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A ERA DO CAPITALISMO IMPRODUTIVO


Vimemos uma crise civilizatória. A assertiva é de Ladislau Dowbor[1], no livro A Era do Capitalismo Improdutivo: por que oito famílias têm mais riqueza do que a metade da população do mundo? (Autonomia Libertária, 2017). Mais do que uma frase de efeito, a assertiva é um sintoma e o diagnóstico é o de um paciente bastante doente. O paciente, neste caso, é o próprio sistema capitalista em sua configuração atual. O que Dowbor procura neste livro é examinar o paciente e tentar descobrir o vírus que infecta o seu organismo, inclinando-se a prescrever alguns antídotos.


O texto tem o objetivo de apresentar os principais pontos de reflexão contidos no livro de Dowbor, onde o autor procura estabelecer uma crítica contundente ao capitalismo contemporâneo. Uma primeira observação é o estilo da escrita do autor. É leve, suave, tranquila e, acima de tudo, de fácil compreensão. Forjado nas agruras da Ditadura Civil Militar (1964-1985), o autor deixa clara sua posição crítica em relação ao neoliberalismo; busca valorizar as fontes primárias, deixando as opiniões de lado, ao passo que defende um modelo de sociedade mais esclarecida, uma governança e empresas mais transparentes, comunidades participativas e gestão mais descentralizada.  Ou seja, o autor defende sociedades que sejam cada vez mais democráticas.


A assertiva de que estamos vivenciando uma crise civilizatória decorre da forma como o capitalismo contemporâneo opera. Isto é, longe das suas características iniciais que o fizeram se consolidar no século XVIII e XIX, o capitalismo contemporâneo funciona a partir dos chamados grandes “conglomerados” de empresas e corporações privadas. Segundo Dowbor, estes são os verdadeiros “donos” do mundo. Um ponto chave desse domínio global das grandes corporações privadas é a falta de transparência e a diluição de responsabilidade ética, jurídica, política, econômica e social. Além disso, o autor explora muito bem o conceito de “impotência administrativa”, quando, no seio das grandes corporações, a responsabilidade e o poder decisório se diluem pela extensa estrutura da empresa, cujo único e mais importante objetivo é a rentabilidade financeira. 


Dessa forma, por exemplo, as fraudes funcionariam como uma estratégia muito bem articulada pelos CEOs do mundo corporativo (vejamos o exemplo mais recente do caso das Lojas Americanas). Elas são programadas e muito bem planejadas, com o intuito de render mais dinheiro aos cofres corporativos. É a máxima da diluição sistêmica de responsabilidade. Isto é, as corporações criam tantos departamentos (jurídico, financeiro, marketing, etc.), tantos níveis de hierarquia e gestão, que a responsabilização pelos crimes cometidos acaba sendo minimizada, quando não suplantadas. Trata-se, portanto, de uma estratégia muito bem coordenada pelas corporações. E pensar que tem gente que acha que quando uma grande empresa decreta falência ela estaria realmente a ponto de deixar de existir. Doce ilusão.


Outro ponto importante é o fato de a mídia depender financeiramente dessas grandes corporações. O conluio da mídia e até mesmo a sua omissão em casos de fraude ou rombo nas corporações, não é tratado com a devida transparência. Ocorre aquilo que é lógico. Os veículos de mídia possuem como principais financiadores as grandes corporações, sendo, portanto, irracional ir contra os interesses dessas corporações. Os critérios de rentabilidade e a cobrança incessante por maximização dos lucros sai do topo de comando financeira e se dissemina nas bases e níveis da estrutura piramidal corporativa. E neste ponto, conforme diz o autor, o circulo se fecha. E é aqui que entra a prática do settlement, ou seja, o mais importante é a maximização dos resultados financeiros, não importando ações judiciais, processos e escândalos diversos. Decorre disto a necessidade de ter na planilha de pagamento os grandes veículos de mídia. Assim eles amenizam os efeitos “negativos” de pseudofraudes e supostos escândalos financeiros.


