Há, impregnado na sociedade brasileira, alguns determinismos que reluta para nos deixar literalmente em paz. Um desses, que gostaria de estabelecer um diálogo com vocês, refere-se ao preconceito destinado aos indivíduos que cumpriram alguma pena, em virtude de terem cometido algum delito, ou terem infringido as normas vigentes. Existe, uma espécie de condenação sumária, ininterrupta, que não é necessariamente por parte do judiciário, mas, por uma parcela social.
Aliás, em rápidas palavras, em torno de 40 à 50% dos presos em nosso país, segundo dados do jurista Luiz Flávio Gomes, estão em condições irregulares, ou seja, não deveriam estar presos, ou por não terem suas situações julgadas, ou por já terem cumprido suas penas, e estarem esperando a “liberdade”, que demora significativamente para uma conjuntura de sujeitos, que compõem a camada social da maioria dos presidiários desse país.
Evidentemente que poderíamos estabelecer um diálogo sobre as condições desumanas que os presos brasileiros enfrentam cotidianamente, quando esses sujeitos tem que lutar no sentido mais amplo do termo, para ter minimante condições de se manterem vivos. Quando estabeleço um diálogo para se pensar a situação carcerária no Brasil atual, lembro-me do livro Vigiar e Punir (1987), do filósofo/historiador Michel Foucault, que estabelece uma reflexão sobre os primórdios de encarceramento na França do período moderno, com enfoque no século XVIII, concomitantemente com as condições precárias, insalubres, desumanas, horrendas, dos condenados daquele contexto.
Em linhas gerais, não vejo muitas diferenças de condições, formas de tratamento, e desprezo destinado àqueles que cometeram alguma ‘irregularidade’, entre a sociedade objeto de estudo de Foucault, e a nossa realidade histórica/contemporânea. Desse modo, pensar que o presidiário brasileiro conseguirá se ressocializar, convivendo em um espaço no mínimo desumano, provavelmente seja a maior utopia do tempo presente. Não impressiona a dificuldade do estado brasileiro, (estou pensando em todos os níveis), de solucionar, ou mesmo dirimir problemas históricos.
Embora, acredito que a não resolução de problemas relacionado às prisões, seja uma filosofia de estado, quando há a preocupação de retirar de circulação aqueles que de algum modo ocasionam ‘transtornos sociais’. Tendo cumprindo o que acredita ser a sua função, não há a mínima preocupação com o ser humano que se encontra naquela situação degradante. O preso brasileiro, compreendido pela figura estatal, e por uma parcela ampla da sociedade, deixa de ser considerado ser humano, e passa a ser compreendido como um ‘bandido’. A partir dessa designação pejorativa, deixa de haver preocupação com o indivíduo que fora encarcerado, não importa se o preso chora, se ele sofre violência física, moral, entre outras, tudo isso é relativizado.
O que acaba importando para uma parcela do seguimento estatal, e social, está muito distante do que podemos compreender como justiça, mas, existe um desejo de vingança. Tendo como parâmetro o desejo, quando mais os indivíduos pereçam sobre as agruras do meio em que se encontram, mais satisfeitos os seguimentos que me referi, se sentem. Interessante observar que a realidade do presidiário, é muito diferente daquela que permeia no imaginário social, quando há a crendice de que o preso vive bem no Brasil. Porém, a realidade é muito distante dessa errônea e enraizada crença.
Tenho certeza que as sociedades vindouras nos questionarão, e terão dificuldades para compreender como a sociedade do século XXI fora capaz de aprisionar pessoas. Não só aprisionamos, como prende-se cada vez mais no território nacional. O aumento da população carcerária significa que estamos caminhando para um lado totalmente equivocado, nos distanciando das perspectivas que poderiam dirimir de forma significativa os percalços da violência que permeiam em nosso cotidiano.
Infelizmente, a prática da moral, em síntese conservadora, impede que nos humanizemos, fazendo com que tenhamos dificuldades de oportunizar, oportunidades, quando o desejo de vingança, de retaliação destinado para o preso, se perpetua à medida que esse consegue, por algum aspecto fortuito, sair da condição de aprisionamento. Fora da prisão, o preso continua preso, não recebendo oportunidades sociais, tendo que conviver com as mais horrendas formas discriminatórias.
Há uma compreensão social, que o vigiar e punir, parafraseando o referencial teórico que nos deu sustentação para o diálogo, é constante, eterno, para quem conseguiu heroicamente sobreviver ao cárcere coletivo. O conceito de liberdade, o direito de transitar por diferentes espaços, não se sustenta, por que o ex-presidiário, depara-se com uma parcela da sociedade que se comporta como um vigilante irreparável, destemido, implacável, que vigia-o, e também pune de forma severa.
Conseguir compreender que o ser humano, continua sendo ser humano, independentemente da sua ação, continua sendo um desafio para a nossa sociedade.
Boa semana para vocês!