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A esquerda brasileira não morreu, está morrendo



O cenário atual demanda da esquerda brasileira uma capacidade de reinvenção talvez nunca vista. Se a esquerda não se reinventar estará fadada, não necessariamente ao fracasso, mas ao desaparecimento. A esquerda não morreu, como acredita o filósofo Vladimir Safatle, mas está miseravelmente morrendo, desparecendo cotidianamente do imaginário social. Recentemente, recebi mensagem de um amigo todo entusiasmado comentando a fala de Joice Hasselman, no qual a parlamentar tecia muitas críticas ao governo Bolsonaro. Na perspectiva desse amigo, a oposição brasileira está ativa, lutando contra os mandos e desmandos neofascistas do ser que ocupa o posto de Presidente da República. Percebam, utilizando o exemplo descrito acima, quem, no imaginário coletivo, tornou-se oposição ao governo Bolsonaro são os membros do PSL, o mesmo partido que ajudou a elegê-lo.


Além do PSL, comumente estão sendo associados à oposição figuras como João Doria. Aquele que na última campanha para governador do estado de São Paulo criou o famigerado Bolsodoria, ou quando ainda prefeito da cidade de São Paulo, no seu gesto “humanitário”, propôs distribuir farinha, alimento granulado à base de restos de comida, para os pobres. Também tem sido associado como oposição a Bolsonaro o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSL). Aquele mesmo que logo após assumir sobrevoou regiões periféricas do Rio de Janeiro para acompanhar, com seus próprios olhos, o massacre do estado sobre a população negra.


Diante disso, temos que perguntar, essa será verdadeiramente a oposição que fará frente ao governo Bolsonaro? Serão essas as figuras políticas que lutarão dignamente para salvaguardar o que acreditamos ser estado democrático de direito? No imaginário social, não resta dúvida. Mas, diante dessa triste constatação, cabe uma pergunta, a saber, o que figuras como Doria, Witzel, membros do PSL, MBL, Sergio Moro, têm de diferente de Bolsonaro? Em tese, muito pouco. Isso porque o projeto de poder é basicamente o mesmo, de cunho neofascista e neoliberal. Para me valer do conceito de Achille Mbembe, ambos representam a necropolítica na veia, decidindo quem vive e quem está autorizado a ser morto, são verdadeiros gestores de corpos.


Nesse sentido, se a esquerda não encontrar meios para se reinventar, se não desejar desesperadamente caminhar para a reinvenção, teremos por um longo espaço de tempo um verdadeiro predomínio político, institucional e social dominado por grupos que diferem nos meios, mas o projeto final é sempre o mesmo.


No entanto, é importante ressaltar que apesar das semelhanças, projeto de poder em comum, existe uma diferença elementar entre situação e oposição contemporânea, a saber, os partidários da direita não estão dispostos a morrer por Doria, Huck, Witzel, Moro, ou qualquer outro desse segmento. Diferentemente dos partidários de Bolsonaro que o seguem como líder, como “mito”, o Messias do século XXI que não faz milagres, mas está entre nós. Essas pessoas, cerca de 30% do eleitorado do atual presidente, estão dispostas a morrer, morrerão para defender o neofascismo. Bolsonaro transita entre a necropolítica e o estado suicidário, como define Safatle. Os demais, aquelas lideranças de oposição que hoje permeiam no imaginário social, estão no primeiro estágio, estão na necropolítica, não conseguiram, ainda, avançar para o estado suicidário.


Diante dessa conjuntura, onde se encontra a esquerda? Talvez fosse melhor encerrar o texto com essa pergunta, porém, prefiro me alongar somente mais um pouco para apresentar o que entendo por reinvenção. A esquerda luta desesperadamente para sobreviver, mesmo relutando em reconhecer que o seu fim parece estar muito próximo. Aparentemente existe uma contradição, mas só aparentemente. Temos uma esquerda que novamente acredita na reconciliação, mesmo sabendo que a reconciliação demonstrou não ser mais possível desde 2016, quando as elites econômicas e institucionais disseram em alto e bom som que a partir daquele momento não haveria mais conciliação.


Se alguém tem alguma dúvida, se alguém ainda acredita na reconciliação como projeto político, recomendo, apenas, olhar para 2018, quando perceberá que a reconciliação, mesmo enquanto possibilidade, não existe mais, pelo menos no imaginário da elite dirigente. Naquele contexto houve, mais uma vez, a possibilidade de reconciliar, esquecer diferenças e seguir o fluxo natural da terceira República, produzindo políticas públicas para atender algumas demandas da população mais vulnerável, mas sem abalar os privilégios da elite dirigente. Entretanto, essa mesma elite não teve nenhuma dúvida, quando o cenário apresentou duas possibilidades, a saber, reconciliação ou radicalização, optou pela última, votando e defendendo abertamente o voto em Bolsonaro.


Diante do projeto em curso, a única alternativa para a esquerda sobreviver é reocupar espaço no imaginário social, é partir literalmente para a radicalização, qualquer coisa distante disso é caminhar para o suicídio. O projeto deve ser radical do início ao fim. Radicalização, em que sentido? Primeiramente, no sentido utópico, encontrando condições para fazer com que as pessoas acreditarem que outro modelo político, social e econômico é possível, desmitificando a tese do capitalismo onipresente e permanente. A esquerda tem que ter coragem para dizer o seu nome e, além disso, afirmar categoricamente qual projeto defende. Esse projeto deverá passar prioritariamente pela superação do capitalismo, criando meios e condições para a ascensão e consolidação do socialismo democrático. A esquerda tem que ser ativa, popular e radicalmente democrática, não pode mais ter medo de conquistar mentes e corações.


Muitos têm afirmado reiteradamente que a luta da esquerda, nesse momento, deve ser para retirar Bolsonaro do poder. Porém, quem faz afirmações desse tipo parece se esquecer de que até o MBL aderiu ao movimento Fora Bolsonaro. Se embarcarmos na mesma luta do MBL, como política prioritária, o que temos de diferente? Nesse cenário, já não é mais possível se contentar com políticas de conciliação e tampouco com pequenas reformas no desumano capital, o contexto demanda radicalização, requerendo coragem para (re)assumir o princípio da luta anticapitalista. Caso contrário, a esquerda morrerá, deixando apenas alguns resquícios para contar História.

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