Na esteira da ausência de transparência e responsabilidade por parte das corporações, Dowbor esclarece haver outro tipo de modelo de oligopólio sistêmico: os grandes bancos. Esse tipo de modelo oligopolista sistêmico funciona a partir da instabilidade geral, seja ela política ou econômica e, sobretudo, da especulação financeira. Um claro exemplo é a condição de refém dos Estados ante as instituições bancárias (especialmente aquelas de nível internacional, como FMI, Banco Mundial, etc.), o que os torna incapazes e impotentes em defender os interesses da sociedade. Entre o povo e o credor, ou seja, o banco, sempre o segundo. É muito sintomático que um bando de banqueiros pelo mundo defina o quanto devo pagar por um pacote de arroz ou feijão no mercadinho da esquina. Selvageria financeira pura.


Nesse sentido, pensar num ambiente de concorrência natural entre bancos seria ingenuidade. O que existe de fato é a oligopolização do setor financeiro. Em outras palavras, os agentes do capital financeiro, que detém o monopólio das decisões econômicas e políticas do mundo, acordam entre si estratégias e manobras (na maioria dos casos de forma escusa e intransigente) com o objetivo de concentrar mais riqueza e poder. Alías, poder econômico que alimenta o poder político e o ciclo se fecha. Não é por acaso que as maiores corporações privadas do mundo são as principais financiadoras de campanhas eleitorais e de “seus” políticos.


Destarte, o autor enfatiza que os gigantes financeiros planetários usam de seu poder econômico para dominar o poder político, em escala ascendente. Para tanto, adotam da extraterritorialidade financeira, por meio (e principalmente) de paraísos fiscais, também conhecido pelo termo offshore. Estes últimos “são uma rede sistêmica de territórios que escapam das jurisdições nacionais, permitindo que o conjunto dos grandes fluxos financeiros mundiais fuja das suas obrigações fiscais, escondendo as origens dos recursos ou mascarando o seu destino” (DOWBOR, 2017, p. 83). Ou seja, trata-se de um país ou território financeiro global onde as regras e as leis são flexíveis e pouco rígidas com relação a bens, patrimônio e dinheiro. De lá, o dinheiro, bem ou patrimônio pode ser facilmente ocultado e, acima de tudo, movimentado sem qualquer fiscalização mais contundente, razão pela qual é conhecido popularmente de “paraíso fiscal”.


A preferência das grandes corporações pelos paraísos fiscais se dá pela sua “cortina de fumaça”. São incontáveis as possibilidades de fragmentação do fluxo financeiro em milhares de contas e filiais abertas em inúmeros outros lugares, que fica até difícil de explicar o todo e como ele funciona. E é justamente esse o objetivo. Desse modo, o grande obstáculo para regulações e impedimentos legais do dinheiro que vai para paraísos fiscais ser efetiva é que se trata de um sistema financeiro planetário, supranacional e extraterritorial. A grande estratégia das offshores é justamente sua máscara de legalidade produzida por uma série de ilegalidades. Não é ilegal abrir uma conta ou uma filial em outros lugares tidos como paraísos fiscais. O ilícito está na prática de lavagem de dinheiro e sonegação de impostos (evasão fiscal) que ali se pratica aos montes.


Não obstante, a punição aos grupos econômicos que utilizam de paraísos fiscais é branda e pouco inibidora de futuras práticas ilícitas. Basta, tão somente, um bando de bons advogados e pronto. Acordos são feitos e multas irrisórias são aplicadas, o que permite a perpetuação das ilegalidades, dentre as quais, a lavagem de dinheiro em paraísos fiscais. O sistema por si só induz à sua reprodução sistemática. E aqui está o ponto central. O aparato jurídico a que essas corporações dispõem é tão imenso, que colocam os Estados e os governos sob condições submissas e constrangedoras. Isto é, uma vez que os Estados e nações perdem a capacidade de tomar decisões por conta própria, como questões ligadas a regulação ambiental, desenvolvimento social e econômico, o que se percebe é uma situação de precarização do trabalho, ampliação da desigualdade social e dos índices de pobreza.


