Quem acompanhou o processo atentamente, sabe que o ex-presidente teve um papel, se não decisivo, importante na construção do enredo para destituir a primeira mulher ocupante do mais alto escalão do poder público institucional. Em mais de uma oportunidade foi possível presenciar falas, textos e outras sinalizações do personagem principal do ensaio defendendo o governo de Michel Temer. Até porque, a defesa de Temer era também uma leitura positiva para com a alta cúpula do PSDB, que ocupou vários cargos na gestão do emedebista.
Nesse sentido, é muito provável que o ostracismo eleitoral do Partido seja em decorrência das escolhas equivocadas/oportunistas de anos atrás. Essa assertiva pode ser atestada por meio de entrevistas, recentes, de alguns nomes importantes do PSDB, como o ex-presidente nacional do partido Tasso Jereissati, quando no mês de setembro de 2018 concedeu entrevista ao jornal Estadão, assegurando que os erros de interpretação do partido ocasionaram o distanciamento junto à sociedade. Na entrevista cita como erros históricos a não aceitação do resultado das eleições de 2014, a construção de pautas bombas no congresso para fragilizar o governo Dilma e o apoio incondicional as ações do governo Temer.
No entanto, sem negar a importância de Tasso Jereissati para o partido, mas é notório que a principal representação do PSDB continua sendo Fernando Henrique Cardoso, não somente pelo fato de ser ex-presidente da República, mas também por sua notoriedade intelectual, protagonismo nos grandes meios de comunicação, fazendo-o figura indelével do cotidiano da política nacional. Diante da representação, a chamada autocrítica do ex-presidente é muito sútil, parecendo querer se distanciar do rótulo de protagonista do caos institucional que o país enfrenta. Protagonismo não necessariamente no sentido subjetivo, porém partidário.
No tocante ao artigo, Fernando Henrique Cardoso questiona a leitura, quase que recorrente dentro do campo progressista, de que o atual governo federal é moldado por um fascismo, ou neofascismo. Para o ex-presidente, quem se ocupa da alcunha de fascista para representar o governo Bolsonaro está equivocado, porque, na sua concepção, não se trata de fascismo, mas de um governo de direita. Para referendar sua leitura, não se vale de nenhum referencial teórico, o que não seria difícil para ele, mas se embasa na entrevista concedida pelo atual vice-presidente General Hamilton Mourão à TV Globo.
A figura do vice-presidente é complexa no atual cenário, porque antes do processo eleitoral Mourão circulava como general autoritário, saudoso da ditadura, misógino, preconceituoso e avesso à democracia. Porém, parecendo compreender melhor que ninguém o cenário atual, hoje transparece ser um sujeito moderado, aberto ao diálogo, garantidor dos principais constitucionais e alguém atento ao mundo fantasioso do atual presidente. Mas, a imagem, se não positiva, mas moderada do general, se comparado ao presidente, se deve, exclusivamente, a incapacidade de Bolsonaro de pelo menos transparecer lucidez. Como afirma Eliane Brum: “Em caso de naufrágio, qualquer tábua de pinho vira navio”. É nesse sentido que FHC parece caminhar, se agarrando a tábua de pinho, recusando o rótulo de fascismo, tendo como suporte para a recusa somente uma entrevista.
Ou o sociólogo desconhece a literatura existente para tratar do fascismo, algo improvável, ou não considera Bolsonaro como presidente, porque todas as ações/falas do atual presidente sinalizam para o caráter fascista do seu governo, quando procura banalizar o mal, tendo a figura do estado como legitimadora das ações de violência. Como o artigo de Fernando Henrique foi publicado no dia 3 de fevereiro, o sociólogo não teve oportunidade de ler o pacote “anticorrupção” do ministro da Justiça Sérgio Moro. Talvez, se tivesse lido poderia ter mudado de ideia, porque em um país que tem a Polícia mais letal do mudo, no qual todo dia 14 pessoas são mortas por ações policiais, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança, propor um projeto que, entre outras ações, exime de responsabilidade a ação violenta de péssimos policiais, no qual diante das alegações passarão incólumes por um processo de julgamento, não pode ser entendido de outra forma como legalização da morte pelo estado. Quando o estado legaliza a morte, visando atingir imagináveis inimigos, não há outro nome se não fascismo.
