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A Hecatombe 'Coringa'


O filme Joker/Coringa (2019) estreou no 76º Festival de Cinema de Veneza em 31 de agosto deste ano. O filme conquistou o prêmio máximo do Festival, o Leão de Ouro. A premiação não foi tão menos ou mais surpreendente quanto aos oito minutos de salva de palmas recebidas após a exibição do filme pelo público ali presente. Dizem, nos bastidores do mundo do cinema, que não existe público mais crítico e erudito que o público de Veneza. Dizem, ainda, que se um filme consegue a aprovação imediata do público veneziano, é porque o filme é realmente bom. No tocante à ininterrupta salva de palmas, poderíamos dizer, com convicção, que nem o mais brilhante dos atores, diretores e roteiristas poderiam supor tamanha aclamação. Houve um momento em que, Joaquin Phoenix (o ator que interpretou Coringa) pediu, muito constrangido, para que o público interrompesse as palmas para que o Festival retomasse seu curso e protocolo pré-estabelecidos. Por unanimidade, a solicitação do ator não foi atendida.


No Brasil, o filme estreou em 3 de outubro e já levou cerca de 9,5 milhões de pessoas ao cinema e arrecadou cerca de 150 milhões de reais. Estima-se que o filme já tenha atingido a cifra de 1 bilhão de dólares no mundo todo. Certamente, uma expressiva arrecadação, se posto em comparação com os filmes produzidos pela Marvel nos últimos anos e concorrente direta da DC Comics, produtora original do filme. Em se tratando de concorrência e no âmbito da indústria cultural do cinema norte-americano/hollywoodiano, é quase unânime entre os especialistas e críticos de cinema que a DC, ainda a passos largos de fazer frente à Marvel, acertou em cheio desta vez. Diferentemente de Batman vs Superman (2016) ou Liga da Justiça (2017), Coringa açabarcou aplausos e deu novo fôlego às produções futuras da DC. O fato é que o filme propiciou expressiva repercussão e aceitação por parte do público, de especialistas e leigos, que já existe uma enorme expectativa por uma continuação do longa, o que me parece ser razoável e muito possível de ocorrer.


A direção de Coringa coube a Todd Phillips, premiado diretor que já dirigiu outros filmes conhecidos do público, dentre eles Se Beber não Case (2009, 2011, 2013), A Grande Ilusão (2006), Escola de Idiotas (2006) e Projeto X: uma festa fora de controle (2012). Além de Joaquin Phoenix, intérprete do principal personagem, o filme contou ainda com a participação mais que ilustre de Robert De Niro, um daqueles atores que impõe respeito em qualquer filme em que esteja atuando. Em Coringa, De Niro interpreta Murray Franklin, um apresentador de um Talk Show daqueles de humor, em que tira sarro de celebridades, autoridades políticas e, não raro, de pessoas pobres e humildes. Seria uma espécie de Silvio Santos à moda brasileira, para ficarmos apenas em um exemplo. O personagem interpretado por De Niro é fundante no enredo do filme. Falaremos disso mais adiante.


De uma forma consideravelmente precisa, o filme provocou um intenso debate e múltiplas discussões e leituras, que por sua vez, não deixaram de ser polemizadas. Isso seja um bom sinal, tal como é quando um filme, ou mesmo um livro, uma música, uma pintura, enfim, a obra de arte em si mesma, evoca e desterra temas ainda debilitados ou camuflados por nossa sociedade. É que o filme Coringa lança luz a uma leitura da realidade social, política e econômica de modo que se percebe nitidamente uma ‘crueza’ e uma ‘nudeza’ das questões ali tratadas. Nada de fantasias ou efeitos especiais mirabolantes, enfadonhos e previsíveis. Coringa é uma representação escancarada e limpa de uma realidade subjacentemente determinada por um sistema opressor e desnivelado. Talvez aí se possa determinar o nível da polêmica a que o filme fora colocado. Igrejas e suas autoridades religiosas chegaram a proibir seus ‘fiéis’ de assistirem ao filme, por entenderem que o mesmo seria incompatível e prejudicial aos preceitos e doutrinas por eles apreendidos. Alguns psicólogos chegaram a afirmar que o filme não deveria ser assistido por quem, em suma, teria uma espécie de “desvio comportamental” ou “tendência ao psicopatismo social”. Pura galhofa, ao meu entender.