Apesar do dinheiro estar nos paraísos fiscais, a gestão dos recursos está nas mãos dos grandes bancos que conhecemos (HSBC, UBS, Goldman&Sachs, etc.). O sistema é planetário, portanto, gerido e administrado de forma global pelos agentes econômicos privados das milhares de corporações interessadas, o que mostra como realmente funciona toda a engrenagem da máquina do capitalismo contemporâneo. A ideia do capitalismo improdutivo fica aqui mais nítida: porque justamente não produz nada. Não produz riqueza, não produz renda, não produz desenvolvimento social e econômico. É improdutivo porque existe e funciona com vistas a reprodução ampliada do capital em escala global, fruto da especulação, dos juros e do rentismo. É uma barbárie incomensurável.


Nesse ínterim, é cada vez mais evidente que no modelo de reprodução ampliada do capital que temos hoje, o produtor é sistematicamente alijado do resultado e do produto de seu trabalho e valor agregado. Menos ainda tem o consumidor autonomia e liberdade de compra efetiva, uma vez que se vê obrigado a se render aos preços inflados por meia dúzia de atravessadores e intermediários. Conforme o autor, o “conceito foi inventado justamente para refletir a dimensão negativa dos intermediários dos processos produtivos que ganham não ajudando, mas colocando gargalos ou pedágios sobre o ciclo produtivo” (DOWBOR, 2017, p. 95). Ou seja, quem ganha e quem sempre ganhará é o intermediário, com margens elevadíssimas de lucro, sobre um fluxo relativamente pequeno de produtos. Para o produtor, o lucro é insuficiente para desenvolver, ampliar e aperfeiçoar a produção. Para o consumidor, o preço é muito alto, o que inibe drasticamente o consumo. O problema está na forma como se opera toda lógica do sistema de intermediação financeira, que se pauta na apropriação da riqueza social e sua política deliberada de austeridade. É ou não é uma selvageria?  


Grandes grupos e corporações financeiras (que não são muitas), como por exemplo, a Bunge, Trafigura, Gunvor, Cargill, Vitol, entre outras, utilizam em larga escala os sistemas de intermediação. Nesse tipo de sistema pouco é relevante o produto em si. O mais importante são as flutuações dos preços daqueles produtos, suas cotações na bolsa e seus ativos financeiros. Com efeito, “o eixo essencial da mudança é o deslocamento do lucro e do poder econômico e financeiro dos produtores – os capitalistas no sentido do século fabril passado – para os intermediários, cobradores de pedágio de diversos tipos. Trata-se dos intermediários financeiros, de commodities e de sistemas de comunicação. O lucro de verdade, o grande lucro, se gera na economia imaterial” (DOWBOR, 2017, p. 111). Esses grupos e corporações – que são praticamente invisíveis, porque essa é uma estratégia, inclusive, muito bem deliberada – não estão em nenhuma das pontas da cadeia produtiva. São como “fantasmas” que sugam o produto do trabalho daqueles que realmente produzem riqueza, quais sejam, os produtores, trabalhadores e consumidores.


Dessa forma, “o poder dos intermediários tornou-se planetário. São poucos grupos sistemicamente significativos e a manipulação de preços se torna perfeitamente factível”. É o que se denomina de “economia de pedágio”, onde os maiores prejudicados são os produtores de um lado, e os consumidores de outro. Trata-se de uma nova arquitetura de poder” (DOWBOR, 2017, p. 112). É meio estranho pensar que uma grande empresa do setor de tecnologia, por exemplo, compre silos de grãos (soja, milho, trigo, etc.) e os mantém em estoques (silos) tão somente à espera de que o valor das commodities se eleve na bolsa de valores, para depois vendê-los, obter lucros altíssimos e assim reinvestir novamente.  A estranheza está no fato de que essa empresa de tecnologia não participa em nenhum nível da cadeia produtiva dos grãos, ela apenas lucra com a especulação. É ou não é insano?  


O capitalismo improdutivo só é possível em razão da captura do poder político, como mencionado anteriormente. O poder corporativo tornou-se sistêmico, ao capturar as diversas dimensões e expressões do exercício do poder político. “Uma forma de captura do poder é a própria expansão dos tradicionais lobbies. A Google, por exemplo, tem hoje oito empresas de lobby contratadas apenas na Europa, além de financiamento direto de parlamentares e de membros da Comissão da EU” (DOWBOR, 2017, p. 116). O dinheiro das corporações financeiras tornou-se onisciente, onipresente e onipotente.