Outro ponto interessante apontado no artigo foi a “recusa” de FHC para tecer críticas ao governo Bolsonaro. No artigo, não necessariamente há a defesa para não se fazer críticas, mas existe a sinalização da ideia de que é necessário esperar ações do governo para tecer considerações. Interessante observar que Ciro Gomes, diante de uma entrevista concedida ao mesmo El País, também foi na mesma linha, acreditando na necessidade do tempo, os chamados 100 dias para se ter uma melhor noção do que será o governo. É possível interpretar essa ação como uma estratégia de não desgaste perante o eleitorado bolsonarista ou, o que é mais provável, um total desconhecimento do projeto de governo do atual presidente. Porém, se alguma das hipóteses se sustentarem, o equívoco é enorme, porque diante de um governo que promete tantos retrocessos à democracia, a atuação ativa é um dever de cidadania.
Definitivamente, tanto Ciro Gomes, quanto Fernando Henrique parecem preferir o autoengano, acreditando que estamos vivenciando a plena normalidade, quando a realidade demonstra o contrário. Outro ponto de destaque no artigo foi à leitura, acertada, de que os partidos tradicionais, e não somente eles, devem estabelecer uma relação de proximidade com a sociedade, propiciando, novamente, uma relação de confiança, devolvendo a esperança ao povo e junto ao povo.
Nesse sentido, é inegável que uma (re)invenção do campo progressista se faz necessário, afinal, o caos social não é oriundo somente do protagonismo de quem ocupa o poder, mas de um esvaziamento de poder de quem esteve, até pouco tempo, na vanguarda da participação coletiva. Cadê o coletivo, sucumbiu, ou foi sucumbido? Enfim, são questões para serem tateadas.
Por último, o artigo trouxe o debate cada vez mais presente no neoliberalismo, a saber, o famigerado equilíbrio das contas públicas. Esse “equilíbrio” no Brasil, passa pela chamada Reforma da Previdência, no qual, nessa semana já foi possível ter uma sinalização da proposta do governo para introduzi-la no meio social. Como não poderia ser diferente, a proposta visa deixar ainda mais precária a vida das pessoas que se encontram em situação de miséria social.
Sobre a Reforma da Previdência, Fernando Henrique Cardoso mencionou a necessidade de se ter um diálogo junto à sociedade, e também a ideia de que é necessário convencer essa mesma sociedade sobre a importância da Reforma da Previdência para, de acordo com sua convicção, equilibrar as contas públicas. Apesar de defender o diálogo, o ex-presidente não menciona a importância que seria ter uma auditoria sobre a Previdência, o impacto que tem o não pagamento de impostos do capital financeiro, em especial os bancos, no qual contribuem para aumentar o déficit, o impacto das exonerações fiscais, a alteração na vida das pessoas mais carentes que, em virtude das condições sociais do qual estão submetidas, começam a trabalhar mais cedo e param de trabalhar mais tarde. Esses, sim, serão os mais afetados pela Reforma neoliberal da Previdência. Essas questões que demandam uma leitura mais humanitária do processo passaram incólume pelo artigo em questão.
Como se trata de um artigo, e em decorrência de ter sinalizado para muitos pontos, é imaginável que em breve Fernando Henrique Cardoso selecione uma temática específica para tecer considerações. Como ex-presidente, ator ativo dos últimos acontecimentos políticos do país, é importante que FHC continue produzindo e refletindo sobre o contexto social construído para vivermos no tempo presente.
O sentido de importância não está na ideia de corroborar com as teses, mas de vê-las em circulação, assim como seria importante acompanhar as leituras de Lula sobre o cenário atual, algo, infelizmente, impossível nesse momento. Em tempos não necessariamente emocionais, mas de embrutecimento, ter fagulhas de racionalidade, independentemente da concordância ou não, se apresenta como um fio de esperança. Talvez estejamos, assim como nosso interlocutor, agarrados a tábua de pinho.
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