Pude notar algumas análises psicológicas postuladas por profissionais da área. São, em geral, abordagens que procuram examinar tanto o filme, na sua totalidade, quanto as nuances do personagem de Joaquin Phoenix. Algumas dessas análises - mesmo não sendo capaz de fornecer, do ponto de vista da psicologia, um exame mais detalhado – me soaram embebidas de certos exageros. Exageros que iam desde a supervalorização dos problemas psíquicos de Artur Fleck – negligenciando, desta forma, aspectos outros mais relevantes, como o contexto social, político e econômico a que se insere o personagem - até percepções de caráter absolutamente desviadas do enredo do filme, em que insistem em destacar que o Coringa é produto não de uma sociedade doente, mas, sim, de uma patologia. Ora, reservando o devido respeito a tais perspectivas, penso que suas leituras não conseguiram dimensionar a amplitude dos fatores e variáveis que moldam as ações desregradas de Artur Fleck. Evidentemente que a patologia é um fator a se considerar. Entretanto, penso que uma patologia psíquica não é o aspecto essencial e fundante do personagem. Ela é um dos atenuantes. O fundante, na gradual formatação do personagem, são as agruras vivenciadas cotidianamente, derivativos de uma realidade social excludente, violenta, debochada e seletiva. São os problemas que o personagem vivencia no seu dia-a-dia, que o faz ser que é. A patologia que possui é tão somente potencializada por esses elementos estruturantes, tão somente conjunturais.


Para o sociólogo Jessé Souza, o filme Coringa tem toda uma significação política. E tal significação está vinculada a uma profundidade reflexiva da realidade ao qual o filme proporciona, e que rompe com incontáveis estereótipos. Em primeiro lugar, defende Jessé Souza, Coringa rompe com uma tradição dos filmes de heróis, em que esses heróis já estão prontos e romantizados no imaginário social. No que se refere a Coringa, a percepção é muito diferente. Diferente no sentido mesmo de que se tem a oportunidade de disfrutar de um personagem que está ali, em carne e osso, vivenciando as agruras do cotidiano de uma grande cidade, que não dá a mínima para gente como ele. Nesse ponto, vemos um personagem embebido de humanidade e humanização, o que, de certo modo nos leva a empatia. Essa empatia é amplamente possível, justamente porque qualquer um de nós, em um processo de identificação com o personagem e suas histórias cotidianas, poderia estar ali, passando por tudo aquilo, e passamos. Em segundo, Jessé Souza acredita que o filme proporciona uma reflexão no campo das relações sociais, afetivas e familiares. Isso porque Arthur Fleck é um homem que é atravessado cotidianamente por situações-problemas, desde uma família desestruturada, em que sua mãe não é sua mãe biológica e que sofre com distúrbios psíquicos, em que o pai é supostamente um bilionário arrogante e prepotente, em que sobrevive por meio de bicos, até o distúrbio que provoca sua risada desconfortante, onde precisa do assistencialismo do Estado para comprar seus remédios. São situações e momentos que moldam o personagem e aí o vemos surgir como Coringa.


Como não perceber, entre nós mesmos, as sociabilidades dilaceradas pelo sistema e por aqueles que o comandam, como Coringa tão avassaladoramente revela? Ora, quantas famílias desestruturadas existem e são esquecidas propositadamente pelo estabeleshiment. Quantos de nós não necessitamos a toda sorte do assistencialismo do Estado, e somos humilhados por isso. Quantos de nós sobrevivemos com o mínimo que uma dignidade requer, constrangidos e denigridos pelo subemprego. Quantos de nós e quantos ‘Artur Flecks’. Agora, cabe indagar se tudo isso não poderia justificar a ascendência de um Coringa, ou de vários ‘Coringas’. Acreditamos afirmativamente ser possível tal questão.


Lendo algumas críticas especializadas, pude notar que o personagem de Joaquin Phoenix não está apartado de seu contexto socioeconômico. Ao contrário, é por ele definido. Marcelo Hessel, crítico do site Omelete, afirma, categoricamente, que “o fato de Arthur não conseguir com cem por cento de certeza a verdade sobre seu passado é o que sacramenta, afinal, sua queda definitiva na loucura”. O autor dessa análise considera que Coringa é nada mais do que resultado tênue de três ambientes antagonizados: a) o social; b) o familiar e c) o afetivo. Ora, vê-se insurgir uma consciência, produto das mazelas sociais, dos distúrbios provocados pelo ambiente familiar desestruturado e por uma constante frustração afetiva, que se rebela contra o sistema que o criou, que o reservou a toda sorte de desfavores e contratempos terríveis.


Francisco Russo, crítico do site Adoro Cinema, afirma ser Coringa um filme original, no amplo sentido do termo. Isto é, uma vez que, no campo das grandes produções cinematográficas que abarcam narrativas e enredos das HQs, quase sempre procuramos estabelecer paralelos, tencionado irremediavelmente ao que já se conhece sobre as narrativas das HQs. De acordo com Russo, “em Coringa, Todd Phillips vai além e entrega um filme sujo, corajoso e transgressor, tão condizente com a essência de seu personagem-título quanto com a ideia de uma Gotham City caótica, decadente e sem qualquer regra. Ainda bem”. Coringa é um filme solo, e, portanto, deve ser analisado como tal. Não é, em hipótese alguma, uma sequência cronológica nem mesmo invertida dos filmes que o antecedem, referindo-se à trilogia de Batman dirigida competentemente, tome-se nota, por Christopher Nolan.