Com efeito, tem-se a deformação da democracia representativa. Não é o povo diretamente quem demanda políticas públicas, ações e medidas que visem melhorar a vida da população. Como o poder político e a democracia formal foram capturadas pelo poder dos lobbies, são as grandes empresas e corporações, bancos, empreiteiras e a grande mídia que dão as cartas do jogo. A composição do Parlamento e do Congresso são exemplos claro. Ali estão representantes de setores poderosos da grande máquina do capitalismo financeiro (e internacional) e nada de povo.


Os tentáculos desse “polvo” corporativo são ainda mais sorrateiros. Eles chegam ao sistema jurídico, pela via do “settlements”. São acordos pelos quais as corporações pagam uma mixaria de multa para não reconhecerem a culpa, evitando que seus administradores sejam responsabilizados individualmente, o que é uma verdadeira farra judiciária. O pobre trabalhador se furta um pacote de bolachas para aliviar a fome que o consume todos os dias, vai preso, apanha da polícia e é escrachado publicamente. O executivo de terno e gravata que vive de hotel em hotel pelo mundo, se rouba bilhões, no máximo (quando muito preso), faz um acordo “confidencial”, e no outro dia está livre, praticando nova selvageria. Este é o modelo de democracia ideal?


E a esculhambação não para por aí. Conforme o autor, “outro eixo poderoso de captura do espaço político se dá por meio do controle organizado da informação, construindo uma fábrica de consensos sobre a qual Noam Chomsky nos trouxe análises preciosas” (DOWBOR, 2017, p. 120). Na essência, a vinculação entre o poder corporativo e a mídia é direta, mas feita de uma forma tão articulada estrategicamente que a nós ela é muito sutil e apenas superficial. E está aí a grande sacada.  Isto é, “as campanhas de publicidade veiculadas empurram incessantemente comportamentos e atitudes centrados no consumo obsessivo dos produtos das grandes corporações. Com efeito, a publicidade é remunerada em função de pontos de audiência, a apresentação de um mundo cor-de-rosa de um lado, e de crimes e perseguições policiais de outro, tudo para atrair a atenção pontual e fragmentada, torna-se essencial, criando uma população desinformada ou assustada, mas sobretudo obcecada com o consumo, o que remunera com o nosso dinheiro as corporações que financiam esses programas” (DOWBOR, 2017, p. 121-122).


Nem mesmo a produção científica e acadêmica escapa ilesa. “O controle das próprias visões acadêmicas avançou radicalmente nas últimas décadas, por meio dos financiamentos corporativos diretos e, em particular, pelo controle das publicações científicas. Em muitos países, e particularmente no Brasil, as universidades privadas passaram a ser propriedade de grupos transnacionais que trazem a visão corporativa no seu bojo” (DOWBOR, 2017, p. 122). A consequência desse sequestro da ciência pelo universo corporativo é simplesmente uma estratégia – muito bem coordenada, por sinal – para influenciar as políticas governamentais de modo a açambarcar e proteger os lucros. Em resumo: produzir, em escala industrial, conhecimento científico é parte do lobbyng.


Nesse contexto, nossa privacidade (que se tornou fluída e descentralizada, é bom que se diga), torna-se também um negócio muito rentável. Ou seja, nossos dados pessoais, bancários, clínicos, entre outros, estão disponíveis a qualquer hora na rede, constituindo-se para as grandes empresas uma mercadoria valiosa, uma “commodity” com enorme potencial de comercialização. Dessa forma, “com as tecnologias modernas, ter informação detalhada e individualizada sobre bilhões de pessoas não representa nenhuma dificuldade, ao contrário, representa um poderoso instrumento de poder” (DOWBOR, 2017, p.126).