Não obstante, Coringa não deixa de ser um filme de um vilão dos quadrinhos, não pela a essência dramática, psicótica e social amplamente perceptível a um leigo. Quem assiste cria expectativas de ação, de loucura, de ambientações pré-concebidas de um personagem que se encontra na memória coletiva e no imaginário social. Eu diria, convicto, arriscando-me no minado campo da incerteza profissional a qual não disponho, que Coringa de Tod Philips e Joaquin Phoenix rompe com a narrativa clichê dos quadrinhos e dos filmes já produzidos sobre. Isso porque vemos Coringa nascer, emergir de uma realidade nua e crua, sem efeitos especiais, sem maquiavelismos, sem frases feitas. Tanto se pode perceber este argumento devido à tamanha entrega e dedicação ao personagem, a que Joaquin Phoenix competentemente realizou. Sua capacidade de romper com paradigmas e estereótipos foi o fio condutor de sua preparação e atuação. Foram permeadas de sacrifícios, tanto físicos quando psicológicos, sua entronização-personagem, o que definiu um ponto novo nos novos quadros de uma estética dos filmes de vilões.

A quem acompanha todo percurso dramático de Artur Fleck não deixa de exalar expectativa quando de sua transformação, sua metamorfose em Coringa. Suas tentações, suas dificuldades, suas violências, suas negações, tudo isso, nos leva a esperar impacientemente pela ‘explosão’ do personagem. Deixa-nos, inconscientemente, à espreita de uma interdição de sua condição de agente passivo do sistema que o oprime e o dilacera. Agora, transmutado em Coringa – mas ainda como Artur Fleck na essência – vemos uma ação oposta à sua condição inicial de vítima do sistema à situação de um símbolo ‘desviado’, insidioso e caótico. Uma aura de contestação e anarquismo que irrompe energicamente em face do modus operandi da superestrutura.


Ao cometer o fatídico assassinato de Murray Franklin em rede nacional, ali estão presentes Artur Fleck e Coringa, em uníssono compasso de rebeldia e enfrentamento. Murray Franklin representa tudo de ruim que a sociedade capitalista produz em seus salões e palácios, em suas redomas cerradas de rituais e costumes burgueses. Ele é a escória da elite que zomba dos que estão no porão de nossa sociedade. Esta cena, em especial, é uma aula de História, Sociologia, Filosofia, enfim, um ambiente onde se pode observar sem medos e reservas, o ponto de crítica social mais elevado possível. O filme é sim desconfortante e irremediável. Não se continuar sendo a mesma pessoa depois de assistir. As questões postas, a nível de interpretação e suspeição acerca do que pode ser dito ou não dito sobre Coringa, é algo incontestavelmente natural. Natural no sentido mesmo de uma inconformidade reativa de nossas realidades vividas e dilaceradas, de nossas violências cotidianas e de nossos ‘Artur Flecks’ e ‘Coringas’ cotidianos.


No tocante à atuações e performances, vejo dois pontos que precisam ser bem observados. Primeiro, a brilhante, e talvez única atuação de Reath Ledger em Batman, o cavaleiro das trevas (2008), configura um aspecto particular. O Coringa de Ledger já é um personagem pronto, personagem já definido por suas interdições e vivências problemáticas. Já é um Coringa pronto para ser vilão, porque o Batman precisa de um vilão. O fato é que, a atuação de Reath Ledger foi tão grandiosa e estupenda, que não há precedentes possíveis e imagináveis, nem mesmo no que poderíamos denominar de prognóstico ou estimativa futura. Sua atuação, sem erros e falhas, impecável que foi, lhe rendeu, merecidamente, um Oscar póstumo. Em segundo, entendo que o Coringa de Joaquin Phoenix esteja assentado em outra perspectiva de abordagem. Diferentemente de Reath Ledger, o Coringa de Phoenix é um personagem que emerge da sarjeta, que precisa ser construído e bem elaborado. É um personagem que precisa e necessita de um conjunto de fatos, acontecimentos, sofrimentos, violências, enfim. Trata-se de um personagem que procura se encontrar em um mundo e em uma realidade que não o aceita, que não o assimila, pois ele é, para ela, um desajustado, um desvio que precisa ser extirpado, posto para fora, à margem, sob quaisquer circunstâncias.


Se você for assistir Coringa imaginando encontrar um enredo aos moldes do que meramente o título pode soar, nem se dê ao trabalho. Esteja sim, preparado para ser posto em um ambiente hostil, minado e movediço. Esteja pronto para ser contestado, imputado à toda sorte de inconvenientes de consciência e de identidade pessoal e social. Você será envolto de uma rede de questões desconfortáveis, indigestas e, sobretudo, inquietativas. Estarás diante de uma verdadeira hecatombe, com a devida significação da palavra.


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