A fluidez do dinheiro hoje é a máxima expressão do capitalismo financeiro. Ele não possui fronteiras, barreiras e limites. É planetário, como chama o autor. Sendo planetário, circula livremente, sem restrições de qualquer tipo ou natureza. Aos governos, nada resta a fazer, a não ser se render às imposições e influências dessas grandes corporações, uma vez que seu poder de enfrentamento e controle praticamente inexistem, já que suas ações mais diretas ficam restringidas às respectivas fronteiras nacionais. Em outras palavras, “a realidade é que a captura dos processos decisórios das empresas da economia real pelo sistema financeiro se generalizou” (DOWBOR, 2017, p. 130). E nesse sentido pouco importa sua vida, seu trabalho, sua saúde, sua qualidade de vida. A que ponto chegamos.


Outro fator considerado nesse jogo de poder dominado pelas corporações financeiras é a dívida pública. Ela é constantemente sevada para gerar juros em cima de juros, resultando em lucros exponenciais para as corporações. A apropriação privada da dívida pública tornou-se uma vantajosa estratégia de apropriação da riqueza social. Nesse ínterim, os governos nacionais se tornaram, em grande medida, impotentes frente aos mecanismos globais de exploração que atuam em escala planetária e que recorrem continuamente a paraísos fiscais (DOWBOR, 2017). Estão de mãos atadas sem nada poderem fazer contra tudo isso.


Interessante a menção feita pelo autor a respeito de como os nossos governos se tornaram reféns das corporações financeiras. Para tal, utiliza como fonte os pressupostos do sociólogo e economista alemão Wolfgang Streeck: “por meio do endividamento do Estado e dos outros mecanismos vistos acima, gera-se um processo em que, cada vez mais, o governo tem de pres­tar contas ao “mercado”, e virar as costas para a cidadania. Com isto passa a prevalecer, para a sobrevivência de um governo, não quanto ele responde aos interesses da população que o elegeu, e sim se o mercado, ou seja, essencialmente os interesses financeiros, se sentem suficientemente satisfeitos para declará-lo "confiável". De certa forma, em vez de república, ou seja, res publica, passamos a ter uma res mercatori, coisa do mercado” (DOWBOR, 2017, p. 133). Nada mais sintomático.


Não se pode tentar compreender essa nova arquitetura de poder desvelada pelo autor, sem passar em revista o papel do rentismo na economia global como um todo. O rentismo é um tipo de capital que é gestado de apropriação de juros sobre o valor de um ativo, ou seja, qualquer coisa que possa se tornar dinheiro (uma fábrica, uma fazenda, um carro, um dinheiro na conta, etc.). O grande problema do rentismo é que ele torna a desigualdade econômica e social mais aguda do que já é. Isto porque a apropriação dos juros sobre o valor de um ativo não retorna para a sociedade, para a produção de riqueza social, ele é direcionado para o patrimônio dos 1% mais ricos.


E é ainda mais grave quando o capital rentista sequestra nossos impostos (da sociedade como um todo) por meio da dívida pública. Ao emprestar dinheiro para o Estado tendo como garantias títulos públicos, ou seja, ativos do governo, investidores e aplicadores sevam a dívida para que cada vez mais tenham sua margem de lucro elevada. Em outras palavras, são os nossos impostos que pagam os juros da dívida, que vai direto para o bolso dos rentistas ao invés de retornar para a sociedade em benefícios e políticas públicas. Dessa forma, “a ideia mestra que sobressai é que a aplicação financeira, o mover pa­péis, rende mais do que produzir. O resultado evidente é que o dinheiro vai correr para onde rende mais, engordando as fortunas financeiras, e travando as iniciativas que dinamizam a economia, como o consumo das famílias, o investimento empresarial e os investimentos públicos nas áreas sociais e de infraestruturas” (DOWBOR, 2017, p. 145). Dito de outro modo, somos eu e você, trabalhador e trabalhadora, que pagamos a conta.


Em contrapartida, os mínimos sociais (saúde, educação, emprego, transporte, etc.) são uma soma insignificante perto da totalidade dos gastos públicos, mas que por outro lado, são exaustivamente e cotidianamente combatidos e rejeitados por uma pequena e ínfima parcela da elite econômica. Certo é que o mais importante não é o bem estar social da população, desde que tenha somente o mínimo para continuar existindo como produtora de riqueza social, a qual é toda transferida para o topo da pirâmide onde estão os super ricos. O caminho para equalizar os problemas apontados ao longo de todo o livro pelo autor não é fácil e muito menos confortável. O que ele propõe é uma espécie de “democracia econômica” real, ou seja, “[...] a concepção de que a própria economia tem de ser democratizada, com novos mecanismos de regulação, transparência, participação e controle democrático” (DOWBOR, 2017, p. 152). Seria o enfrentamento de toda a sociedade a este modelo de capitalismo improdutivo e antidemocrático.


Como bem destaca o autor, “existe uma cultura financeira global. No caso brasi­leiro, o desajuste fica evidente quando constatamos que, a partir de 2014, o PIB caiu drasticamente enquanto os juros e os lucros dos intermediários financeiros aumentavam entre 20% e 30% ao ano. Nosso sistema de intermediação financeira não serve a economia, e sim dela se serve. É produtividade líquida negativa” (DOWBOR, 2017, p. 154). É a mais dura e difícil realidade que vivemos. As possíveis soluções para superar esse sistema selvagem de rapinagem da riqueza social pela ‘financeirização’ não seriam nada conservadoras. Em primeiro plano, um resgate e uma reestruturação radical do modelo de regulação e fiscalização de ponta a ponta do sistema financeiro, para que este sirva à economia real, e não dela se sirva. Em segundo, buscar mecanismos que possam fomentar alternativas financeiras concretas, que venham a contribuir para uma desestruturação gradual do modelo oligopolista financeiro que temos (vide os grandes bancos, a título de exemplo concreto). Em terceiro, um retorno à lógica do sistema financeiro, para que este possa, por meio de atividades justas, transparentes e democráticas, reintroduzir na sociedade e na atividade produtiva o enorme volume de riqueza que extrai de todos nós. Nada mais justo e nada tão desafiador quanto.      


No processo de construção de uma economia mais democratizada, como mencionado anteriormente, combater a brutal e selvagem desigualdade econômica produzida pelo sistema de financeirização é um desafio grande, mas necessário. A razão dessa constatação se dá em virtude da exponencial apropriação de riqueza em nossa sociedade atual, ser condição precípua para concentração de poder político e econômico. A desigualdade de riqueza gera desigualdade política e assim por diante. O ‘pobre coitado’ do trabalhador e do produtor de riqueza social pode ter seu salário aumentado e seu produto momentaneamente valorizado, mas nunca terá condições autônomas de ter de volta aquilo que realmente produziu: a mais-valia. É como enfatiza o autor ao decorrer de todo seu livro: “rende mais aplicar em papéis do que produzir” (DOWBOR, 2017, p. 182). É um genuíno parasitismo financeiro.


Daí a ideia suprema do autor de capital improdutivo. Toda riqueza produzida socialmente é vertida para o pequeno cone da pirâmide, deixando reles migalhas para o largo da mesma pirâmide. É a drenagem selvagem da economia produtiva e real, para a economia artificial dos ‘papéis’. A urgência do entendimento dessa engrenagem financeira global é ponto central na luta contra essa selvageria financeira. Desde que seja um entendimento claro, objetivo e extremamente didático, para que democraticamente o mais simples dos trabalhadores e produtores de riqueza social possam compreender onde estão inseridos no sistema.


O desafio é enorme, porém urgente e necessário.

 

 

Referências

 

DOWBOR, Ladislau. A era do capitalismo improdutivo: por que oito famílias têm mais riqueza do que a metade da população do mundo? São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

 


[1] Ladislau Dowbor é formado em economia política pela Universidade de Lausanne, Suíça; Doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia (1976). Atualmente é professor titular no departamento de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nas áreas de economia e administração. Continua com o trabalho de consultoria para diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema “S” (Sebrae e outros). Atua como Conselheiro no Instituto Polis, IDEC, Instituto Paulo Freire, Conselho da Cidade de São Paulo e outras instituições. Disponível em: https://dowbor.org/sobre. Acesso em 26 de julho de 2024.

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